No RHC 70.141-RJ, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 7/2/2017, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que é típica e antijurídica a conduta de policial civil que, mesmo autorizado a portar ou possuir arma de fogo, não observa as imposições legais previstas no Estatuto do Desarmamento, que impõem registro das armas no órgão competente (clique aqui).
Informações do inteiro teor:
Trata-se de recurso em habeas corpus em que se pretende ver reconhecida a atipicidade da conduta imputada a delegado de polícia civil consistente na suposta prática dos delitos de posse irregular e porte ilegal de arma de fogo de uso permitido (arts. 12 e 14 c/c o 20, todos da Lei n. 10.826/2003).
A denúncia imputa ao policial a prática de dois crimes: posse irregular e porte ilegal de arma de fogo de uso permitido. Tais condutas consistiriam, em síntese, no seguinte: 1) posse e manutenção, em sua residência e sem autorização ou em desacordo com determinação legal, de um revólver registrado apenas na Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos do Rio de Janeiro, além de 48 munições; 2) porte, mesmo na condição de Delegado de Polícia, sem autorização e em desacordo com determinação legal, de um revólver igualmente registrado apenas na Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos (DFAE).
Em observância ao princípio da legalidade, foi promulgada a Lei n. 10.826/2003, depois de várias iniciativas em prol do desarmamento. A mens legis do denominado Estatuto do Desarmamento foi proteger a incolumidade pública, por meio de tipos penais e de outros dispositivos destinados ao maior controle de armas de fogo pelo governo. Nesse cenário, foi instituído o Sistema Nacional de Armas (SINARM), órgão competente para, entre outras atividades, identificar as características e a propriedade de armas de fogo. O art. 3° da Lei n. 10.826/2003 dispõe ser “obrigatório o registro de arma de fogo no órgão competente”.
Para adquirir arma de fogo, o interessado deverá declarar a efetiva necessidade e preencher vários requisitos legais, entre eles a comprovação de idoneidade – mediante apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais e de não estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal – e a apresentação de documentos comprobatórios de ocupação lícita, residência certa, capacidade técnica e aptidão psicológica para o manuseio do artefato. Mesmo depois de cumpridos os requisitos legais e expedida a autorização de compra de arma de fogo pelo SINARM, deverá ser requerido o certificado de registro, emitido pela Polícia Federal. O certificado federal – e não a autorização do SINARM – conferirá ao titular da arma de fogo o direito de possuí-la no interior de sua residência ou domicílio, ou dependência desses, ou, ainda, no local de trabalho, desde que seja ele o titular ou o responsável legal pelo estabelecimento.
Portanto, o cidadão previamente autorizado pelo SINARM, ao adquirir arma de fogo de uso permitido, somente poderá manter o artefato em sua residência mediante certificado expedido pela Polícia Federal, documento temporário e sujeito ao preenchimento de requisitos legais, que deverão ser comprovados periodicamente para fins de revalidação. Afasta-se, ainda, a alegação de que a condição de Delegado de Polícia autorizaria a posse e o porte das armas, pois essa autorização deve ser complementada com a necessidade do cumprimento das formalidades legais previstas na Lei n. 10.826/2003.
Por fim, não é possível a aplicação, à hipótese concreta, do princípio da adequação social, formulado por Hans Welzel, vetor geral de hermenêutica, segundo o qual, dada a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal, não se pode reputar como criminosa uma ação ou omissão aceita ou tolerada pela sociedade, ainda que formalmente subsumida a um tipo legal incriminador.
Sem embargo de opiniões contrárias, mesmo na condição de Delegado de Polícia, possuir armas de fogo e munições, de uso permitido, sem registro no órgão competente e que somente são descobertas após cumprimento de mandado judicial de busca e apreensão não é uma conduta socialmente tolerável e adequada no plano normativo penal. Por fim, sob a ótica do princípio da lesividade, tem-se, aqui, o perigo à incolumidade pública representado pelo agente que possui arma de fogo ou somente munições sem certificado. Em função dos próprios objetivos da Lei do Desarmamento, o postulado da insignificância deve ser aferido caso a caso, de forma excepcional, para verificar a presença dos vetores já assinalados pelo Supremo Tribunal Federal.
Confira a ementa do RHC 70.141/RJ:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. POSSE E PORTE ILEGAL DE ARMAS DE FOGO E MUNIÇÕES DE USO PERMITIDO. AUSÊNCIA DE CERTIFICADO FEDERAL. DELEGADO DE POLÍCIA CIVIL. IRRELEVÂNCIA. CONDUTA TÍPICA. TRANCAMENTO DO PROCESSO IMPOSSIBILIDADE. RECURSO NÃO PROVIDO.
1. O trancamento do processo em habeas corpus somente é cabível quando ficarem demonstradas, de plano, a atipicidade da conduta, a absoluta falta de provas da materialidade do crime e de indícios de autoria ou a existência de causa extintiva da punibilidade.
2. É típica e antijurídica a conduta de policial civil que, mesmo autorizado a portar ou possuir arma de fogo, não observa as imposições legais previstas no estatuto do Desarmamento, que impõem registro das armas no órgão competente.
3. É incabível a aplicação do princípio da adequação social, segundo o qual, dada a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal, não se pode reputar como criminosa uma ação ou uma omissão aceita e tolerada pela sociedade, ainda que formalmente subsumida a um tipo legal incriminador. Possuir armas de fogo e munições, de uso permitido, sem certificados federais e que só vieram a ser apreendidas pelo Estado após cumprimento de mandado de busca e apreensão, não é uma conduta adequada no plano normativo.
4. Por fim, sob a ótica do princípio da lesividade, o recorrente não preenche os vetores já assinalados pelo Supremo Tribunal Federal para o reconhecimento do princípio da insignificância, tais como a mínima ofensividade da conduta, nenhuma periculosidade social da ação, reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada, ante os armamentos apreendidos (dois revólveres calibre 38 e 48 munições).
5. Recurso não provido.
(STJ, Sexta Turma, RHC 70.141/RJ, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 07/02/2017)
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