STJ: é inválido o laudo pericial feito a partir de mídias cujo conteúdo a defesa não pode acessar
No RHC 218.358-PI, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), decidiu que “é nulo o laudo pericial baseado em mídias cujo conteúdo integral se tornou inacessível à defesa por falha de armazenamento ao longo da cadeia de custódia”.
Informações do inteiro teor:
Cinge-se a controvérsia a determinar se é nula a prova pericial baseada em mídias cujo conteúdo integral se tornou inacessível à defesa.
O objetivo central da normatização da cadeia de custódia no Código de Processo Penal foi assegurar a autenticidade, integridade e confiabilidade da prova, desde o momento de sua coleta até o seu descarte final, mediante a adoção de um procedimento padronizado de documentação, controle e rastreabilidade.
A quebra da cadeia de custódia se caracteriza pela ocorrência de falhas em um ou mais elos do procedimento de rastreamento, controle e preservação da prova – seja de natureza física ou digital – comprometendo, de forma direta, sua integridade, autenticidade e/ou confiabilidade, podendo ensejar sua exclusão do processo.
Nesse ponto, registre-se que a particularidade do presente caso não se dá por existência de possível adulteração ou manipulação da prova a ponto de invalidá-la, já que inexistem dados que indiquem tais falhas, mas, sim, por ausência dos elementos originais que se extraviaram após a regular confecção dos respectivos laudos e incorporação aos autos.
O extravio do material periciado evidencia a ausência de adequado armazenamento e conservação da prova, impedindo o acesso à íntegra do conteúdo utilizado na elaboração dos laudos periciais, o que pode configurar, à luz do Código de Processo Penal, vício procedimental. Deve-se, portanto, avaliar as consequências fáticas e jurídicas dessa irregularidade no caso concreto, especialmente quanto ao seu potencial de violar direitos e garantias fundamentais.
Nesse norte, esclarece-se que não é sempre que a ausência de mídia ou gravação caracterizará a quebra da cadeia de custódia. A caracterização de tal vício dependerá da análise do caso concreto, considerando-se, sobretudo, a essencialidade da mídia para a reconstituição fidedigna do iter probatório e para assegurar a possibilidade de contraprova pela parte.
No caso em exame, a ausência da íntegra das gravações e imagens relativas ao dia do sinistro, bem como das simulações realizadas, comprometeu a adequada análise técnica necessária à eventual produção de contraprova. A impossibilidade de acesso às fontes originais fragilizou, no caso, a tentativa de contestação ou complementação do trabalho pericial, resultando na inefetividade do contraditório, na violação da ampla defesa e na quebra da paridade de armas entre as partes.
Havia o dever jurídico de conservação do objeto original da prova. Em se tratando especialmente de prova de natureza cautelar, produzida, excepcionalmente, sem observância do contraditório prévio das partes, realizada em procedimento submetido a controle judicial diferido, faz-se ainda mais relevante assegurar, em momento processualmente oportuno, notadamente durante a fase instrutória, a possibilidade de a parte opor-se adequadamente a essa prova, de apresentar, inclusive, uma contraprova.
Portanto, diante da constatada falha no armazenamento das mídias e gravações, deve ser reconhecida a quebra de cadeia de custódia e a consequente nulidade dos respectivos laudos periciais.
Leia a ementa:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. NULIDADE DO ACÓRDÃO QUE JULGOU OS EMBARGOS DECLARATÓRIOS NA ORIGEM. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO. MERA DISCORDÂNCIA COM O RESULTADO DO JULGAMENTO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL NÃO CARACTERIZADA. EXTRAVIO DE MÍDIAS CONTENDO GRAVAÇÕES E SIMULAÇÕES PERICIADAS. QUEBRA DA CADEIA DE CUSTÓDIA CONFIGURADA. NULIDADE DOS RESPECTIVOS LAUDOS PERICIAIS. NECESSÁRIO DESENTRANHAMENTO DOS AUTOS. 1. A questão ora debatida foi enfrentada, tendo, todavia, o Tribunal de origem decidido de maneira contrária à defesa. Não se trata de omissão, mas, sim, de discordância com o resultado do julgamento, o que não configura negativa de prestação jurisdicional. 2. A cadeia de custódia constitui um dos pilares fundamentais da validade da prova penal, estando, atualmente, prevista expressamente no Código de Processo Penal, após a promulgação da Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime), que introduziu os arts. 158-A a 158-F. O objetivo central dessa normatização foi assegurar a autenticidade, integridade e confiabilidade da prova, desde o momento de sua coleta até o seu descarte final, mediante a adoção de um procedimento padronizado de documentação, controle e rastreabilidade. 3. A quebra da cadeia de custódia caracteriza-se pela ocorrência de falhas em um ou mais elos do procedimento de rastreamento, controle e preservação da prova – seja de natureza física ou digital – comprometendo, de forma direta, sua integridade, autenticidade e/ou confiabilidade, podendo ensejar sua exclusão do processo. 4. Embora conste dos autos que, de fato, os laudos foram produzidos por peritos oficiais, com algoritmo hashes e que foram fornecidos links para acesso das imagens e vídeos, o acórdão cita, expressamente, a existência de possíveis avarias nos CDs que acompanhavam as perícias (fl. 217), o que leva à conclusão de que foram fornecidos links inacessíveis à defesa. 5. A particularidade do presente caso não se dá por existência de possível adulteração ou manipulação da prova a ponto de invalidá-la, já que inexistem dados que indiquem tais falhas, mas sim por ausência dos elementos originais que se extraviaram após a regular confecção dos respectivos laudos e incorporação aos autos. 6. O extravio do material periciado evidencia a ausência de adequado armazenamento e conservação da prova, impedindo o acesso à íntegra do conteúdo utilizado na elaboração dos laudos periciais, o que pode configurar, à luz do Código de Processo Penal, vício procedimental. Deve-se, portanto, avaliar as consequências fáticas e jurídicas dessa irregularidade no caso concreto, especialmente quanto ao seu potencial de violar direitos e garantias fundamentais. 7. A ausência da íntegra das gravações e imagens relativas ao dia do sinistro, bem como das simulações realizadas, comprometeu a adequada análise técnica necessária à eventual produção de contraprova. A impossibilidade de acesso às fontes originais fragilizou, no caso, a tentativa de contestação ou complementação do trabalho pericial, resultando na inefetividade do contraditório, na violação da ampla defesa e na quebra da paridade de armas entre as partes. 8. Constatada falha no armazenamento das mídias e gravações, reconheço a quebra de cadeia de custódia e a consequente nulidade dos respectivos laudos periciais, DEMANDA n. 00026275-35 e DEMANDA n. 00026492-09, devendo tais documentos ser desentranhados dos autos. 9. Recurso ordinário parcialmente provido para declarar a nulidade dos laudos periciais e determinar o desentranhamento dos autos. (RHC n. 218.358/PI, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 4/11/2025, DJEN de 11/11/2025.)
Falo mais sobre esse assunto no Curso Talon. Clique aqui para saber mais.
Fonte: Informativo de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – Edição nº 870, de 11 de novembro de 2025 (leia aqui).
Leia também:
TRF4: homem é condenado por armazenar e compartilhar material com pornografia infantil









