Resumo dos fatos (até o momento)
No dia 31 de maio de 2019, uma mulher comunicou à Polícia Civil do Estado de São Paulo a prática de um crime sexual. De acordo com o boletim de ocorrência (leia aqui), no dia 15 de maio de 2019, em Paris, o jogador Neymar teria praticado o crime de estupro contra ela, em razão de uma relação sexual não consentida.
Consta na narrativa do boletim de ocorrência:
Comparece nesta Especializada a vítima qualificada sob o provimento CG 32/2000, noticiando que conheceu Neymar da Silva Santos Junior através das redes sociais (Instagram) e passaram a trocar mensagens. A vítima afirma que Neymar lhe convidou para encontrá-lo em Paris e seu assessor “Gallo” entrou em contato com a mesma na data de 12/05/2019 e forneceu as passagens e hospedagem. A vítima afirma que embarcou na data de 14/05/2019, chegando em Paris na data de 15/05/2019, hospedando-se no Hotel Sofitel Paris Arc Du Triomphe. A vítima afirma que na mesma data, Neymar chegou por volta das 20:00 no hotel, aparentemente embriagado, começaram a conversar, trocaram “carícias”, porém em determinado momento, Neymar se tornou agressivo, e mediante violência, praticou relação sexual contra a vontade da vítima. A vítima afirma que foi embora de Paris na data de 17/05/2019 retornando ao Brasil. A vítima afirma que estava abalada emocionalmente e com medo de registrar os fatos em outro país, decidindo registra-los nesta Especializada em razão de seu endereço residencial. Com base no Princípio da Extraterritorialidade, bem como as partes serem brasileiras, o presente Boletim de Ocorrência foi registrado nesta Especializada, inclusive para fins de encaminhamento aos exames que se fizerem necessários. Informo, por fim, que demais informações a respeito dos fatos foram colhidas em termos próprios, bem como documentos pertinentes. Nada Mais.
Logo após a divulgação dessa informação pela mídia, Neymar gravou um vídeo se defendendo e o divulgou no Instagram (clique aqui), apresentando um print da conversa, inclusive com fotos íntimas da suposta vítima. No vídeo, demonstra que, após o dia da relação sexual, conversaram normalmente, tentando, assim, desconstruir a ideia de que não houve consentimento.
Em seguida, foi divulgado que Neymar também seria investigado por compartilhar as fotos íntimas da suposta vítima sem seu consentimento (clique aqui), em virtude da prática do crime previsto no art. 218-C do Código Penal.
Sem entrar no mérito sobre o fato em si – porque dependeria de uma análise probatória -, analisarei as consequências legais. Destaco que não realizarei juízos de valor, mas apenas discutirei o que foi divulgado até o momento.
Introdução sobre os crimes sexuais
A análise de qualquer acusação por crime sexual pressupõe alguns cuidados. Segundo a jurisprudência, a palavra da vítima merece mais relevância nesses crimes, considerando que normalmente são praticados sem testemunhas (leia aqui).
Contudo, há algumas preocupações, como acusações falsas e a síndrome da mulher de Potifar (leia aqui).
Lembro-me de um caso em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul em que dois jovens (ambos com 18 anos) tinham um relacionamento e se encontravam periodicamente na casa da menina. Em uma oportunidade, o pai da menina chegou mais cedo no local enquanto o casal estava sem roupas. A menina, em um ato de desespero quanto ao risco de alguma reação violenta do pai, começou a gritar: “socorro! Estou sendo estuprada!”. Sem entender nada, o rapaz fugiu pela janela sem roupas, sendo preso poucos minutos depois.
Ninguém acreditou na versão desse rapaz. Ele ficou preso por 3 meses em um dos piores presídios do país, com os outros presos acreditando que ele teria praticado um crime de estupro, até que a menina comunicasse à Polícia que foi uma relação sexual consentida e que, portanto, não havia crime.
Portanto, a palavra da vítima tem valor na jurisprudência, mas nem sempre é verdadeira.
Sobre a acusação da prática do crime de estupro
No momento, há um conflito de narrativas: a suposta vítima informou que a relação sexual não foi consentida, mas Neymar, pela internet, afirmou que houve consentimento.
Logo, o principal debate para a elucidação do caso passará pela análise do consentimento, que, se existente, tornará o fato atípico. Em outras palavras, caso tenha sido uma relação sexual consentida, não há crime. Como regra, o consentimento do ofendido é uma causa supralegal de exclusão de ilicitude, salvo quando é elementar do crime, hipótese em que o fato será atípico, como no crime de estupro.
No momento, parece ter sido descartada completamente por Neymar qualquer alegação de negativa de autoria, porque, no vídeo, afirmou que houve o encontro e a relação sexual.
Caso se constate, durante a investigação, a existência de consentimento na relação sexual, o inquérito deverá ser arquivado. Se a denúncia for oferecida, o Juiz poderá absolver sumariamente (art. 397, III, do CPP) ou, após a instrução processual, absolvê-lo em uma sentença (art. 386, III, do CPP), em ambos os casos por atipicidade da conduta. Entrementes, há quem sustente que, em casos assim, a absolvição deveria ser feita pelo art. 386, I, do CPP, ou seja, por estar provada a inexistência do fato.
Se for condenado por crime de estupro (art. 213 do Código Penal), a pena será de reclusão, de 6 a 10 anos. Por oportuno, o crime de estupro é considerado crime hediondo (art. 1º, V, da Lei de Crimes Hediondos).
Se o crime não ocorreu: possibilidade de denunciação caluniosa
Se não ocorreu o estupro, a mulher que comunicou o fato à Polícia poderá responder pelo crime de denunciação caluniosa (art. 339 do Código Penal), que tem pena de reclusão, de 2 a 8 anos. Esse crime é praticado por quem dá causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente.
Não seria calúnia (art. 138 do Código Penal), porque não se trata de mera imputação de fato, mas sim de conduta que deu causa à instauração de investigação policial.
Também não seria o crime de comunicação falsa de crime (art. 340 do Código Penal), que é menos grave que a denunciação caluniosa, porque houve a imputação do fato criminoso a uma pessoa específica. Essa é a diferença fundamental entre comunicação falsa de crime e denunciação caluniosa, ou seja, o primeiro não tem a elementar “contra alguém”, mas o segundo, de forma diversa, depende de uma imputação a determinada pessoa.
Além disso, ao contrário do crime de falso testemunho, o crime de denunciação caluniosa não prevê a retratação como forma de afastar a responsabilização criminal de quem mentiu.
Portanto, se o fato for verdadeiro (o estupro realmente ocorreu), não há crime da mulher que comunicou o crime sexual à Polícia Civil. Por outro lado, se o fato não for verdadeiro (não houve estupro), a mulher poderá ser investigada e processada pelo crime de denunciação caluniosa, ainda que se retrate durante o inquérito ou o processo contra Neymar, salvo entendimento diverso do Juiz pela aplicação, por analogia, da retratação prevista para o crime de falso testemunho ao crime de denunciação caluniosa.
Sobre o compartilhamento de fotos íntimas
Sobre a divulgação das fotos íntimas no vídeo publicado por Neymar, a imputação seria do crime previsto no art. 218-C do Código Penal:
Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia.
A pena desse crime é de reclusão, de 1 a 5 anos, se o fato não constitui crime mais grave. Trata-se de um novo tipo penal incluído no Código Penal por meio da Lei nº 13.718/2018 (clique aqui).
Ainda que se trate de divulgação de fotos para defender a imagem do jogador, que foi acusado de estupro, a forma mais segura de realizar a defesa seria dentro da investigação, sem o compartilhamento público das imagens íntimas.
Portanto, a princípio, parece haver tipicidade formal entre a conduta do jogador e o crime previsto no art. 218-C do Código Penal.
Contudo, conforme os elucidativos comentários de Luiz Augusto Filizzola D’Urso (clique aqui), uma das maiores autoridades em crimes digitais do Brasil, há dois pontos que podem levar à compreensão acerca da atipicidade formal dessa conduta.
A um, as imagens divulgadas por Neymar estavam desfocadas. Dessa forma, não houve, de forma integral, a publicação de imagens de nudez.
A dois, como decorrência das imagens desfocadas e do fato de que Neymar estava tentando se defender com a exibição integral da conversa, não há dolo de praticar o crime previsto no art. 218-C do Código Penal.
Assim, a imputação do crime em comento dependerá da interpretação das autoridades envolvidas (Delegado, Promotor e Juiz) quanto à divulgação de imagens desfocadas e no que consiste o dolo do referido crime.
O que pode acontecer?
Por fim, ao preparar o fechamento deste texto, soube que o pai do jogador Neymar disse: “prefiro um crime de internet ao crime de estupro” (clique aqui).
Há de se ter ciência de que um crime não apaga o outro. O fato de ter divulgado as conversas (inclusive as imagens) não gera o arquivamento do inquérito ou a absolvição pelo crime de estupro. Aliás, é possível ser condenado pelo crime de estupro e, da mesma forma, pelo crime do art. 218-C do Código Penal, como também é possível ser absolvido quanto aos dois fatos, caso o estupro não tenha ocorrido e se chegue à interpretação de que não houve dolo na divulgação das imagens ou que o fato de estarem desfocadas afasta a adequação ao tipo penal.
Em suma, a tipicidade do crime previsto no art. 218-C do Código Penal independe da prática ou não do crime de estupro.
Ao final de todas as apurações, podem acontecer inúmeras “combinações”.
Neymar pode ser condenado pelos dois crimes ou por apenas um, assim como também pode ser considerado inocente quanto aos dois crimes.
Por sua vez, caso se constate que o crime de estupro não ocorreu, a mulher que imputou a ele a prática do crime de estupro pode ser processada pelo crime de denunciação caluniosa, que é de ação penal pública incondicionada e independe da vontade de Neymar. Nessa situação, Neymar seria considerado inocente (arquivamento do inquérito ou absolvição no processo) quanto ao crime de estupro, mas ainda poderia ser responsabilizado pelo compartilhamento das imagens.
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