Em texto anterior, critiquei a previsão do art. 385 do Código de Processo Penal, que possibilita ao Juiz condenar o acusado, ainda que o Ministério Público tenha postulado a absolvição (leia aqui). Também em textos anteriores, abordei tudo que a legislação processual penal permite que o Juiz faça de ofício (leia aqui, aqui e aqui). Neste, refletirei acerca da prisão preventiva de ofício.
Como é sabido, a prisão de alguém, antes de uma sentença condenatória irrecorrível, é – ou deveria ser – excepcional, cabendo apenas quando for extremamente necessária.
Em suma, caberia apenas em três situações: prisão em flagrante, prisão temporária e prisão preventiva.
Quanto à prisão em flagrante, atualmente, manterá o flagrado preso somente até a audiência de custódia ou a decisão que analisará se é caso de decretar a prisão preventiva, conceder a liberdade ou aplicar alguma cautelar diversa da prisão
No que concerne à prisão temporária, já abordei seus requisitos em outro texto (leia aqui). Destaco, por oportuno, que não é cabível a prisão temporária de ofício, devendo o Magistrado decretar essa prisão cautelar apenas se houver representação da autoridade policial ou requerimento do Ministério Público.
Sobre a prisão preventiva, diferentemente da prisão temporária – que é cabível apenas na investigação –, pode ser decretada nas fases policial e judicial.
Conforme o art. 311 do Código de Processo Penal, “em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.”
Assim, segundo o supracitado dispositivo legal, cabe a decretação da prisão preventiva de ofício pelo Magistrado, mas apenas no curso da ação penal, não podendo o Juiz decretá-la de ofício durante o inquérito policial.
Também é importante observar o art. 282, §4º, do CPP, que traz previsão semelhante, nos seguintes termos: “No caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas, o juiz, de ofício ou mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva (art. 312, parágrafo único)”.
Antes de entrar no debate pretendido por esse texto, vale destacar que o art. 282, §4º, do CPP, se interpretado de modo afoito, poderia gerar uma prisão preventiva de ofício no inquérito policial.
Explico: o art. 311 do CPP afirma que o Juiz somente pode decretar a prisão preventiva de ofício durante o processo, mas o art. 282, §4º, do CPP, menciona que o Juiz poderia, de ofício, decretar a prisão preventiva, em último caso, diante do descumprimento de uma medida cautelar diversa da prisão, não fazendo distinção entre a fase policial e a judicial. Destarte, analisando apenas o art. 282, poder-se-ia imaginar que o Juiz teria a possibilidade de decretar a prisão preventiva de ofício durante as investigações, caso o investigado descumpra alguma medida cautelar diversa da prisão.
Ocorre que a decretação da prisão preventiva como consequência do descumprimento de uma medida cautelar diversa da prisão é, como parece ser, uma decretação da prisão preventiva. Portanto, é inconcebível interpretar o 282, §4º, do CPP, sem examinar, ao mesmo tempo, a disposição do art. 311 do mesmo diploma legal. Portanto, ainda que o investigado descumpra uma medida cautelar diversa da prisão, não é possível que o Juiz decrete a prisão preventiva de ofício na fase policial.
Feita essa breve observação, destaco, como já fiz em outros textos, que a atuação de ofício do Magistrado no processo penal é algo preocupante e que, dependendo do ato, fere o sistema acusatório, a imparcialidade e a inércia do julgador, assim como a paridade de armas (como já descrevi no texto “Todos contra o acu(s)ado” – leia aqui). Assim, entendo que a permissão legal de prisão preventiva de ofício pelo Juiz não é compatível com a Constituição Federal, mormente em relação ao sistema acusatório, cuja exegese se extrai do art. 129, I, da Constituição Federal.
Somando a possibilidade de prisão preventiva de ofício com a possibilidade de que o Juiz condene o réu quando há pedido de absolvição feito pelo Ministério Público, temos um processo penal em que, de um lado, temos a acusação e o Juiz, enquanto do outro temos a defesa, sem que exista, de fato, um terceiro imparcial para realizar o julgamento.
Para respeitar o sistema constitucional acusatório, é imprescindível e inegociável que o Juiz deva ser provocado pelas partes. Nesse diapasão, se o titular da ação penal, ao examinar o fato concreto, deixar de requerer a prisão preventiva, entendendo que essa medida extrema não é necessária, não poderia o Juiz fazê-lo, substituindo, forçadamente, a acusação.
Contudo, infelizmente, a jurisprudência reconhece o cabimento da decretação da prisão preventiva de ofício, não vendo incompatibilidade com a Constituição Federal:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PROCESSUAL PENAL. PRISÃO PREVENTIVA. NECESSIDADE DA SEGREGAÇÃO CAUTELAR DEVIDAMENTE DEMONSTRADA. GARANTIA DE APLICAÇÃO DA LEI PENAL. TESE DE NULIDADE DA DECISÃO QUE DECRETOU A PRISÃO PREVENTIVA. IMPROCEDÊNCIA. RECURSO DESPROVIDO. 1. A custódia cautelar encontra-se devidamente fundamentada para a garantia da aplicação da lei penal, tendo em vista que, com a constante ausência do Réu às audiências designadas e sua mudança de endereço sem comunicação ao Juízo processante, transparece nítida sua intenção de se furtar à persecução criminal do Estado 2. A teor dos arts. 311 e 316 do Código de Processo Penal, é possível a decretação de prisão preventiva no curso do processo, mesmo de ofício, e ainda que esta tenha sido anteriormente revogada, se sobrevierem razões que justifiquem tal medida, providência que compete ao Juiz da causa. 3. Recurso desprovido. (STJ, Quinta Turma, RHC 42816/RS, Relator Ministra Laurita Vaz, julgado em 06/05/2014)
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