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Evinis Talon

STF: a ação penal relativa a lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada

25/03/2020

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Decisão proferida pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal na ADI 4424, julgado em 09/02/2012 (leia a íntegra do acórdão).

Confira a ementa:

AÇÃO PENAL – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER – LESÃO CORPORAL – NATUREZA. A ação penal relativa a lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada – considerações. (ADI 4424, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/02/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-148 DIVULG 31-07-2014 PUBLIC 01-08-2014)

Leia a íntegra do voto do Relator Min. Marco Aurélio:

V O T O

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) –

DO DESCABIMENTO DA AÇÃO

O Senado da República sustenta a impropriedade da ação. Parte da premissa segundo a qual a Constituição Federal não versa a natureza da ação penal – se pública incondicionada ou pública subordinada à representação da vítima. Sob tal ângulo, haveria, então, a denominada violência reflexa no que a disciplina do tema está em normas infraconstitucionais.

A visão amesquinha o processo objetivo e, mais do que isso, mitiga a Carta da República. Esta é dotada de princípios explícitos e implícitos. O que se coloca sob a apreciação do Supremo, guarda-mor da Constituição Federal, é saber se a previsão normativa a submeter o crime de lesão corporal leve praticado contra a mulher, em ambiente doméstico, enseja tratamento igualitário, presentes lesões causadas em geral, tendo-se como necessária a representação.

Evoca-se o princípio explícito da dignidade humana. Evoca-se a norma expressa no § 8º do artigo 226 da Carta de 1988, a encerrar que cumpre ao Estado criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações mantidas pelos integrantes da unidade familiar.

O questionamento é de índole maior e possui repercussão ímpar. A ordem jurídica comum, a condicionar a ação penal à representação da vítima no caso de lesões corporais leves praticadas contra a mulher no âmbito doméstico mostra-se harmônica com a cláusula final do citado § 8º? Em síntese, há mecanismos capazes de inibir e coibir a violência no âmbito das relações em família no que se submete à vontade da vítima a atuação estatal, a atuação do Ministério Público? Tenho como improcedente a preliminar suscitada, reiterada pelo tutor da lei, pelo Advogado-Geral da União, ao sustentar o óbice ao exame do pedido ante a necessidade de sopesar leis federais – a que retrata o Código Penal e a de nº 9.099/95.

Reafirmo o que sempre assentei no Plenário quanto à envergadura maior do processo objetivo. A visão exigida do Supremo é única, ou seja, aberta à admissibilidade quando se discute situação jurídica de grande importância para o bem-estar social, para o bem-estar dos cidadãos, presente alegado conflito entre o diploma legal ordinário e a Constituição Federal.

Afasto a procedência da preliminar. Deve-se adentrar a matéria de fundo, elucidando-se vez por todas, como é do interesse da sociedade, a controvérsia que existe, até mesmo, no âmbito da doutrina, o que se dirá em termos de jurisprudência.

NO MÉRITO

Eis um caso a exigir que se parta do princípio da realidade, do que ocorre no dia a dia quanto à violência doméstica, mais precisamente a violência praticada contra a mulher. Os dados estatísticos são alarmantes. Na maioria dos casos em que perpetrada lesão corporal de natureza leve, a mulher, agredida, a um só tempo, física e moralmente, acaba, talvez ante óptica assentada na esperança, por afastar a representação formalizada, isso quando munida de coragem a implementá-la.

Conforme ressaltado na inicial, confeccionada com o desejável esmero, dados estatísticos demonstram que o percentual maior é de renúncia à representação, quer deixando-se de ter a iniciativa, quer afastando-a do cenário jurídico. Stela Cavalcanti, em “Violência Doméstica – Análise da Lei Maria da Penha”, aponta que o índice de renúncia chega a alcançar 90% dos casos. Iniludivelmente, isso se deve não ao exercício da manifestação livre e espontânea da vítima, mas ao fato de vislumbrar uma possibilidade de evolução do agente, quando, na verdade, o que acontece é a reiteração de procedimento e, pior, de forma mais agressiva ainda em razão da perda dos freios inibitórios e da visão míope de que, tendo havido o recuo na agressão pretérita, o mesmo ocorrerá na subsequente. Os dados estatísticos são assombrosos relativamente à progressão nesse campo, vindo a desaguar, inclusive, em prática que provoque a morte da vítima.

Sob o ponto de vista feminino, a ameaça e as agressões físicas não vêm, na maioria dos casos, de fora. Estão em casa, não na rua. Consubstanciam evento decorrente de dinâmicas privadas, o que, evidentemente, não reduz a gravidade do problema, mas a aprofunda, no que acirra a situação de invisibilidade social. Na maior parte dos assassinatos de mulheres, o ato é praticado por homens com quem elas mantiveram ou mantêm relacionamentos amorosos.

Compõe o contexto revelador da dignidade humana o livre agir, a definição das consequências de certo ato. Essa premissa consubstancia a regra, mas, para confirmá-la, existe a exceção. Por isso mesmo, no âmbito penal, atua o Ministério Público, na maioria dos casos, sem que se tenha como imprescindível representação, bastando a notícia do crime.

No tocante à violência doméstica, há de considerar-se a necessidade da intervenção estatal. Conforme mencionado na peça primeira desta ação, no Informe nº 54/2001, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, em análise sintomática da denúncia formalizada por Maria da Penha Maia Fernandes, assentou-se que o Brasil violara os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial da peticionária, considerada violência que se apontou como a encerrar padrão discriminatório, tolerando-se a ocorrência no meio doméstico. Então, recomendou-se que prosseguisse o processo de reformas visando evitar a tolerância estatal e o tratamento discriminatório relativo à violência doméstica contra as mulheres. Foi justamente essa condenação de insuplantável teor moral que levou o País a editar a denominada Lei Maria da Penha – Lei nº 11.340/2006 –, que, no artigo 1º, trouxe à balha o seguinte:

Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Antes dessa lei, chegou-se a disciplina específica mediante a introdução, no artigo 129 do Código Penal, a encerrar o crime de lesão corporal, dos parágrafos 9º, 10 e 11, criando-se causas de aumento da pena sob o subtítulo “Violência Doméstica”. Eis os preceitos inseridos:

[…]
§ 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.
§ 10. Nos casos previstos nos §§ 1º a 3º deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9º deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço).
§ 11. Na hipótese do § 9º deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência.
[…]

O § 1º do citado artigo versa consequências da lesão, tais como incapacidade para as ocupações habituais por mais de trinta dias, perigo de vida, debilidade permanente de membro, sentido ou função e aceleração de parto. Para tanto, há a previsão de reclusão de um a cinco anos.

O § 3º engloba não só certa consequência, como também a postura do agente, ao dispor:

§ 3º – Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzilo: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos.

No caso presente, não bastasse a situação de notória desigualdade considerada a mulher, aspecto suficiente a legitimar o necessário tratamento normativo desigual, tem-se como base para assim se proceder a dignidade da pessoa humana – artigo 1º, inciso III –, o direito fundamental de igualdade – artigo 5º, inciso I – e a previsão pedagógica segundo a qual a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais – artigo 5º, inciso XLI.

A legislação ordinária protetiva está em fina sintonia com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, no que revela a exigência de os Estados adotarem medidas especiais destinadas a acelerar o processo de construção de um ambiente onde haja real igualdade entre os gêneros. Há também de se ressaltar a harmonia dos preceitos com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – a Convenção de Belém do Pará –, no que mostra ser a violência contra a mulher uma ofensa aos direitos humanos e a consequência de relações de poder historicamente desiguais entre os sexos. Nas palavras de Leda Maria Hermann, em Maria da Penha: lei com nome de mulher:

Reconhecer a condição hipossuficiente da mulher vítima de violência doméstica e/ou familiar não implica invalidar sua capacidade de reger a própria vida e administrar os próprios conflitos. Trata-se de garantir a intervenção estatal positiva, voltada à sua proteção e não à sua tutela.

Sob o ângulo constitucional explícito, tem-se como dever do Estado assegurar a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Não se coaduna com a razoabilidade, não se coaduna com a proporcionalidade, deixar a atuação estatal a critério da vítima, a critério da mulher, cuja espontânea manifestação de vontade é cerceada por diversos fatores da convivência no lar, inclusive a violência a provocar o receio, o temor, o medo de represálias. Esvazia-se a proteção, com flagrante contrariedade ao que previsto na Constituição Federal, especialmente no § 8º do respectivo artigo 226, no que admitido que, verificada a agressão com lesão corporal leve, possa a mulher, depois de acionada a autoridade policial, atitude que quase sempre provoca retaliação do agente autor do crime, vir a recuar e a retratar-se em audiência especificamente designada com tal finalidade, fazendo-o – e ao menos se previu de forma limitada a oportunidade – antes do recebimento da denúncia, condicionando-se, segundo o preceito do artigo 16 da Lei em comento, o ato à audição do Ministério Público.

Deixar a cargo da mulher autora da representação a decisão sobre o início da persecução penal significa desconsiderar o temor, a pressão psicológica e econômica, as ameaças sofridas, bem como a assimetria de poder decorrente de relações histórico-culturais, tudo a contribuir para a diminuição de sua proteção e a prorrogação da situação de violência, discriminação e ofensa à dignidade humana. Implica relevar os graves impactos emocionais impostos pela violência de gênero à vítima, o que a impede de romper com o estado de submissão.

Entender que se mostra possível o recuo, iniludivelmente carente de espontaneidade, é potencializar a forma em detrimento do conteúdo. Vejam que, recebida a denúncia, já não pode haver a retratação. Segundo o dispositivo ao qual se pretende conferir interpretação conforme à Carta da República, ocorrida a retratação antes do recebimento da denúncia, embora exaurido o ato agressivo, a resultar em lesões, é possível dar-se o dito pelo não dito e, com grande possibilidade, aguardar, no futuro, agressão maior, quadro mais condenável.

Descabe interpretar a Lei Maria da Penha de forma dissociada do Diploma Maior e dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, sendo estes últimos normas de caráter supralegal também aptas a nortear a interpretação da legislação ordinária. Não se pode olvidar, na atualidade, uma consciência constitucional sobre a diferença e sobre a especificação dos sujeitos de direito, o que traz legitimação às discriminações positivas voltadas a atender as peculiaridades de grupos menos favorecidos e a compensar desigualdades de fato, decorrentes da cristalização cultural do preconceito. Alfim, é vedado aplicar a norma de forma a revestir a “surra doméstica” de aparências de legalidade ou de tolerância – “A Lei Maria da Penha”, Eliana Calmon, Revista Justiça & Cidadania, 10 ed., junho de 2009.

Procede às inteiras o pedido formulado pelo Procurador-Geral da República, buscando-se o empréstimo de concretude maior à Constituição Federal. Deve-se dar interpretação conforme à Carta da República aos artigos 12, inciso I, 16 e 41 da Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha – no sentido de não se aplicar a Lei nº 9.099/95 aos crimes glosados pela Lei ora discutida, assentando-se que, em se tratando de lesões corporais, mesmo que consideradas de natureza leve, praticadas contra a mulher em âmbito doméstico, atua-se mediante ação penal pública incondicionada. Vale frisar que permanece a necessidade de representação para crimes versados em leis diversas da Lei nº 9.099/95, tais como o de ameaça e os cometidos contra os costumes. Aliás, o Plenário, ao indeferir ordem no Habeas Corpus nº 106.212/MS, por mim relatado, placitou o afastamento da Lei nº 9.099/95 pelo artigo 41 da Lei nº 11.340/2006, quando assentou:

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – ARTIGO 41 DA LEI Nº 11.340/06 – ALCANCE. O preceito do artigo 41 da Lei nº 11.340/06 alcança toda e qualquer prática delituosa contra a mulher, até mesmo quando consubstancia contravenção penal, como é a relativa a vias de fato. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – ARTIGO 41 DA LEI Nº 11.340/06 – AFASTAMENTO DA LEI Nº 9.099/95 – CONSTITUCIONALIDADE. Ante a opção político- normativa prevista no artigo 98, inciso I, e a proteção versada no artigo 226, § 8º, ambos da Constituição Federal, surge harmônico com esta última o afastamento peremptório da Lei nº 9.099/95 – mediante o artigo 41 da Lei nº 11.340/06 – no processo-crime a revelar violência contra a mulher.

Representa a Lei Maria da Penha elevada expressão da busca das mulheres brasileiras por igual consideração e respeito. Protege a dignidade da mulher, nos múltiplos aspectos, não somente como um atributo inato, mas como fruto da construção realmente livre da própria personalidade. Contribui com passos largos no contínuo caminhar destinado a assegurar condições mínimas para o amplo desenvolvimento da identidade do gênero feminino.

Consigno, mais uma vez, que o Tribunal, no julgamento do Habeas Corpus nº 106.212/MS, declarou a constitucionalidade do artigo 41 da Lei nº 11.340/06 no que afasta a aplicação da nº Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995 – Lei dos Juizados Especias –, relativamente aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista para o tipo. E, no tocante aos crimes de lesão leve e de lesão culposa, a natureza condicionada da ação penal foi introduzida pelo artigo 88 da Lei nº 9.099/95. Logo, a declaração, como já ocorreu, da constitucionalidade do artigo 41 da Lei nº 11.340/06, a estampar a não incidência da citada lei, afasta a previsão de que a ação relativa ao crime do artigo 129 do Código Penal é pública condicionada, mas, já agora em processo objetivo – cuja decisão irradia-se extramuros processuais –, para expungir quaisquer dúvidas, resta emprestar interpretação conforme à Carta da República aos artigos 12, inciso I, e 16 da Lei nº 11.340/2006, para assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão corporal, pouco importando a extensão dessa última. É como voto na espécie.

[…]

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Evinis Talon é Advogado Criminalista com atuação no Brasil inteiro, com 12 anos de experiência na defesa penal, professor de cursos de mestrado e doutorado com experiência de 11 anos na docência, Doutor em Direito Penal pelo Centro de Estudios de Posgrado (México), Doutorando pela Universidade do Minho (Portugal – aprovado em 1º lugar), Mestre em Direito (UNISC), Máster en Derecho Penal (Universidade de Sevilha), Máster en Derecho Penitenciario (Universidade de Barcelona), Máster en Derecho Probatorio (Universidade de Barcelona), Máster en Derechos Fundamentales (Universidade Carlos III de Madrid), Máster en Política Criminal (Universidade de Salamanca), especialista em Direito Penal, Processo Penal, Direito Constitucional, Filosofia e Sociologia, autor de 7 livros, ex-Defensor Público do Rio Grande do Sul (2012-2015, pedindo exoneração para advogar. Aprovado em todas as fases durante a graduação), palestrante que já participou de eventos em 3 continentes e investigador do Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov) de Portugal. Citado na jurisprudência de vários tribunais, como TRF1, TJSP, TJPR, TJSC, TJGO, TJMG, TJSE e outros.

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