Decisão proferida pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça no HC 130.981/RS, julgado em 25/11/2010 (leia a íntegra do acórdão).
Confira a ementa:
HABEAS CORPUS. TERMO CIRCUNSTANCIADO INSTAURADO PARA APURAR A SUPOSTA PRÁTICA DE CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. PEDIDO DE TRANCAMENTO. REQUERIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA QUE FOSSEM FORNECIDOS DADOS CADASTRAIS DE USUÁRIO DE TELEFONIA FIXA QUE EXPRESSAMENTE SOLICITOU A NÃO DIVULGAÇÃO DE TAIS INFORMAÇÕES. EXISTÊNCIA DE DÚVIDA SOBRE A LEGALIDADE DO PEDIDO MINISTERIAL. AUSÊNCIA DE DOLO. ATIPICIDADE MANIFESTA. CONSTRANGIMENTO EVIDENCIADO.
1. O trancamento de inquérito policial ou de ação penal é medida excepcional, só admitida quando restar provada, de forma indubitável, a ocorrência de circunstância extintiva da punibilidade, de ausência de indícios de autoria ou de prova da materialidade do delito e, ainda, da atipicidade da conduta.
2. Para a configuração do crime de desobediência, exige-se que a ordem, revestida de legalidade formal e material, seja dirigida expressamente a quem tem o dever de obedecê-la, e que o agente voluntária e conscientemente a ela se oponha.
3. No caso dos autos, percebe-se a patente atipicidade da conduta atribuída ao paciente, uma vez que pairam dúvidas sobre a legalidade da ordem emanada, inexistindo, ainda, o elemento subjetivo necessário à configuração do delito de desobediência, qual seja, o dolo.
4. Quanto à legalidade do requerimento formulado pelo Subcorregedor-Geral do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, o certo é que embora à época dos fatos existissem decisões judiciais proferidas nas instâncias ordinárias que afirmavam a legitimidade do Parquet para requisitar informações cadastrais de clientes do serviço de telefonia fixa independentemente de autorização judicial, a eficácia de tais provimentos jurisdicionais encontrava-se suspensa por força de medidas cautelares concedidas pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região e pelo Supremo Tribunal Federal.
5. Assim, havendo dúvidas acerca da própria legalidade da requisição feita pelo Ministério Público para que fossem enviados dados cadastrais de usuário de telefonia fixa que expressamente solicitou a não divulgação dessas informações, não há que se falar em prática do delito de desobediência por funcionário da empresa de telefonia que se julga impedido de fornecê-las.
6. Ademais, no que se refere ao elemento subjetivo necessário à configuração do delito previsto no artigo 330 do Código Penal, na hipótese vertente não se pode considerar que o paciente tenha deliberadamente se recusado a cumprir a determinação do Parquet, tampouco que tenha agido com inequívoca vontade de desobedecer, porquanto explicitou as razões jurídicas pelas quais entendia impossível cumprir a solicitação formulada.
7. Ordem concedida para trancar o Termo Circunstanciado n. 001/2.07.007.2857-1, em trâmite perante o 2º Juizado Especial Criminal do Foro Central de Porto Alegre/RS. (HC 130.981/RS, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 25/11/2010, DJe 14/02/2011)
Leia a íntegra do voto:
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO JORGE MUSSI (Relator):
Conforme relatado, com este habeas corpus pretende-se, em síntese, o trancamento de termo circunstanciado instaurado para apurar a suposta prática do delito de desobediência pelo paciente.
Segundo consta dos autos, o Subcorregedor-Geral do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul solicitou à Gerência Jurídica da Brasil Telecom o fornecimento dos dados de titular de linha telefônica fixa (fl. 81), pleito que não foi prontamente atendido pela citada empresa de telefonia sob o fundamento de que seria necessária autorização judicial para a disponibilização das informações requeridas (fl. 82).
O órgão ministerial reiterou a solicitação formulada, esclarecendo a “dispensabilidade da providência reclamada”, tendo em vista que não se trataria “de quebra de sigilo telefônico ou escuta judicialmente deferida”, mas apenas de “identificação de titular de linha telefônica, para fins de instrução de procedimento de natureza administrativo-disciplinar” (fl. 83).
Em resposta, a Brasil Telecom insistiu na impossibilidade jurídica de fornecimento das informações requeridas, sob o fundamento de que os usuários que solicitaram a não divulgação de seus dados cadastrais teriam direito à intimidade, informando, ainda, que existiria decisão judicial, proferida nos autos da Medida Cautelar n. 2007.04.00.020775-0, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a respaldar a negativa de cumprimento da requisição formulada (fls. 84/88).
O Subcorregedor-Geral do Ministério Público do Rio Grande do Sul determinou, então, a remessa de cópia do respectivo expediente para distribuição perante uma das varas criminais da Comarca de Porto Alegre/RS, a fim de se apurar eventual responsabilidade penal do paciente na prática do crime de desobediência (artigo 330 do Código Penal), tendo sido o feito distribuído ao 2º Juizado Especial Criminal da Comarca de Porto Alegre/RS, determinando-se a designação de audiência preliminar (fl. 110).
Impetrado habeas corpus na origem, a Turma Recursal Criminal dos Juizados Especiais do Estado do Rio Grande do Sul denegou a ordem, em acórdão que recebeu a seguinte ementa:
“HABEAS CORPUS. ALEGAÇÃO DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. SOLICITAÇÃO DE INFORMAÇÕES CADASTRAIS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. RECUSA NO FORNECIMENTO. DESIGNAÇÃO DE AUDIÊNCIA PARA OFERTA DE TRANSAÇÃO. PRETENSÃO DE SUSPENSÃO OU TRANCAMENTO DE PROCEDIMENTO PENAL. O Ministério Público não solicitou que a empresa procedesse à quebra de sigilo telefônico, buscando tão somente informação cadastral visando instruir processo, no interesse da justiça. Ausente pretensão de quebra de sigilo telefônico ou de comunicação telefônica ou, ainda, violação da intimidade do cliente da empresa de telefonia. A designação de audiência para oferta de transação penal à paciente não se constitui em ato ilegal ou configurador de abuso que admita Habeas Corpus.” (fl. 136).
Irresignada, a defesa aforou novo mandamus, o qual inicialmente não foi conhecido (fl. 207), mas teve o seu mérito apreciado após a concessão da ordem por esta colenda Quinta Turma, em aresto que restou assim resumido:
“HABEAS CORPUS. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. O trancamento da ação penal só se justifica quando, de plano, constatar-se a atipicidade do fato ou, que o acusado não é o autor ou, a existência de causa excludente de ilicitude. A via estreita do habeas corpus é imprópria para apreciação analítica da prova. Ordem denegada.” (fl. 246).
Pois bem. De tudo quanto foi exposto, tem-se que assiste razão aos impetrantes.
Inicialmente é preciso destacar que é cediço que o trancamento de inquérito policial ou de ação penal é medida excepcional, só admitida quando restar provada, de forma indubitável, a ocorrência de circunstância extintiva da punibilidade, de ausência de indícios de autoria ou de prova da materialidade do delito e, ainda, da atipicidade da conduta.
Contudo, no caso dos autos percebe-se a patente atipicidade da conduta atribuída ao paciente, uma vez que pairam dúvidas sobre a legalidade da ordem emanada pelo órgão ministerial, inexistindo, ainda, o elemento subjetivo necessário à configuração do delito de desobediência, qual seja, o dolo.
Quanto à legalidade do requerimento formulado pelo Subcorregedor-Geral do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, o certo é que embora à época dos fatos existissem decisões judiciais proferidas nas instâncias ordinárias que afirmavam a legitimidade do Parquet para requisitar informações cadastrais de clientes do serviço de telefonia fixa independentemente de autorização judicial (liminar deferida na Ação Civil Pública n. 2006.71.00.033295-7, da Seção Judiciária do Rio Grande do Sul, e Agravo de Instrumento n. 2006.04.00.034026-3, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região), a eficácia de tais provimentos jurisdicionais encontrava-se suspensa por força da medida cautelar concedida nos autos da Medida Cautelar Inominada n. 2007.04.00.020775-0, daquele mesmo Sodalício, que atribuiu efeito suspensivo ao recurso especial interposto pela Brasil Telecom S/A contra o acórdão do aludido agravo de instrumento, efeito também atribuído ao respectivo recurso extraordinário, em medida cautelar deferida pelo Supremo Tribunal Federal (Ação Cautelar n. 1928).
Denota-se, portanto, que a matéria debatida nos autos ainda não possui solução pacífica na jurisprudência dos Tribunais pátrios o que, por si só, revela a impossibilidade de se imputar ao paciente o delito de desobediência, que pressupõe a emissão de ordem legal por funcionário público.
Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci leciona que “é indispensável que o comando (determinação para fazer algo, e não simplesmente pedido ou solicitação) seja legal, isto é, previsto em lei, formal (ex: emitido por autoridade competente) e substancialmente (ex.: estar de acordo com a lei).” (Código Penal Comentado. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 1084/1085).
Assim, havendo dúvidas acerca da própria legalidade de requisição pelo Ministério Público, independentemente de ordem judicial, de dados cadastrais de usuário de telefonia fixa que expressamente solicitou a não divulgação dessas informações, não há que se falar em prática do delito de desobediência por funcionário da empresa de telefonia que se julga impedido de fornecê-las.
Ademais, no que se refere ao elemento subjetivo subjetivo necessário à configuração do delito previsto no artigo 330 do Código Penal, tem-se que o agente deve voluntária e conscientemente se opor à ordem legal emanada de funcionário público.
Como visto, na hipótese vertente não se pode considerar que o paciente tenha deliberadamente se recusado a cumprir a determinação do Ministério Público, tampouco que tenha agido com inequívoca vontade de desobedecer, porquanto explicitou as razões jurídicas pelas quais entendia impossível cumprir a solicitação formulada.
Desse modo, não sendo certa a legalidade do requerimento ministerial dirigido à Brasil Telecom, bem como não havendo dolo do paciente em descumpri-lo, inviável o prosseguimento da investigação instaurada na origem.
Ante o exposto, concede-se a ordem para trancar o Termo Circunstanciado n. 001/2.07.007.2857-1, em trâmite perante o 2º Juizado Especial Criminal do Foro Central de Porto Alegre/RS.
É o voto.
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