STJ: o reconhecimento fotográfico conduzido de forma parcial pelo magistrado viola o sistema acusatório
A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), AgRg no AREsp 2702534/SP, decidiu que “na busca da verdade real ou substancial, o reconhecimento fotográfico realizado em juízo, com transbordante (e não supletivo) protagonismo do magistrado – ao apontar às testemunhas e/ou vítimas inquiridas, de forma preambular, incisiva, circulada (com manipulação individualizada) na foto e despida de imparcialidade objetiva, a parte acusada como uma das “possíveis” realizadoras do crime denunciado, com a adoção similar (equiparada) da espúria metodologia intitulada “show-up” – enseja, nos moldes dos arts. 212 e 226, ambos do CPP, impositiva anulação do ato instrutório, por violação ao sistema acusatório e, notadamente, inobservância aos requisitos mínimos previstos na norma procedimental”.
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DIREITO PROCESSUAL PENAL E DIREITO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EFEITO ITERATIVO. PERTINÊNCIA. PROTAGONISMO INQUISITIVO DO RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO. ADOÇÃO SIMILAR OU EQUIPARADA DA METODOLOGIA INTITULADA “SHOW-UP”. NULIDADE RELATIVA. CONSTATAÇÃO. BUSCA NÃO SUPLETIVA DA VERDADE REAL OU SUBSTANCIAL PELO MAGISTRADO SINGULAR. INSTRUÇÃO MACULADA. INDICAÇÃO E MANIPULAÇÃO (CIRCULAÇÃO) DA FOTOGRAFIA DA RÉ PERANTE AS TESTEMUNHAS INQUIRIDAS. INOSERVÂNCIA AOS RIGORES “MÍNIMOS” PROCEDIMENTAIS. IMPOSSIBILIDADE. PREJUÍZO ÍNSITO OCASIONADO À RÉ. OFENSA AO SISTEMA ACUSATÓRIO. CONSTATAÇÃO. ANULAÇÃO PARCIAL DO FEITO. MODULAÇÃO AO ATO INSTRUTÓRIO VICIADO. PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE OU DA INTERDEPENDÊNCIA DOS ATOS PROCESSUAIS. APLICAÇÃO. APENAMENTO CONCRETO ANTERIOR TRANSITADO EM JULGADO PARA A ACUSAÇÃO E LIQUIDADO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM EM PATAMAR INFERIOR A QUATRO ANOS. EFEITO PRODRÔMICO DA CONDENAÇÃO INAUGURAL (REFORMATIO IN PEJUS INDIRETA). DEVER DE OBSERVÂNCIA. COROLÁRIA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA ESTATAL. LAPSO SUPERIOR A OITO ANOS ENTRE O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA E A PRESENTE ASSENTADA. CONSTATAÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO. CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO PARA DECLARAR EXTINTA A PUNIBILIDADE DA PACIENTE. I. Caso em exame 1.1 Trata-se de agravo regimental interposto contra decisão exarada por esta Relatoria que, em juízo de admissibilidade e delibação ad quem, conheceu do agravo para conhecer parcialmente do recurso especial e, nessa extensão, negar-lhe provimento. 1.2 Em suas razões, a Defesa assevera que a decisão hostilizada carece de reforma, por persistir a apontada degeneração aos arts. 157, 212 e 226, todos do CPP. 1.2.1 Patrocina que, no caso vertente, houve manifesta ofensa ao sistema acusatório, ao ter atuado o Magistrado singular, na audiência de instrução, como verdadeiro inquisidor, ao apontar (no reconhecimento fotográfico realizado) às testemunhas presentes – de forma incisiva, circulada (com manipulação individualizada da foto) e despida de imparcialidade objetiva – a increpada como “uma” das possíveis realizadoras do furto denunciado. 1.2.2 Pontua que a condenação guerreada origina-se, destarte, do eivado reconhecimento fotográfico formalizado em audiência, com manifesto (ínsito) prejuízo processual ocasionado à ré. 1.3 Nestes termos, demonstrada a ilegalidade na forma com que foi realizado o reconhecimento fotográfico, sobretudo na fase processual, em nítido descompasso ao sistema acusatório, requer a reconsideração da decisão agravada ou, subsidiariamente, remessa do feito para julgamento pela Sexta Turma, a fim de que sejam consideradas nulas as provas oriundas do ato ilícito em voga, com efeitos desconstitutivos (ex tunc), seguido do desentranhamento destas dos autos e consequente determinação à realização de uma nova audiência de instrução e julgamento. II. Questões em discussão 2.1 A (primeira) questão em discussão consiste em saber se, na busca da verdade real ou substancial, o reconhecimento fotográfico realizado em juízo, com transbordante (e não supletivo) protagonismo do magistrado – ao apontar às testemunhas e/ou vítimas inquiridas, de forma preambular, incisiva, “circulada” (com manipulação individualizada) na foto e despida de imparcialidade objetiva, a parte acusada como uma das “possíveis” realizadoras do crime denunciado, com a adoção similar (equiparada) da espúria metodologia intitulada “show-up” – enseja (ou não), nos moldes dos arts. 212 e 226, ambos do CPP, a anulação do ato instrutório, por violação ao sistema acusatório e, notadamente, inobservância aos requisitos mínimos previstos na norma procedimental. 2.2 A (segunda) questão controvertida consiste em definir se (nos contornos do art. 617 do CPP, c/c o art. 107, IV, 110, § 1º, e 117, I, todos do CP), na hipótese em que [em recurso exclusivo da defesa], declarada a nulidade ou anulação do édito ou acórdão condenatório objurgado pelo Tribunal ad quem, com apenamento em concreto já liquidado na origem e transitado em julgado para a acusação, é possível (ou não) – à luz da racionalização e sopesamento dos princípios da efetividade e da razoável duração do processo – o declaração, de ofício, na mesma assentada, da prescrição da pretensão punitiva Estatal, diante do peremptório efeito prodrômico da sentença (reformatio in pejus “indireta”) indente. III. Razões de decidir 3. Em introito, não se olvida este Sodalício ser da essência do processo penal (moderno) a necessidade de cumprimento às formas previstas em lei, por constituírem direitos fundamentais de primeira dimensão (Vasak, Karel), instituídos pelo constituinte originário, destinados à salvaguarda da (indisponível e cara) liberdade ambulatorial do (a) acusado (a) contra eventual excesso (arbítrio) punitivo Estatal. 3.1 Entretanto, com arrimo no formalismo valorativo, como expressão do neoprocessualismo subjacente, é cediço que a dicção do art. 563 do CPP, ancorado no princípio setorial do prejuízo ou da transcendência (pas nullité sans grief), ao arrefecer o (reducionista e engessado) sistema “legalista” clássico, pautado no restrito positivismo jurídico, para o evolutivo regramento atual – baseado (precipuamente) na instrumentalidade das formas e na primazia de mérito, como axiomas endossados por ambas as Cortes pátrias de Vértice -, condiciona a declaração de qualquer nulidade sanção (seja absoluta ou relativa), a favor da acusação ou da defesa, à demonstração (em tempo oportuno) de efetivo (concreto) prejuízo processual ocasionado. 3.2 Entendimento em sentido contrário, em determinadas ocasiões (ordinárias), representaria desmedido e disjuntivo enaltecimento da “forma” (legalidade estrita) em detrimento da “efetividade” (legitimidade macro) da persecução criminal. 3.3 Sob as lentes da efetividade do processo, esta Corte de Promoção Social tem verberado: [A] condenação, por si só, não é geradora de prejuízo (AgRg no AREsp n. 2.192.337/ES, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 8/8/2023, DJe de 15/8/2023, grifamos). 3.4 Não se descuida que, regra geral: [O] protagonismo do magistrado na oitiva das testemunhas não configura nulidade sem demonstração de prejuízo” (AgRg no HC n. 913.176/CE, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 4/12/2024, DJEN de 10/12/2024) (AgRg no HC n. 866.876/MA, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 26/3/2025, DJEN de 31/3/2025). 3.5 É pacifico, por fim, por ambas as Cortes de Superposição que, malgrado o advento da Lei n. 11.690/2008 tenha abolido da (ordinária) instrução processual o sistema presidencialista (exceto na segunda fase do escalonado rito do Júri), com a determinação da inquirição “direta” das testemunhas pelas partes (direct examination) e atuação (apenas) “supletiva” do Estado-juiz (na busca da verdade real ou substancial), mas ainda albergado pelo princípio do impulso oficial (STF, ADI ´s n. (s) 6.298/DF, 6.300/DF, 6.305/DF, Rel. Min. Luiz Fux, Dje. 19/12/2023) – eventual inobservância do regramento do art. 212 do CPP, por consubstanciar nulidade relativa: a) caso não suscitada pela parte em momento oportuno, na forma do art. 571, VIII, do CPP, convalida-se por incidência do instituto da preclusão; e, b) eventual prejuízo processual suportado pelo jurisdicionado não se presume (por si só e ex lege), mas deve ser empiricamente demonstrado nos autos (pas nullité sans grief), nos termos do art. 563 do CPP. 3.6 Enquadramento (processual) que, todavia, não se coaduna ao caso em apreço. 3.6.1 Na espécie, malgrado Tribunal a quo tenha rechaçado o aventado malferimento aos arts. 212 e 226, ambos do CPP, sob o (raso e abstrato) fundamento de que [o] magistrado formulou as indagações iniciais basicamente questionando como se deram os fatos, em juízo, ao revés, este, de forma atropelada e deletéria – ao protagonizar e direcionar [como inquisidor] o procedimento de reconhecimento fotográfico, em manifesto (ínsito) prejuízo persecutório à acusada (Emilse) pela adoção similar (equiparada) da espúria metodologia intitulada “show-up”] -, averbou [conforme notas taquigráficas extraídas por seu patrono do sistema de audiovisual de gravação], in verbis: A acusada específica deste processo é essa que está com o nome circulado (MM. Juiz, gravação audiovisual testemunha Laura 02: 35 até 02:50). “A foto delas tá aqui, folhas 18, seriam essas 04. A senhora, vê se a senhora reconhece a acusada especificamente neste processo se é a da foto superior direita que “eu circulei” ai, chama Emilse Susana” (MM. Juiz, gravação audiovisual testemunha Taís 08: 20 até 08:50) (grifamos). 3.5.3 No contexto delineado, além do douto magistrado não ter atuado de forma residual (supletiva) – na possível busca da verdade real (ou substancial) -, houve flagrante e prejudicial direcionamento (com manipulação individual) no maculado procedimento de reconhecimento, com fotografia “circulada”/destacada da ré pelo condutor do ato instrutório perante as testemunhas inquiridas, de forma a influir (indevida e inexoravelmente) na autoria delitiva sinalizada. 3.5.4 Em suma, no caso em testilha, não houve pelas instâncias ordinárias a mínima observância aos rigores formais do encetado procedimento de reconhecimento fotográfico da acusada. 3.5.5 Tal ato, por certo, à luz do determinante postulado do devido processo legal, revela-se passível de anulação, porquanto despido de qualquer imparcialidade “objetiva” e, notadamente (pela interpretação sistêmica dos arts. 3º, 3º-A, 212, parágrafo único, 226, 563 e 564, IV, todos do CPP, c/c o art. 6º do CPC), em franco descompasso ao subjacente sistema acusatório, cuja “paridade de armas”, entre os sujeitos do dialético modelo cooperativo (não inquisitivo) do processo penal pátrio contemporâneo, constitui instransponível e pétreo direito “nuclear” (Silva Sánchez, Jesús-Maria) – mínimo – da parte. 3.5.6 Tessitura processual e material reflexiva (como expressão do hodierno direito penal global incidente) que evidencia inconteste prejuízo ínsito à ampla defesa (AgRg no HC n. 751.363/SC, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 10/6/2024, DJe de 12/6/2024, grifamos). 3.5.7 Para o Pretório Excelso, em situação parelha, onde constatada ilegalidade flagrante, ex officio, foram rechaçados os eivados: [r]econhecimentos fotográfico e pessoal do Agravante e do Corréu, realizados mediante a técnica de show up, nos quais não foram observadas as formalidades “mínimas” previstas no art. 226 do CPP (STF, ARE n. 1.422.208, Relator (a): Min. Alexandre de Moraes, Julgamento: 22/03/2023, Publicação: 24/03/2023, grifamos). 3.5.8 Nesse panorama, (ex vi dos arts. 3º, 3º-A, 212, parágrafo único, 226, 563, 564, IV, e 573, todos do CPP, c/c o art. 6º do CPC) tem-se por impositiva a (parcial) anulação do feito, com efeitos desconstitutivos (ex tunc), modulada [à luz do subjacente princípio da causalidade ou da interdependência dos atos processuais] à audiência de instrução da ré (Enilse Susana Hugo), extensiva sobre os elementos de convicção e demais atos processuais dela decorrentes. 3.6 Todavia, por se tratar de recurso exclusivo da defesa, com denúncia recebida em 02/05/2016, e em atenção ao peremptório efeito prodômico da sentença (reformatio in pejus “indireta”), in casu, com condenação da increpada, revisada e liquidada pelo Tribunal a quo, no quantum de três (3) anos, onze (11) meses e dezoito (18) dias de reclusão, declara-se, de ofício, em seu favor [ex vi dos arts. 107, IV, 109, IV, 110, § 1º, e 117, I, todos do CP, c/c os arts. 61, caput, 617, 647-A e 654, § 2º, todos do CPP] – diante do transcurso do lapso de 08 (oito) anos, do aludido marco interruptivo até a presente assentada -, a prescrição superveniente (intercorrente) da pretensão punitiva Estatal. IV. Dispositivo e teses 4. Agravo regimental provido. De ofício, declara-se extinta a punibilidade Estatal em prol da paciente (Enilse Susana Hugo), pela corolária prescrição constatada. Teses de julgamento: “1. Na busca da verdade real ou substancial, o reconhecimento fotográfico realizado em juízo, com transbordante (e não supletivo) protagonismo do magistrado – ao apontar às testemunhas e/ou vítimas inquiridas, de forma preambular, incisiva, circulada (com manipulação individualizada) na foto e despida de imparcialidade objetiva, a parte acusada como uma das “possíveis” realizadoras do crime denunciado, com a adoção similar (equiparada) da espúria metodologia intitulada “show-up” – enseja, nos moldes dos arts. 212 e 226, ambos do CPP, impositiva anulação do ato instrutório, por violação ao sistema acusatório e, notadamente, inobservância aos requisitos mínimos previstos na norma procedimental. 2. Nos contornos do art. 617 do CPP, c/c o art. 107, IV, 110, § 1º, e 117, I, todos do CP), na hipótese em que [em recurso exclusivo da defesa], declarada a nulidade ou anulação do édito ou acórdão condenatório objurgado pelo Tribunal ad quem, com apenamento em concreto já liquidado na origem e transitado em julgado para a acusação, é possível – à luz da racionalização e sopesamento dos princípios da efetividade e da razoável duração do processo – o declaração, de ofício, na mesma assentada, da prescrição da pretensão punitiva Estatal, diante do peremptório efeito prodrômico da sentença (reformatio in pejus “indireta”) indente.” Dispositivos relevantes citados: CPP, arts. 3º, 3º-A, 157, 212, 226, 563, 564, IV, 571, 573 e 617; CP, arts. 107, IV, 109, IV, 117, I; CPC, art. 6º. Jurisprudência relevante citada: 1. STF, HC 75331, Relator(a): Marco Aurélio, Segunda Turma, Julgamento: 02/12/1997, Publicação: 06/03/1998; STF, ARE n. 1.422.208, Relator (a): Min. Alexandre de Moraes, Julgamento: 22/03/2023, Publicação: 24/03/2023; STJ, AgRg no HC n. 751.363/SC, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 10/6/2024, DJe de 12/6/2024; STJ, AgRg no HC n. 735.027/SP, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), relator para acórdão Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 26/9/2023, DJe de 4/10/2023; STJ, AgRg no REsp n. 2.105.657/RS, relatora Ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em 19/2/2025, DJEN de 24/2/2025; STJ, HC n. 735.519/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 16/8/2022, DJe de 22/8/2022; STJ, AgRg no AREsp n. 2.669.837/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 20/8/2024, DJe de 27/8/2024. 2. STJ, AgRg no AREsp n. 1.815.689/PR, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 22/6/2021, DJe de 30/6/2021; STJ, AgRg no HC n. 508.076/SP, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 26/11/2019, DJe de 2/12/2019. (AgRg no AREsp n. 2.702.534/SP, relator Ministro Otávio de Almeida Toledo (Desembargador Convocado do TJSP), Sexta Turma, julgado em 19/8/2025, DJEN de 26/8/2025.)
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