O exercício regular de um direito
O exercício regular de um direito está previsto como uma das espécies de excludentes de ilicitude no art 23, III, do Código Penal.
Trata-se de um fato típico que tem sua ilicitude afastada pelo ordenamento jurídico. Em outras palavras, a conduta é tipificada como crime, mas, por opção legislativa, passa a ser considerada como um direito de agir, diante de uma permissão do ordenamento jurídico.
Por se tratar de uma excludente de ilicitude prevista na Parte Geral do Código Penal (assim como a legítima defesa, o estado de necessidade e o estrito cumprimento de um dever legal), o exercício regular de um direito é aplicável a todos os crimes descritos na Parte Especial do Código Penal, estendendo-se, ainda, à legislação penal especial.
Diferentemente da legítima defesa, excludente de ilicitude mais alegada e reconhecida, o exercício regular de um direito tem menos incidência prática. Entretanto, há casos em que essa excludente se apresenta como uma boa tese defensiva.
De acordo com algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça, a configuração do exercício regular de um direito exige que a conduta esteja, obrigatoriamente, de acordo com o ordenamento jurídico vigente, incluindo os princípios constitucionais e infraconstitucionais.
Cita-se, por exemplo, um caso julgado pelo STJ no final de 2018, em que a resposta judicial para a defesa alegada foi a impossibilidade de caracterização do exercício regular de um direito, haja vista que a conduta não estava em harmonia com o ordenamento jurídico, notadamente com os princípios administrativos da legalidade e da impessoalidade (STJ – APn: 629 RO 2010/0054273-4, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 28/06/2018, CE – CORTE ESPECIAL, Data de Publicação: DJe 10/08/2018).
Na decisão, consta que “para que o exercício de um direito seja regular e exista a exclusão da ilicitude, não podem ser ultrapassados os limites, determinados ou explícitos, com que o ordenamento jurídico extrapenal faculta o seu exercício”. Em seguida, complementa que, no caso em comento, “a interpretação dada ao réu à norma interna permissiva é abusiva e contrária aos princípios administrativo-constitucionais da legalidade e da impessoalidade, não sendo, assim, possível o afastamento da antijuridicidade”.
O caso, sob relatoria da Ministra Nancy Andrighi, consistia em uma denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal contra um ex-Deputado do Estado de Rondônia, que supostamente teria solicitado, durante o seu mandato, ao Presidente da Assembleia Legislativa, a emissão de 16 passagens aéreas em favor de terceiros e sem finalidade pública, entre março de 2003 e junho de 2005.
A defesa argumentou que o réu agiu conforme o exercício regular de um direito, porque tinha como objetivo agir em benefício das pessoas que o elegeram, utilizando as viagens para lutar pelos seus direitos fundamentais. Assim, alegou que os Deputados Estaduais têm a prerrogativa de requererem a emissão de passagens aéreas em hipóteses excepcionais, além de ter expressa autorização da autoridade competente, conforme a regulamentação da Assembleia Legislativa, o que afastaria a antijuridicidade da conduta.
Entretanto, como referido anteriormente, a tese de exercício regular de um direito não foi acolhida.
Uma situação muito comum de invocação dessa excludente de ilicitude consiste na correção disciplinar exercida pelos pais em relação aos seus filhos menores, desde que dentro dos limites estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente, ou seja, sem castigo físico, tampouco alguma forma de tratamento cruel ou degradante.
Sobre o tema, segue uma decisão recente:
PENAL E PROCESSO PENAL. LESÃO CORPORAL. EXERCÍCIO REGULAR DIREITO DO JUS CORRIGENDI. AUSÊNCIA DE EXCESSO DOS MEIOS DISCIPLINADORES. EXCLUSÃO DE ILICITUDE. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA. PEDIDO PREJUDICADO.
1. Não há crime quando o agente pratica o fato em estrito cumprimento no exercício regular de direito (art. 23, inciso III do Código Penal).
2. Verifica-se a excludente de ilicitude na conduta do réu que se utilizou de meios pedagógicos no mero exercício do direito de correção (jus corrigendi), sem cometer qualquer excesso.
3. Julga-se prejudicado o pedido de execução provisória de pena em face da absolvição do apelante.
4. Recurso conhecido e provido.
(TJ-DF 20160810072306 DF 0007024-30.2016.8.07.0008, Relator: JOÃO BATISTA TEIXEIRA, Data de Julgamento: 30/08/2018, 3ª TURMA CRIMINAL, Data de Publicação: Publicado no DJE : 04/09/2018 . Pág.: 197/202)
Em outro julgamento, o Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, ao analisar uma imputação de denunciação caluniosa, proferiu uma decisão absolutória, nos seguintes termos:
PENAL E PROCESSO PENAL – APELAÇÃO CRIMINAL – DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA – DOLO DIRETO NÃO CONFIGURADO – EXERCÍCIO REGULAR DO DIREITO DE PETIÇÃO – ARTIGO 5º, XXXIV, ‘a’, CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 – CAUSA EXCLUDENTE DE ILICITUDE – PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – ABSOLVIÇÃO.
1) A Constituição Federal de 1988 assegura, em seu artigo 5º, XXXIV, ‘a’, o direito fundamental de petição aos poderes públicos, de modo que o seu exercício regular é causa justificante do oferecimento de notitia criminis (art. 23, III, do Código Penal), não sendo o arquivamento do pedido causa suficiente a tornar ilícita a conduta do noticiante.
2) O crime de denunciação caluniosa, previsto no artigo 339, do Código Penal, exige, para sua configuração, que a conduta imputada à vítima também seja definida como crime, bem como que a imputação seja objetiva e subjetivamente falsa, ou seja, que, além de a suposta vítima ser inocente, o sujeito ativo tenha inequívoca ciência dessa inocência.
3) Apelo provido.
(TJ-AP – APL: 00571502420138030001 AP, Relator: Desembargador GILBERTO PINHEIRO, Data de Julgamento: 03/10/2017)
Conforme se observa na ementa, o TJ-AP absolveu com base em dois fundamentos: exercício regular do direito de petição e não configuração do dolo direto.
No que concerne ao exercício regular do direito de petição, apontou que se trata de um direito constitucional e que a conduta não passa a ser ilícita em virtude do arquivamento do pedido. Nesse ponto, a decisão é irreparável, considerando que o exercício regular de um direito (excludente de ilicitude) não pode se transformar, posteriormente, em um fato ilícito como decorrência da negativa da petição formada (no caso, uma “notitia criminis”). A conduta é lícita ou ilícita no momento de sua prática, e não depois, quando avaliada a (im)procedência pela autoridade competente.
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