STJ: requisitos para admissão da confissão extrajudicial
No AREsp 2.123.334-MG, julgado em 20/6/2024, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a confissão extrajudicial somente será admissível no processo judicial se feita formalmente e de maneira documentada, dentro de um estabelecimento estatal público e oficial. Tais garantias não podem ser renunciadas pelo interrogado e, se alguma delas não for cumprida, a prova será inadmissível. A inadmissibilidade permanece mesmo que a acusação tente introduzir a confissão extrajudicial no processo por outros meios de prova (como, por exemplo, o testemunho do policial que a colheu).
Informações do inteiro teor:
Não são incomuns casos em que, ausentes provas sólidas, a confissão extrajudicial do acusado, ainda que retratada em juízo, é o principal fundamento da condenação (mesmo que o juiz tente acrescer-lhe outras provas menos importantes ou que valore a “coerência” da própria retratação, como forma de escapar à vedação do art. 155 do CPP). Neles, assim como na hipótese deste autos, tem me chamado a atenção o fato de que a confissão comumente é feita de maneira informal, fora de uma delegacia ou estabelecimento governamental, sem a assistência de defensor, sem um registro documental preciso dos atos investigatórios e na completa ausência de provas.
No caso analisado, a confissão na qual se embasou o juízo sentenciante para condenar o acusado foi colhida no momento de sua prisão, fora de uma delegacia, muito antes do primeiro contato do réu com seu defensor (que somente ocorreu na audiência de instrução e julgamento) ou de uma audiência de custódia (que nem chegou a ser realizada), sem nenhum registro formal desse primeiro interrogatório nas mãos da polícia militar.
Por vezes, a coação (ou mesmo a tortura) por policiais é apontada pela defesa como um dos fatores determinantes da confissão viciada, em regra sem nenhuma consideração por parte do Judiciário; em outras, não há explicação formal para essa mudança de postura do acusado.
O risco de tortura-prova é, assim, inversamente proporcional ao grau de formalidade da fase em que se encontra o conjunto de ritos da investigação e persecução criminal: é nos momentos iniciais da apuração de um crime que o preso está mais vulnerável à tortura-prova, diminuindo esse risco à medida em que o processo avança e ganha mais camadas de formalidade e segurança.
Quando o preso já foi adequadamente registrado no sistema de custódia e recebeu a orientação jurídica adequada para, aí sim, ser ouvido pela autoridade policial civil, torna-se mais difícil que a polícia o torture para obter alguma informação, porque nesse momento já há um status de maior formalidade procedimental cujo contorno, embora não seja impossível, é mais oneroso para um policial mal-intencionado. Mais segura ainda é a confissão judicial, feita pelo réu perante o julgador na própria audiência de instrução: nessa situação, o acusado já está obrigatoriamente assistido por seu defensor e colocado diante de um magistrado e um membro do Ministério Público, incidindo, nesse momento, controles por instituições diversas da própria polícia.
A tortura, é claro, será possível mesmo nessa etapa processual, mormente se o réu estiver preso preventivamente e souber que, se não confessar, poderá estar sujeito a represálias no interior presídio. Veja-se, porém, que esse cenário já é um pouco menos provável, por exigir um concerto mais complexo entre diversos órgãos de persecução penal (ao menos a polícia judiciária e a polícia penal), o que dificulta a ocorrência da específica modalidade de tortura prova.
O momento de maior fragilidade pessoal e jurídica do investigado é quando acontece sua prisão, longe dos olhares de qualquer instituição estatal – a não ser aquela própria que efetuou sua prisão – e à míngua de mecanismos reais de controle. Nessa hora, o preso está inteiramente nas mãos dos policiais (geralmente militares) que o prenderam, e apenas a sorte o ajudará. Se os agentes forem, como a maioria de nossos policiais, probos e cumpridores da lei, provavelmente nada de ilícito haverá em seu procedimento; se, todavia, tiverem alguma disposição à brutalidade e à tortura – o que corresponde a uma parcela que não pode ser ignorada, segundo os estudos já mencionados -, o preso estará sujeito a um grande risco de tortura e, caso esta aconteça, jamais logrará comprová-la. Ao contrário, será condenado pelo suposto crime que gerou sua prisão e tido por mentiroso pela polícia, pelo Ministério Público, pelo Judiciário e pela sociedade ao narrar o tormento sofrido.
Para que a confissão extrajudicial seja admitida no processo penal, é necessária a adoção de cautelas institucionais que neutralizem os riscos ora tratados, de modo a tornar a prova mais confiável quanto ao seu conteúdo e modo de extração. Caso contrário – e pensando de forma puramente objetiva -, não será possível considerar, com a segurança exigida pelo processo penal, que a confissão foi voluntária e confiável o suficiente a fim de receber algum tipo de eficácia jurídica. Sem salvaguardas e enquanto o Brasil for tão profundamente marcado pela violência policial, sempre permanecerá uma indefinição sobre a voluntariedade da confissão extrajudicial – indefinição esta que se busca, aqui, diminuir.
São duas as exigências para a admissibilidade desse tipo de confissão: (I) o ato deverá ser formal e (II) realizado dentro de um estabelecimento estatal oficial. Atendidos esses requisitos, a confissão será admissível, podendo integrar os elementos de informação do inquérito; se descumprido algum deles, a consequência é a inadmissibilidade da confissão.
O que se propõe ao estabelecer estes condicionantes à validade epistêmica da confissão extrajudicial é que tais critérios sejam definidos de forma expressa e racional pelo STJ, a quem cabe unificar a interpretação da legislação federal pertinente.
Assim, quanto à formalidade e ao local do ato, a colheita de uma confissão extrajudicial deve ser tratada pela autoridade policial como um ato formal, segundo o mandamento do art. 199 do CPP, feito na própria delegacia de polícia ou outro estabelecimento integrante da estrutura estatal, com a informação ao investigado de seus direitos constitucionais e a lavratura do termo respectivo. Realizado o ato em tais circunstâncias, há mais olhares de agentes públicos sobre o procedimento, o que por si só já exerce um efeito dissuasório maior do que aquele (in)existente na extração de uma confissão no próprio ato de prisão, na rua e longe do controle estatal. Estabelecimentos oficiais são conhecidos por todo o povo, passíveis de controle externo pelo Ministério Público (art. 129, VII, da Constituição Federal) e pelos Tribunais de Contas (arts. 70 e 75 da Constituição Federal), e são de livre ingresso pelos advogados (art. 7º, VI, “b” e “c”, da Lei n. 8.906/1994); tudo isso constitui um plexo de garantias que torna a tortura-prova um pouco menos provável em tais locais do que em um beco deserto, um matagal remoto, um centro secreto de detenção.
INFORMAÇÕES ADICIONAIS:
LEGISLAÇÃO
Constituição Federal (CF/1988), arts. 5º, III e XLIII, 93, IX
Código de Processo Penal (CPP), arts. 155, 156, 157, 23 1, 396-A e 400, § 1º
Código de Processo Civil (CPC), arts. 315, § 2º, 489, § 1º
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Fonte: Informativo de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – Edição nº 819 – leia aqui.
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