Entrevista publicada no site do Superior Tribunal de Justiça no dia 07 de março de 2019 (leia aqui).
Uma das principais – e mais polêmicas – novidades do anteprojeto de reforma da Lei de Drogas apresentado à Câmara dos Deputados no início deste mês é a proposta de descriminalização da aquisição, posse, armazenamento, guarda, transporte ou compartilhamento de entorpecentes para uso pessoal, limitado à quantia de dez doses (a quantidade de cada dose por tipo de droga será definida pelo Poder Executivo).
Segundo o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Rogerio Schietti Cruz, vice-presidente da comissão de juristas que elaborou o anteprojeto, a descriminalização é uma tendência mundial e foi incluída no texto após discussão com especialistas e análise da experiência de vários países.
Ao mesmo tempo em que busca reforçar o combate ao grande tráfico de drogas e ao seu financiamento (leia na entrevista do ministro Ribeiro Dantas, presidente da comissão de juristas), o anteprojeto estabelece diretrizes para políticas públicas de prevenção ao uso de drogas e de redução de danos, para prevenção ao uso problemático de entorpecentes e também para tratamento de dependentes.
O ministro Rogerio Schietti comenta na entrevista abaixo alguns pontos da redação final do anteprojeto, com destaque para a proposta de descriminalização do uso pessoal. De acordo com o magistrado, que preside a Terceira Seção do STJ (especializada em matérias de direito penal), a legislação atual contribui para que o país tenha um alto grau de encarceramento, o que acaba servindo de estímulo para o crescimento das organizações criminosas.
“Cerca de 30% dos homens condenados cumprem pena por crimes ligados ao tráfico, e entre as mulheres esse percentual chega a 70%. As facções se alimentam da mão de obra que entra nos presídios por crimes pequenos”, diz o ministro.
Confira a entrevista:
Uma das preocupações do anteprojeto é estabelecer diferença entre dependência e uso problemático de drogas. Essa distinção é nova?
Rogerio Schietti – Todo nosso trabalho é fruto de leitura e consulta a pessoas que nos trouxeram o que há de mais atual no mundo sobre o tema. A questão das drogas ilícitas envolve uma miríade de classificações. Existe o usuário eventual, esporádico, que não necessariamente se torna dependente. Há os dependentes e há aqueles que, mesmo não sendo dependentes, acabam tendo problemas pessoais por causa do uso frequente: perdem o emprego, têm conflitos familiares, enfim, geram situações que lhes trazem problemas e por isso são definidos como usuários problemáticos. Tentamos dar respostas correspondentes a cada uma das situações, mantendo ao mesmo tempo um tratamento rigoroso ao tráfico.
Foi nesse contexto que surgiu a proposta de descriminalização?
Rogerio Schietti – Sim, para a pessoa que faça uso até um limite de dez doses, propomos sua retirada do sistema criminal, pois é um problema individual e, eventualmente, de saúde pública. Estamos respeitando a autodeterminação do indivíduo. Se o uso causar problemas, pode haver a intervenção do Estado, mas o indivíduo somente será alcançado pelas garras da Justiça quando se envolver com o tráfico de drogas. A tendência mundial é essa. Se nós estivermos errados, o mundo todo também estará.
Quais foram os modelos internacionais observados pela comissão para a definição da proposta da descriminalização?
Rogerio Schietti – Foram analisados vários modelos no mundo todo, desde os que não punem na esfera criminal e usam apenas sanções cíveis, como a multa, até os modelos mais draconianos inspirados na iniciativa de “guerra às drogas”, em que uma dose para consumo próprio pode gerar a aplicação da pena de morte. Há modelos que descriminalizam e legalizam, como o do Uruguai, que criou uma autarquia para regular esse novo mercado.
Algum desses modelos internacionais foi mais inspirador?
Rogério Schietti – Todos os estudiosos do assunto e a literatura especializada colocam Portugal como o modelo que mais deu certo em relação a uma nova política relacionada a drogas ilícitas. Reconhecemos que o Brasil não tem condições de dar o mesmo passo, por isso demos um passo tímido com a descriminalização do uso limitado. É o que achamos possível para nossa realidade. Há quem defenda a legalização do comércio, mas há uma deficiência do Estado em fornecer e controlar serviços, então não poderíamos deixar o Estado administrar isso. Simplesmente não vamos mais criminalizar a conduta das pessoas que fazem uso dessas substâncias sem consequências maiores a terceiros. A proposta é não mais punir criminalmente usuários quando flagrados na posse de até dez doses.
Qual o parâmetro adotado para a definição desse limite de dez doses?
Rogerio Schietti – É muito difícil estabelecer o parâmetro. Em alguns países o limite é cem gramas de cannabis; em outros, 40. Outros fixam limites por dias de consumo. É importante destacar que estabelecemos uma presunção que pode ser desconsiderada pela realidade dos fatos. O juiz pode avaliar se é realmente caso de usuário ou se é um traficante com pequena quantidade. Futuramente, esse quantitativo deverá ser definido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Como essa regulamentação pode demorar, o anteprojeto estabeleceu um limite provisório.
No Brasil, a questão das drogas leva ao encarceramento em massa. Isso também pesou na hora de formular as propostas?
Rogerio Schietti – Também. Nós observamos que na vigência da lei atual o grau de encarceramento em geral aumentou muito, e os crimes relacionados ao tráfico tiveram um aumento muito maior. Atualmente, cerca de 30% dos homens condenados cumprem pena por crimes ligados ao tráfico, e entre as mulheres esse percentual chega a 70%. Pior que a superlotação do sistema penitenciário são as condições de cumprimento de pena. As facções se alimentam da mão de obra que entra nos presídios por crimes pequenos. Esses pequenos flagrantes não afetam o comércio de drogas, pois quem é preso logo é substituído na função. São pessoas que poderiam ter outra resposta punitiva do Estado e, no anteprojeto, procuramos tratar cada situação de tráfico com a respectiva gravidade, dosando as penas de modo proporcional.
Há também uma preocupação com a política de redução de danos. De que forma esse conceito está presente no anteprojeto?
Rogerio Schietti – No texto apresentado, há uma afirmação da política de redução de danos para as hipóteses de intervenção social do Estado para que, na medida do possível, uma eventual dependência seja vencida ou, ao menos, controlada, conforme cada caso.
É possível prever os efeitos que a descriminalização pode ter sobre o consumo de drogas e a criminalidade em geral?
Rogerio Schietti – Este é um tema sobre o qual estamos sem condições de fazer prognósticos seguros. São vários fatores que levam uma sociedade a conviver com drogas e crimes. É possível que haja no primeiro momento um aumento no consumo, pela eliminação de uma resposta muito drástica que possa inibi-lo, porém o que importa é que esses usuários não mais serão tratados como criminosos. Deixamos muito claro na apresentação do anteprojeto que é preciso uma política forte do Estado em relação às drogas da mesma forma como foi feito com o cigarro. O consumo do tabaco diminuiu drasticamente nos últimos anos. O número de fumantes no Brasil caiu cerca de 36% nos últimos dez anos porque há uma campanha muito forte que alerta para os riscos desse produto. Nenhum de nós quer um filho ou parente como usuário de drogas, e por isso eles devem ser alertados dos riscos.
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