Precisamos de mais filtros no processo penal
Há um ano, escrevi um texto propondo o aumento da liberdade de atuação dos Delegados, para que eles possam deixar de instaurar o inquérito policial quando estiverem diante de um fato que, evidentemente, mereça a aplicação do princípio da insignificância ou a incidência de alguma excludente de ilicitude (clique aqui).
Naquele momento, observei a discordância de muitos colegas quanto à atribuição de mais poderes aos Delegados de Polícia. Inclusive, percebi que muitos Advogados de defesa não gostaram da sugestão, apesar de ser mais uma “instância” para evitar uma condenação criminal.
A questão é simples: no entendimento atual, os Delegados devem instaurar o inquérito e não podem determinar o arquivamento. Uma vez instaurado o inquérito, o seu arquivamento ocorrerá, normalmente, apenas se houver requerimento do Ministério Público e concordância do Juiz (que pode aplicar o absurdo art. 28 do Código de Processo Penal). Portanto, permitir que os Delegados deixem de instaurar o inquérito em alguns casos (insignificância e excludentes de ilicitude) seria uma forma de evitar a submissão de algumas pessoas a um sofrimento processual que, ao final, resultará em absolvição.
Recentemente, recebi uma mensagem de um colega que queria saber a minha opinião quanto ao tribunal do júri. De forma sucinta, afirmei que a proposta do júri (julgamento pelo povo) é muito boa, desde que a decisão de pronúncia realmente seja um filtro para levar ao plenário do júri apenas aqueles indivíduos que seriam condenados por um Juiz togado.
Em outras palavras, discordo da aplicação do princípio do “in dubio pro societate” na fase da pronúncia, porque essa decisão passa a ser um filtro meramente formal, com inúmeros trechos afirmando que, na dúvida, deve-se submeter o caso aos jurados, Juízes naturais dos crimes dolosos contra a vida.
Também observamos trechos que falam sobre a impossibilidade de afastar qualificadoras na pronúncia, salvo se comprovadamente improcedentes. Ou seja, na dúvida, as qualificadoras integram a pronúncia e são objeto de quesitação aos jurados. Inverte-se o ônus da prova, devendo o réu provar que não ocorreu o fato (motivação ou forma de execução) narrado na denúncia.
Um dos grandes problemas no processo penal é a falta de filtro ou a existência de filtros meramente formais. Há vários exemplos.
De início, o Ministério Público apenas deveria denunciar quando houvesse justa causa. Entretanto, muitos Promotores denunciam sem um conjunto de indícios mínimos de autoria e materialidade, com a pretensão de produzirem provas durante a instrução.
O recebimento da denúncia, como é sabido, deveria ser o momento de atestar a existência de justa causa. Caso contrário, deveria ser rejeitada a denúncia (art. 395, III, do CPP). Contudo, o recebimento da exordial acusatória virou apenas uma formalidade de pouquíssimas linhas.
Da mesma forma, após o recebimento, a citação e a apresentação da resposta à acusação, o próximo “filtro” é praticamente inexistente. Trata-se da análise das hipóteses de absolvição sumária. Mais uma vez, os Magistrados usam poucas linhas no afastamento da absolvição sumária e, em seguida, marcam a data da audiência.
A sentença também é um filtro na primeira instância. Aliás, é o filtro mais importante e aguardado. Há, contudo, Juízes que raramente discordam do pedido de condenação manifestado pela acusação nas alegações finais.
Por fim, nos Tribunais Superiores, o filtro é enfraquecido, considerando o entendimento de que não cabe ao STF e ao STJ a análise de questões fático-probatórias (súmula 7 do STJ).
Portanto, há poucos filtros separando o acusado da condenação com trânsito em julgado. De fato, alguns desses filtros viraram meras formalidades.
Dessa forma, a inserção de novos filtros – como a possibilidade de que Delegados deixem de instaurar inquérito em alguns casos e o afastamento definitivo do “in dubio pro societate” na decisão de pronúncia – produziria um controle maior e mais efetivo das decisões condenatórias.
Além disso, as condenações teriam mais legitimidade, porque passariam pelo crivo de mais órgãos, o que reduziria as chances de injustiças e insatisfações.
Em suma, precisamos de mais filtros no processo penal. Ademais, também devemos atribuir mais efetividade aos filtros atualmente existentes, sobretudo por meio do fim da utilização do princípio do “in dubio pro societate”, que não tem previsão constitucional.
Veja também: