Decisão proferida pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça no HC 101.531/MG, julgado em 22/04/2008 (leia a íntegra do acórdão).
Confira a ementa:
Receptação/receptação qualificada (punibilidade menor/maior). Lei nº 9.426/96 (imperfeições). Norma/preceito secundário (desconsideração). 1. É nossa a tradição da menor punibilidade da receptação, “em confronto com o crime de que deriva” (por exemplo, Hungria em seus comentários). 2. Fruto da Lei nº 9.426/96, o § 1º do art. 180 do Cód. Penal ? receptação qualificada ? reveste-se de imperfeições ? formal e material. É que não é lícita sanção jurídica maior (mais grave) contra quem atue com dolo eventual (§ 1º), enquanto menor (menos grave) a sanção jurídica destinada a quem atue com dolo direto (art. 180, caput). 3. Há quem sustente, por isso, a inconstitucionalidade da norma secundária (violação dos princípios da proporcionalidade e da individualização); há quem sustente a desconsideração de tal norma (do § 1º, é claro). 4. Adoção da hipótese da desconsideração, porque a declaração, se admissível, de inconstitucionalidade conduziria, quando feita, a semelhante sorte, ou seja, à desconsideração da norma secundária (segundo os kelsenianos, da norma primária, porque, para eles, a primária é a norma que estabelece a sanção ? negativa, também a positiva). 5. Ordem concedida a fim de substituir-se a reclusão de três a oito anos do § 1º pela de um a quatro anos do caput (Cód. Penal, art. 180). (HC 101.531/MG, Rel. Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, julgado em 22/04/2008, DJe 16/06/2008)
Leia a íntegra do voto:
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO NILSON NAVES (RELATOR): Primeiro, a instância de origem, iniludivelmente, cumpriu e acabou o ofício jurisdicional, de sorte que se encontra aberta, sem restrições, a competência do Superior Tribunal. Segundo, não é exato não se tenha lá conhecido da questão da qual se pede aqui se conheça, observem pois estes tópicos do acórdão:
“Proferida a sentença, o MM. Juiz realizando a denominada emendatio libelli, condenou o apelante nas sanções do artigo 180, § 1º, do Código Penal.
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Ressalta-se, ainda, a improcedência do pedido para desclassificar o crime para receptação simples, uma vez comprovada a sua forma qualificada, nos termos do artigo 180, § 1º, do Código Penal. Ademais, não vejo nenhuma inconstitucionalidade no § 1º, do artigo 180, do Código Penal. Outrossim, entendo que a receptação qualificada não infringe o princípio constitucional da proporcionalidade, inexistente qualquer ofensa constitucional na norma definidora do crime em questão. Sob tal enfoque, prevê o artigo 180 do Codex o delito de receptação simples, e o seu parágrafo 1º, denominado de receptação qualificada, traz na verdade uma hipótese de delito autônomo, cujo sujeito ativo deve ser necessariamente um comerciante ou industrial, mesmo que exerça a sua atividade de forma irregular. Assim sendo, este tipo penal autônomo visa punir mais severamente a conduta daquele que, sendo profissional do comércio, pratica a receptação. Por conseguinte, por ser a figura do autor um comerciante regular, sua conduta é tida como mais grave. Esta é a mens legis e, justamente, por ser esta conduta mais grave, é que se ajudando a teoria penalista contratualista, aplica-se a pena de acordo com as conseqüências do dano.”
É a essa questão que estou aqui dando cuidados, visto faltarem-me elementos para aqui também dar cuidados à alegada falta de intimação da expedição de precatórias.
2. Sabemos todos das imperfeições formal e material do mencionado § 1º – fruto da Lei nº 9.426/96: em suma, o fato menos grave é apenado mais severamente. Mas é mesmo o § 1º que me leva a algumas reflexões.
Vou começar com duas lições de Hungria (“Comentários ao Código Penal”, 1955, págs. 292 e segs.) relembradas, aliás, recentemente, por Cezar Bitencourt (“Código Penal”, 2002, pág. 792):
“Na atualidade, raro é o código em que não se lobrigue a preocupação de punir a receptação (que alguns persistem em considerar cumplicidade post factum) menos severamente que o crime de que é subseqüente. Somente nos casos mais graves (notadamente no de habitualidade do receptador) é que é colocada em pé de igualdade com o crime originário. Em código algum figura a receptação com pena aprioristicamente mais grave do que a daqueles de que pode provir.
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No direito brasileiro, a tradição constante foi no sentido da menor punibilidade da receptação, em confronto com o crime de que deriva. Os Códigos de 1830 e 1890 reputavam-na simples cumplicidade post delictum…”
Também estoutra lição:
“É preciso que haja certeza da proveniência criminosa da coisa. Se o agente procede na dúvida, o que se apresenta é a receptação culposa. Esta será reconhecida ainda quando o agente proceda com dolo eventual.”
Confiramos: menor punibilidade da receptação; tradição brasileira, também estrangeira. Vejam este ponto: a receptação culposa será reconhecida ainda quando o agente proceda com dolo eventual. Todavia, na atual redação, o dolo eventual transformou a punibilidade de menor (menos grave) em maior (mais grave).
Vou agora me valer da já conhecida opinião de Damásio:
“… o preceito secundário do § 1º deve ser desconsiderado, uma vez que ofende os princípios constitucionais da proporcionalidade e da individualização legal da pena.
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Vigora, pois, como princípio expresso, o da individualização da resposta penal, determinando uma graduação de severidade da pena em face da prática do crime. Do contexto, extrai-se a regra da proporcionalidade: para os crimes mais graves, penas e conseqüências severas; para as infrações penais de menor potencial ofensivo, respostas mais brandas. E esse princípio conduz a outro, o da harmonia legislativa: na descrição das infrações penais e na cominação das sanções o legislador deve guardar o sentido da concordância, da conformidade e da igualdade.”
E também da de Silva Franco:
“Ora, tendo-se por diretriz o princípio da proporcionalidade, não há como admitir, sob o enfoque constitucional, que o legislador ordinário estabeleça um preceito sancionatório mais gravoso para a receptação qualificada quando o agente atua com dolo eventual e mantenha, para a receptação do caput do art. 180, um comando sancionador sensivelmente mais brando quando, no caso, o autor pratica o fato criminoso com dolo direito. As duas dimensões de subjetividade ‘dolo direto’ e ‘dolo eventual’ podem acarretar reações penais iguais, ou até mesmo, reações penais menos rigorosas em relação ao ‘dolo eventual’. O que não se pode reconhecer é que a ação praticada com ‘dolo eventual’ seja três vezes mais grave…”
Daí é que se vem sugerindo o seguinte: (I) que se reconheça a inconstitucionalidade do § 1º; (II) que se desconsidere o preceito secundário do § 1º. Sobre o item II, disse, por exemplo, Silva Franco:
“Daí a correta conclusão de que o preceito sancionatório do § 1º do art. 180, do CP não pode ser aplicado, por lesar o princípio constitucional da proporcionalidade, devendo, em conseqüência, o preceito primário da referida regra penal ter, por comando sancionatório, a pena reclusiva, variável entre um e quatro anos e a pena pecuniária, cominadas para o caput do art. 180 do CP. Só assim se restabelece, através do juiz, que é o garantidor de todos eles, o império contestado de um dos princípios fundamentais, de caráter substancial, próprios do Estado Democrático de Direito.”
Pensando em suscitar a argüição de inconstitucionalidade, ocorreu-me haver dificuldade de seu acolhimento no âmbito da 6ª Turma, daí a razão pela qual, pondo-me em conformidade com a doutrina que trouxe à colação, inclusive com a lição de Hungria, a qual não deixa de ter aqui aplicação, é que estou desconsiderando o preceito secundário do § 1º. Aliás, a declaração, se admissível, de inconstitucionalidade conduzir-nos-ia, quando feita, a semelhante sorte, ou seja, à desconsideração da norma secundária (segundo os kelsenianos, da norma primária, porque, para eles, a primária é a norma que estabelece a sanção – positiva ou negativa).
3. Voto pela concessão da ordem a fim de substituir a reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos do § 1º pela de 1 (um) a 4 (quatro) anos do caput (Cód. Penal, art. 180). Adotando as diretrizes originalmente adotadas pela sentença, fixo, em conseqüência, a pena-base em 1 (um) ano de reclusão, aumentando-a de um sexto, pela reincidência – pena definitiva: 1 (um) ano e 2 (dois) meses de reclusão. Relativamente à multa, a da sentença. Estabeleço o regime aberto para o início de cumprimento da pena privativa de liberdade. De tal maneira, o meu voto concede, pois, a ordem em parte.
Leia também:
- Incompatibilidade entre dolo eventual e a qualificadora de motivo fútil (informativo 583 do STJ)
- STJ: tendo a pena-base sido fixada no mínimo legal, não há como a atenuante da confissão ter reflexos na pena
- STJ: reconhecida a nulidade da pronúncia por excesso de linguagem, outra decisão deve ser proferida