STJ: a assistência jurídica prevista na Lei Maria da Penha é obrigatória, mesmo perante o tribunal do júri
No Processo em segredo de justiça, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), decidiu que “1. A assistência jurídica qualificada prevista na Lei Maria da Penha é obrigatória, mesmo perante o Tribunal do Júri.
- A nomeação automática da Defensoria Pública como assistente qualificada opera como medida de tutela provisória, à míngua de manifestação expressa da ofendida, que pode optar por advogado particular”.
Informações do inteiro teor:
As questões em discussão consistem em saber se (1) é obrigatória a chamada “assistência jurídica qualificada”, prevista nos artigos 27 e 28 da Lei Maria da Penha, e se tem aplicação perante o Tribunal do Júri; (2) se atuação da Defensoria Pública em polos opostos nos mesmos autos configura ofensa à sua unidade e indivisibilidade; (3) se é legítima a atuação compulsória da Defensoria Pública como assistente da vítima de violência doméstica e familiar contra a mulher, e se isso viola o direito de livre escolha da ofendida.
Inicialmente, cumpre asseverar que a atuação da Defensoria Pública em polos opostos nos mesmos autos não configura ofensa à sua unidade e indivisibilidade (CF, art. 134, § 4º). A natureza institucional da Defensoria, que a distingue dos advogados privados, não obsta que defensores públicos diversos, investidos de independência funcional (LC n. 80/1994, art. 4º, § 6º), atuem simultaneamente em defesa do réu e da vítima de violência doméstica e familiar contra a mulher no mesmo processo, desde que ausente qualquer identidade subjetiva entre os membros que os patrocinam.
A Lei Maria da Penha traz diversos mecanismos, não apenas para coibir e prevenir a violência, mas para apoiar as mulheres vítimas dessa mazela social. Nesse contexto, albergou preceitos cogentes e de eficácia plena. Entre eles, o disposto no artigo 27, in verbis: “Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei”. Trata-se de norma de comando vinculante, sem qualquer margem para discricionariedade judicial. O verbo “deverá” exprime mandamento obrigatório, não autorizando exegese que condicione sua eficácia à manifestação de vontade da vítima, sob pena de malferimento à própria mens legis do diploma.
O artigo 28, por sua vez, garante à mulher o acesso aos serviços da Defensoria Pública ou de assistência judiciária gratuita “nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado”, ou seja, direito de assistência jurídica distinta da prestada ao ofensor, de forma a se assegurar especialização e sensibilidade.
Tais dispositivos de lei não criaram uma nova modalidade de intervenção de terceiros, apenas preconizaram a presença de advogado ou defensor público a fim de orientar, proteger e fazer valer os direitos da vítima de violência doméstica do sexo feminino. A representação processual da vítima prevista nos referidos artigos da Lei n. 11.340/2006 visa, ainda, evitar julgamentos com exteriorização de preconceitos, estereótipos e considerações depreciativas sobre o comportamento da ofendida, prevenindo-se a continuação da violência, na forma institucional.
Em relação à aplicabilidade nos feitos de competência do Tribunal do Júri, não há razões jurídicas para discordar que o instituto da assistência qualificada às vítimas de feminicídio também vige no âmbito dessa Corte especializada. A expressão “em todos os atos processuais, cíveis e criminais”, ao contrário de afastar, corrobora a necessidade da assistência especializada e humanizada no Tribunal do Júri, notadamente quando considerada a complexidade do julgamento, feito por pares, além de todas as etapas processuais existentes naquele procedimento, sem falar na maior fragilidade psicológica imprimida às vítimas de feminicídio e seus familiares.
Vale ressaltar que a tipificação do crime feminicídio, através da Lei n. 13.104/2015, impôs à análise desse grave delito sob a perspectiva de gênero, assegurando, ainda que indiretamente, o sistema protetivo da Lei Maria da Penha às vítimas sobreviventes e aos familiares de quem não dispôs de proteção estatal efetiva e veio a falecer. Isso porque é no Tribunal do Júri onde a memória da vítima sofre as maiores incursões.
A Lei n. 14.245/2021, corroborando o processo de não revitimização da vítima de violência doméstica, em relação aos atos praticados no Plenário do Júri, impôs a todas partes o respeito à sua dignidade, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, “vedando a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objetos de apuração nos autos e a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas” (CPP, art. 474-A, I e II).
É nesse contexto que se pode inferir que a assistência jurídica qualificada da vítima adquire caráter cogente também no Tribunal do Júri, devendo a mulher vítima de feminicídio, em situação de violência doméstica e familiar, estar acompanhada de advogado em todos os atos processuais.
A Lei n. 11.340/2006 criou uma modalidade de assistência obrigatória, que não comporta juízo de discricionariedade, e implica dizer que independe de autorização judicial e de oitiva do órgão acusador. Nas ações penais públicas, condicionadas ou não, não cabe ao Ministério Público defender ou pleitear interesses individuais da mulher vítima de violência doméstica. O único órgão estatal que tem por escopo garantir os direitos da vítima vulnerável é a Defensoria Pública, condição que foi erigida pela Constituição Federal de 1988.
Por fim, a nomeação judicial da Defensoria Pública sem prévia anuência da vítima não afronta a sua liberdade de escolha e nem ignora a sistemática supletiva prevista implicitamente na própria Lei Maria da Penha. Em verdade, o que a norma contempla é a obrigatoriedade da presença de defensor técnico – não necessariamente da Defensoria Pública -, sendo certo que, caso a vítima constitua advogado de sua confiança, este substituirá a Defensoria, exonerando-a do munus. A nomeação judicial opera, nesse cenário, como medida de tutela provisória, à míngua de manifestação expressa da ofendida.
INFORMAÇÕES ADICIONAIS:
Legislação
Constituição Federal (CF), art. 134, § 4º
LC n. 80/1994, art. 4º, §6º
Lei n. 11.340/2006, art. 19, art. 27 e art. 28
Código de Processo Penal (CPP), art. 474-A, I e II
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Fonte: Informativo de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – Edição nº 855, de 1 de julho de 2025 (leia aqui).
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