Penas cruéis
A crueldade das penas não é admitida no Brasil (art. 5º, XLVII, “e”, da Constituição Federal), em que pese a pena seja faticamente cruel na sua execução e, da mesma forma, para afirmar se alguém é ou não culpado, após muitos anos de sofrimento psicológico com um processo penal.
Sobre o sofrimento causado para decidir se alguém é culpado ou inocente, Carnelutti (2009, p. 66) destaca que, “infelizmente, a justiça humana está feita de tal maneira que não somente se faz sofrer os homens porque são culpados, senão também para saber se são culpados ou inocentes”. Sofrem com a crueldade do processo penal até mesmo aqueles que, ao final, não sofrerão uma pena.
É difícil definir a crueldade da pena quando outras crueldades estão separadas, com previsão específica, na nossa Constituição Federal.
Assim, as crueldades geradas pelas penas de morte, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados e de banimento, que também poderiam ser consideradas cruéis, encontram-se ao lado das penas especificamente cruéis no art. 5º, XLVII, da Constituição Federal, sendo todas elas igualmente vedadas.
Também é difícil dizer se a evolução cultural faz com que as penas percam a sua crueldade ou apenas modifiquem a sua forma de execução. Nesse diapasão, o Código Criminal do Império, em seu art. 38, determinava a execução da pena de morte por forca, enquanto a nossa legislação atual, por meio do art. 56 do Código Penal Militar, impõe a execução por fuzilamento. Considerando que o resultado é igualmente gravoso, abandonamos a crueldade na execução da pena de morte? Ou apenas atualizamos o procedimento para gerar um resultado cruel?
Evidentemente, a crueldade de uma pena depende do contexto histórico. O que é cruel em determinado período pode não ter sido cruel anteriormente.
No plano legislativo, são arquivadas ou declaradas inconstitucionais quaisquer propostas que violem a vedação de penas cruéis. Nesse sentido, foram arquivados na Câmara dos Deputados, por violarem a vedação de penas cruéis, os projetos de lei nº 7021/2002 e 5122/2009, que objetivavam estabelecer a possibilidade de pena de castração química.
Ocorre que o problema não está na legislação, mas sim no seu cumprimento. O descumprimento da legislação relativa à execução penal, por si só, é cruel, gerando uma pena faticamente cruel.
A legislação que impõe penas cruéis é sempre barrada pelo controle de constitucionalidade (preventivo ou posterior), mas o descumprimento fático da legislação é o que impõe a crueldade ao sistema carcerário.
A crueldade fática é extremamente problemática. Em um juízo de aparência, a legislação relativa à execução penal tem poucas falhas. Contudo, quando posta em prática, o descumprimento de suas disposições enseja uma crueldade descontrolada, que não é objeto de controle de constitucionalidade – salvo a ADPF nº 347 relativa ao Estado de coisas inconstitucional -, debates legislativos ou tentativas de melhoras.
A título de exemplo, por que os presos implementam o lapso temporal de seus direitos (progressão e livramento condicional, por exemplo), mas apenas têm tais direitos deferidos muitos dias/semanas/meses depois? A legislação é irretocável, mas o seu descumprimento é cruel.
E a crueldade não termina com a pena. Ela se estende até depois da extinção da pena, como lembra Carnelutti (2009, p. 117):
[…] as pessoas creem que o processo penal termina com a condenação, e não é verdade; as pessoas creem que a pena termina com a saída do cárcere, e não é verdade; as pessoas creem que o ergástulo é a única pena perpétua e não é verdade. A pena, se não propriamente sempre, em nove de cada dez casos não termina nunca. Quem pecou está perdido. Cristo perdoa, mas os homens não.
Como se observa, muitos passam pela crueldade do processo penal para, ao final, talvez serem declarados inocentes. Da mesma forma, temos uma legislação sem resquícios aparentes de crueldade, mas a crueldade está no descumprimento dessa legislação. Por fim, alguns questionam a ressocialização, mas tentam estigmatizar o preso e perpetuar a sua pena. A Constituição proíbe a crueldade da pena, mas a crueldade está no processo, na execução ilegal da pena e no pós-pena.
BIBLIOGRAFIA:
CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Trad. Carlos Eduardo Trevelin Millan. São Paulo: Editora Pilares, 2009.
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