Afinal, quem é o “cidadão de bem”?
Os discursos de ódio, inflamados por questionamentos em torno da legislação penal e de clamores públicos sobre o aumento do poder punitivo estatal, deram origem a um conceito subjetivo e autopersonificado de “cidadão de bem”.
Nas redes sociais e nos noticiários que se investem da função persecutória, tem-se falado que os direitos humanos seriam apenas para os “cidadãos de bem” e que o aumento da criminalidade prejudica a rotina do “cidadão de bem”, além de outras frases de efeito.
Como já escrevi anteriormente (leia aqui), esse conceito é apropriado e apreendido por aqueles que dele se utilizam como uma forma de negar a possibilidade própria de praticar crimes, quando é sabido que todos podem praticar condutas penalmente tipificadas. Aliás, muitos já praticaram, com a pífia diferença de que não foram acusados e condenados criminalmente. Basta ver os crimes de injúria (xingamento) e difamação (fofoca), rotineiramente cometidos por aqueles que dialogam maliciosamente sobre terceiros.
Normalmente, aqueles que se apropriam do conceito de “cidadão de bem” valem-se de argumentações sem fundo teórico ou empírico. Preferem a utilização de frases clichês (“você quer soltar todos os bandidos?”) a ter de fundamentar minimamente a sua opinião. Sobre esse tema, escrevi recentemente uma resposta aos críticos do garantismo penal (leia aqui), demonstrando que a melhor resposta ao desconhecimento e à ignorância é a ausência de resposta.
Como já disse em outra oportunidade (leia aqui), é curioso o fato de que nunca observamos alguém defender o conceito de “cidadão de bem” e, simultaneamente, afirmar que se encontra fora desse grupo celestial de seres encantados.
De certa forma, há poucas diferenças entre a utilização, no século XXI, da expressão “cidadão de bem” e a forma como era utilizado, durante parte do século passado, o termo “raça ariana”. Ambos objetivam separar as pessoas e conceder determinadas benesses àquele grupo que se autointitula superior.
Afinal, quem seriam os cidadãos de bem?
Seriam aqueles que acreditam que nunca praticariam um crime, nem mesmo culposo?
Haveria diferença entre o cidadão de bem e o homem médio?
Ou seriam aqueles que comemoram a prisão preventiva fora das hipóteses legais, como verdadeiro ritual de sacrifício humano (leia aqui)? Ou talvez eles considerem inumano quem está fora do conceito de cidadão de bem?
Talvez sejam aqueles que não se importam – e às vezes comemoram – com o fato de termos uma Lei de Execução Penal cuja valor é idêntico ao da Tabela FIPE: nunca igual ou mais; apenas menos, muito menos que o previsto!
Nas ruas, nos presídios, nas faculdades, nos noticiários… em todos os lugares, sem exceção, defende ser cidadão de bem quem se vale desse conceito, em que pese a autoconsciência das imperfeições de sua condição humana. O mesmo argumento utilizado pelos autointitulados “cidadãos de bem”, no sentido de que ninguém nos presídios diz que é culpado, também vale para eles: ninguém se utiliza do conceito de “cidadão de bem” e diz que não está abrangido por esse conceito.
Leia também: