O inquérito policial na jurisprudência do STJ
No texto anterior, tratei de 4 decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o termo circunstanciado (veja aqui).
No presente escrito, citarei e analisarei algumas decisões do STJ que tratam do inquérito policial.
De início, impende ressaltar que, conforme o enunciado da súmula nº 444 do STJ, “é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”. Essa súmula impede que inquéritos policiais sejam utilizados como fundamento para a elevação da pena-base em virtude da circunstância judicial referente aos maus antecedentes. Portanto, inquéritos policiais em curso não são antecedentes e não podem repercutir na dosimetria da pena, sob pena de violação do princípio da presunção de inocência.
Em decisão recente, o STJ entendeu da seguinte forma quanto ao inquérito policial:
[…]
3. Se a defesa teve acesso amplo e integral aos autos do inquérito policial, não há falar em ocorrência de nulidade ante a ausência de juntada aos autos da ação penal de cópia integral do inquérito, por meio eletrônico, eis que não houve cerceamento nem prejuízo à defesa.
[…]
(AgRg nos EDcl no REsp 1633461/RS, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 28/03/2017, DJe 04/04/2017)
Portanto, considerou-se que não é nulidade a ausência de juntada do inquérito policial, por meio eletrônico, aos autos da ação penal. Trata-se de entendimento que possui vários desdobramentos.
Sempre que se fala sobre alterações na legislação processual penal, instaura-se o debate sobre o desentranhamento do inquérito policial após o recebimento da denúncia. Em outras palavras, muitos doutrinadores defendem que a legislação deveria ser alterada para que o inquérito policial somente permanecesse nos autos até o recebimento da denúncia, para que, após o recebimento, o inquérito seja desentranhado dos autos, de modo a não contaminar a análise do julgador quando do proferimento da sentença. Ocorre que há muita resistência legislativa quanto a essa alteração.
De qualquer forma, o STJ entendeu que a ausência de juntada do inquérito policial aos autos da ação penal não gera nulidade, desde que tenha sido dado à defesa acesso amplo e integral. Assim, apesar de não haver disposição legal determinando o desentranhamento do inquérito policial, há entendimento jurisprudencial no sentido de que não há nulidade se o inquérito não for juntado. Estranhamente, a inércia do Poder Legislativo e essa decisão do STJ – que são contraditórias – prejudicam a defesa.
Por outro lado, de forma correta, o STJ já entendeu, como determina claramente o art. 311 do Código de Processo Penal, que não é possível, de ofício, a decretação de prisão preventiva na fase policial, “in verbis”:
PROCESSUAL PENAL E PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. ROUBO MAJORADO. PRISÃO DECRETADA DE OFÍCIO NA FASE DE INQUÉRITO POLICIAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL RECONHECIDO. HABEAS CORPUS CONCEDIDO.
1. A decretação da prisão preventiva de ofício somente é admitida no curso da ação penal, e na fase de inquérito policial somente caberá a decretação da custódia, em face de requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial, devendo ser reconhecido o constrangimento ilegal.
[…]
(HC 382.226/RS, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 30/03/2017, DJe 07/04/2017)
De modo aparentemente contraditório em relação à súmula nº 444, o STJ também já manifestou o seu entendimento sobre inquérito policial nos seguintes termos:
PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. DESCAMINHO.
HABITUALIDADE CRIMINOSA. EXISTÊNCIA DE PROCESSOS ADMINISTRATIVO-FISCAIS PELA PRÁTICA DE DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE.
1. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, ao manter a rejeição da denúncia pela prática do crime de descaminho, diante da aplicação do princípio da insignificância, divergiu da orientação jurisprudencial desta Corte Superior no sentido de que a existência de outras ações penais, inquéritos policiais em curso ou procedimentos administrativos fiscais é suficiente para caracterizar a habitualidade delitiva e, consequentemente, afastar a incidência do princípio da insignificância no delito de descaminho.
2. No presente caso, há notícia nos autos de que o acusado já responde a outros procedimentos administrativos, comprovada pelo histórico de autuações aduaneiras, pela prática do crime de descaminho. Dessa forma, o afastamento do princípio da insignificância, como causa de não recebimento da denúncia, é medida que se impõe.
3. Agravo regimental não provido.
(AgRg no REsp 1647127/PR, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 16/03/2017, DJe 27/03/2017)
Percebe-se que o STJ considerou que a existência de inquéritos policiais é suficiente para caracterizar a habitualidade delitiva e, por conseguinte, afastar a aplicação do princípio da insignificância no crime de descaminho. Assim, considerou que, havendo inquéritos policiais em andamento, a conduta do descaminho é típica, ainda que o valor seja ínfimo.
Em suma, inquéritos policiais não configuram maus antecedentes para o fim de elevar a pena-base, mas podem afastar a aplicação do princípio da insignificância por significarem habitualidade delitiva.
Salienta-se, ainda, que o STJ tem entendimento de que o arquivamento do inquérito policial em razão da presença de uma causa extintiva da punibilidade é uma decisão que faz coisa julgada material, impedindo a reabertura do procedimento investigatório (HC 307.562/RS, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 07/03/2017, DJe 15/03/2017).
Por fim, o STJ, de modo coerente com a duração razoável do processo, trancou inquérito policial que se arrastava por 14 anos:
RECURSO EM HABEAS CORPUS. PRETENSÃO DE TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL. INVESTIGAÇÃO DOS CRIMES DE ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA, LAVAGEM DE DINHEIRO, FALSIDADE IDEOLÓGICA, CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO E OUTROS. ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE PRAZO. INVESTIGAÇÃO QUE PERDURA DESDE SETEMBRO DE 2002. INEXISTÊNCIA DE ACUSAÇÃO FORMAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO.
1. Embora o prazo de conclusão do inquérito policial, em caso de investigado solto, seja impróprio, ou seja, podendo ser prorrogado a depender da complexidade das investigações, a delonga por aproximadamente 14 anos se mostra excessiva e ofensiva ao princípio da razoável duração do processo.
2. Mostra-se inadmissível que, no panorama atual, em que o ordenamento jurídico pátrio é norteado pela razoável duração do processo (no âmbito judicial e administrativo) – cláusula pétrea instituída expressamente na Constituição Federal pela Emenda Constitucional n. 45/2004 -, um cidadão seja indefinidamente investigado, transmutando a investigação do fato para a investigação da pessoa. Precedente.
3. Não se desconhece o fato de que a investigação é complexa, contando com indícios da prática de crimes de lavagem de dinheiro, falsidade ideológica, crimes contra o sistema financeiro e outros, por meio de associação criminosa atuante por quase vinte Estados da Federação, além da criação de “empresas de fachada”, nacionais e estrangeiras, em nome de “testas de ferro” e “laranjas” das atividades desenvolvidas, bem como manobras contratuais e contábeis efetuadas para “maquiar” o patrimônio dos efetivos sócios das empresas.
4. Colocada a situação em análise, verifica-se que há direitos a serem ponderados. De um lado, o direito de punir do Estado, que vem sendo exercido pela persecução criminal que não se finda. E, do outro, da recorrente em se ver investigada em prazo razoável, considerando-se as consequências de se figurar no pólo passivo da investigação criminal e os efeitos da estigmatização do processo.
5. Recurso provido para trancar o Inquérito Policial n.
2002.38.01.005073-9, em trâmite na 2ª Vara Federal da Seção Judiciária da Bahia, sem prejuízo da abertura de nova investigação, caso surjam provas substancialmente novas. O trancamento deve abranger os demais investigados, que se encontram em situação fático-processual idêntica.
(RHC 61.451/MG, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 14/02/2017, DJe 15/03/2017)
A decisão acima demonstra que, em que pese a conclusão do inquérito policial de investigado solto tenha um prazo impróprio, é possível a aplicação da duração razoável do processo (judicial e administrativo) para trancar o inquérito, garantindo, destarte, que o Estado não prolongue indevidamente o seu direito de punir. O estigma de investigado/réu não pode se perpetuar por mera inércia das autoridades que atuam na persecução criminal.
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