Na APn 814/DF, julgada em 06/11/2019, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o administrador que desconta valores da folha de pagamento dos servidores públicos para quitação de empréstimo consignado e não os repassa a instituição financeira pratica peculato-desvio, sendo desnecessária a demonstração de obtenção de proveito próprio ou alheio, bastando a mera vontade de realizar o núcleo do tipo (leia aqui).
Informações do inteiro teor:
De início, ressalta-se que a diferença entre manipulação de dinheiro público ou particular tem especial importância na análise da questão do dolo na obtenção de proveito próprio ou alheio com desvio de finalidade das verbas e da simples aplicação inadequada dessa mesma verba. Essa discussão, que eventualmente surge na hipótese de o administrador público dar destino diverso ao previsto para a verba, mas ainda no âmbito público, a exemplo de deslocar montante que seria aplicado à saúde para a pavimentação de rodovia. Contudo, sendo o dinheiro particular, esse tipo de controvérsia se desfaz, pois não é dado ao administrador deslocar esse dinheiro para nenhuma outra finalidade que não a ajustada.
Assim, tratando-se de aplicação de dinheiro particular e tendo o administrador público traído, evidentemente, a confiança que lhe fora depositada, ao dar destinação diversa à ajustada, não é requisito para a configuração do crime a demonstração do proveito próprio ou alheio. Mesmo que necessário fosse, sendo o dinheiro de servidores, ou seja, particular, o proveito exsurge do fato em si.
O peculato-desvio é crime formal que se consuma no instante em que o funcionário público dá ao dinheiro ou valor destino diverso do previsto. A obtenção do proveito próprio ou alheio não é requisito para a consumação do crime, sendo suficiente a mera vontade de realizar o núcleo do tipo.
Desse modo, configura peculato-desvio a retenção dos valores descontados da folha de pagamento dos servidores públicos que recebiam seus vencimentos já com os descontos dos valores de retenção a título de empréstimo consignado, mas, por ordem de administrador, os repasses às instituições financeiras credoras não eram realizados.
Confira a ementa:
PENAL. AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. GOVERNADOR DO ESTADO DO AMAPÁ. RECURSOS DE APELAÇÃO. PECULATO-DESVIO. CONDUTA TÍPICA. RETENÇÃO DE VALORES RELATIVOS A EMPRÉSTIMOS CONSIGNADOS. PERDA DO CARGO DE GOVERNADOR. APELAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PROVIDA. CONDENAÇÃO DO RÉU ÀS PENAS DE RECLUSÃO E DE MULTA E AO RESSARCIMENTO DO ERÁRIO.
1. Peculato-desvio é crime formal para cuja consumação não se exige que o agente público ou terceiro obtenha vantagem indevida mediante prática criminosa, bastando a destinação diversa daquela que deveria ter o dinheiro. Os aspectos formais da descrição típica da conduta estão preenchidos na medida em que é desviado dinheiro destinado ao pagamento de empréstimos consignados de servidores públicos.
2. Configura peculato-desvio a retenção dos valores descontados da folha de pagamento dos servidores públicos que recebiam seus vencimentos já com os descontos dos valores de retenção a título de empréstimo consignado, mas, por ordem de administrador, os repasses às instituições financeiras credoras não eram realizados.
3. Na modalidade peculato-desvio, não se discute o deslocamento de verbas públicas em razão de gestão administrativa, mas o deslocamento de dinheiro particular em posse do Estado. Assim, a consumação do crime não depende da prova do destino do dinheiro ou do benefício obtido por agente ou terceiro.
4. Nos termos do art. 92, I, do Código Penal, a perda do cargo, função ou mandado eletivo é efeito da condenação, mas é imprescindível que o juiz fundamente especificamente a decretação desse efeito extrapenal. É absolutamente incabível que o chefe do Poder Executivo de Estado da Federação permaneça no cargo após condenação pela prática de crime cuja natureza jurídica está fundamentada no resguardo da probidade administrativa.
5. Apelação do Ministério Público provida para condenação do réu às penas de reclusão e de multa e para ressarcimento do erário em montante atualizado e corrigido. Apelação do réu prejudicada. Decretação da perda do cargo de governador de Estado.
(APn 814/DF, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, CORTE ESPECIAL, julgado em 06/11/2019, DJe 04/02/2020)
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