Decisão proferida pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça no CC 147681/RJ, julgado em julgado em 28/09/2016 (leia a íntegra do acórdão).
Confira a ementa:
CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. ESTUPRO. CAPTAÇÃO E DIVULGAÇÃO DE IMAGENS E VÍDEOS POR TERCEIRO EM REDES SOCIAIS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL SOMENTE PARA DIVULGAÇÃO. CONEXÃO COM O CRIME DE ESTUPRO. INOCORRÊNCIA. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA N. 122 DO STJ. 1. É da Justiça Federal a competência para o processamento do crime previsto no art. 241-A da Lei n. 8.069/1990, quando a divulgação de imagens e vídeos se dá em perfis públicos sitiados em redes sociais, tornando-as disponíveis para um número indefinido de pessoas e, ao menos potencialmente, para usuários residentes fora do território nacional. 2. A aplicação da orientação contida no enunciado da Súmula n. 122 do STJ somente é possível quando dois ou mais crimes possuem uma relação entre si suficiente a recomendar o julgamento em conjunto pelo mesmo juiz ou Tribunal. 3. Na espécie, tudo leva a crer, em princípio, que os acusados pela divulgação das imagens e vídeos nas redes sociais não participaram do crime de estupro, mas apenas repassaram o conteúdo recebido (e registrado por um dos autores do delito sexual) via mensagem privada. Nesse particular, tanto o relatório da Polícia Civil quanto a manifestação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro pontuam essa circunstância. Assim, a suposta conduta dos dois acusados que divulgaram as imagens e os vídeos recebidos, de forma privada, em redes sociais, não guarda consistente relação com a prática do crime de estupro, diversamente do que ocorreria, v.g., se os próprios autores do estupro divulgassem as imagens nas redes sociais. 4. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da 2ª Vara Criminal Regional de Jacarepaguá – RJ, remanescendo perante o Juízo Federal da 5ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro somente o crime previsto no art. 241-A da Lei n. 8.069/1990. (CC 147.681/RJ, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 28/09/2016, DJe 04/10/2016)
Leia a íntegra do voto:
VOTO
O SENHOR MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ (Relator):
Admissibilidade
De início, registro que este incidente processual foi estabelecido em razão de decisões afirmativas de competência, proferidas pelo Juízo Federal da 5ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro, ora suscitante, e pelo Juízo de Direito da 2ª Vara Criminal Regional de Jacarepaguá – RJ, ora suscitado, hipótese esta que se amolda ao art. 105, I, “d”, da Constituição Federal, razão pela qual dele conheço.
Contexto fático
Depreende-se dos autos que foi deflagrada, pela Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, investigação para apurar a possível prática de estupro perpetrado por diversas pessoas (estupro coletivo) contra uma adolescente e de divulgação de vídeos e imagens da vítima despida e desacordada em redes sociais.
Do relatório produzido pela autoridade policial, na representação pela prisão preventiva dos supostos autores do delito, extrai-se o seguinte (fl. 981):
O exame de todos os elementos carreados para os autos levaram esta Autoridade a concluir que no dia 21 de maio de 2016, […] após consumir substância entorpecente conhecida como cheirinho da loló, estando em estado embriaguez foi levada pelo traficante MOISÉS CAMILO DE LUCENA vulgo CANÁRIO do imóvel abandonado localizado na Rua Primeiro de Maio, na localidade conhecida como Comunidade da Barão, onde a adolescente dormia, para outro imóvel abandonado, conhecido como abatedouro, localizado em frente ao local de endolação de drogas (QG do tráfico), na mesma comunidade, ocasião que manteve conjunção carnal com a adolescente em total estado de embriaguez. Que […] permaneceu no referido imóvel até à noite de domingo, dia 22 de maio, oportunidade que os indiciados RAI DE SOUZA, RAPHAEL ASSIS DUARTE BELO, MOISÉS CAMILO DE LUCENA, na companhia do adolescente LUCAS LIMÃO DE OLIVEIRA, vulgo PERNINHA mais uma vez, estando a adolescente ainda desacordada praticaram atos libidinosos diverso da conjunção carnal, manuseando sua genitália, introdução de um objeto em sua vagina, conforme laudo pericial do vídeo encontrado no aparelho de Raí (fls. 339/350).
Que os indicados ainda produziram imagens da violência sexual, transmitindo-as para seus contatos no whatsaap. Que MICHEL BRASIL DA SILVA E MARCELO MIRANDA DA CRUZ CORRÊA receberam as imagens e publicaram em suas redes sociais. Que o indiciado RAI DE SOUZA, ainda ARMAZENOU em seu aparelho de celular as imagens que deram início a presente investigação (destaquei).
O Ministério Público do Rio de Janeiro, em relação à divulgação da imagens e vídeos, deixou de oferecer denúncia contra dois dos investigados e pleiteou a remessa dos autos para a Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro porque (fl. 988):
Segundo as investigações, o denunciado Raí encaminhou as imagens por ele produzidas para os investigados Marcelo Miranda da Cruz Corrêa e Michel Brasil da Silva, mediante utilização de meio de comunicação direta e restrita a eles, qual seja, o aplicativo Whatsapp. De outra parte, a investigação também demonstrou que os mencionados investigados divulgaram tais imagens por meio de seus perfis públicos na rede social Twitter, tornando-as assim disponíveis a um número indefinido de pessoas, inclusive, ao menos potencialmente, para usuários residentes fora do território nacional (destaquei).
Em razão disso, o Ministério Público Federal, calcado na possível competência federal, ajuizou medida cautelar (Autos n. 0505805-43.2016.4.02.5101) pleiteando o afastamento do sigilo de dados telemáticos de dois usuários de redes sociais. Entretanto, ao analisar o pedido, o Juízo Federal da 5ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro acabou por reconhecer a competência para processar todos os crimes conexos aos de divulgação, na internet, de imagens e vídeos do estupro, com base na Súmula n. 122 do STJ.
Entretanto, Juízo de Direito da 2ª Vara Criminal Regional de Jacarepaguá – RJ declinou apenas parcialmente da competência e determinou a remessa dos autos apenas em relação a dois dos investigados (Marcelo Miranda da Cruz Corrêa e Michel Brasil da Silva), o que ensejou este conflito positivo de competência.
III. Quaestio iuris
Não há dúvidas, no caso, quanto à competência para o processamento do crime previsto no art. 241-A da Lei n. 8.069/1990, porquanto a divulgação de imagens e vídeos de adolescentes em perfis públicos sitiados em redes sociais – tornando-as disponíveis para um número indefinido de pessoas, inclusive, ao menos potencialmente, para usuários residentes fora do território nacional – atrai a competência da Justiça Federal, tal como ressaltou o suscitado, lastreando-se em precedente do STF assim sumariado:
[…] 1. À luz do preconizado no art. 109, V, da CF, a competência para processamento e julgamento de crime será da Justiça Federal quando preenchidos 03 (três) requisitos essenciais e cumulativos, quais sejam, que: a) o fato esteja previsto como crime no Brasil e no estrangeiro; b) o Brasil seja signatário de convenção ou tratado internacional por meio do qual assume o compromisso de reprimir criminalmente aquela espécie delitiva; e c) a conduta tenha ao menos se iniciado no Brasil e o resultado tenha ocorrido, ou devesse ter ocorrido no exterior, ou reciprocamente. 2. O Brasil pune a prática de divulgação e publicação de conteúdo pedófilo-pornográfico, conforme art. 241-A do Estatuto da Criança e do Adolescente. 3. Além de signatário da Convenção sobre Direitos da Criança, o Estado Brasileiro ratificou o respectivo Protocolo Facultativo. Em tais acordos internacionais se assentou a proteção à infância e se estabeleceu o compromisso de tipificação penal das condutas relacionadas à pornografia infantil. 4. Para fins de preenchimento do terceiro requisito, é necessário que, do exame entre a conduta praticada e o resultado produzido, ou que deveria ser produzido, se extraia o atributo de internacionalidade dessa relação. 5. Quando a publicação de material contendo pornografia infanto-juvenil ocorre na ambiência virtual de sítios de amplo e fácil acesso a qualquer sujeito, em qualquer parte do planeta, que esteja conectado à internet, a constatação da internacionalidade se infere não apenas do fato de que a postagem se opera em cenário propício ao livre acesso, como também que, ao fazê-lo, o agente comete o delito justamente com o objetivo de atingir o maior número possível de pessoas, inclusive assumindo o risco de que indivíduos localizados no estrangeiro sejam, igualmente, destinatários do material. A potencialidade do dano não se extrai somente do resultado efetivamente produzido, mas também daquele que poderia ocorrer, conforme própria previsão constitucional. 6. Basta à configuração da competência da Justiça Federal que o material pornográfico envolvendo crianças ou adolescentes tenha estado acessível por alguém no estrangeiro, ainda que não haja evidências de que esse acesso realmente ocorreu. 7. A extração da potencial internacionalidade do resultado advém do nível de abrangência próprio de sítios virtuais de amplo acesso, bem como da reconhecida dispersão mundial preconizada no art. 2º, I, da Lei 12.965/14, que instituiu o Marco Civil da Internet no Brasil. 8. Não se constata o caráter de internacionalidade, ainda que potencial, quando o panorama fático envolve apenas a comunicação eletrônica havida entre particulares em canal de comunicação fechado, tal como ocorre na troca de e-mails ou conversas privadas entre pessoas situadas no Brasil. Evidenciado que o conteúdo permaneceu enclausurado entre os participantes da conversa virtual, bem como que os envolvidos se conectaram por meio de computadores instalados em território nacional, não há que se cogitar na internacionalidade do resultado. 9. Tese fixada: “Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes consistentes em disponibilizar ou adquirir material pornográfico envolvendo criança ou adolescente (arts. 241, 241-A e 241-B da Lei nº 8.069/1990) quando praticados por meio da rede mundial de computadores”. 10. Recurso extraordinário desprovido (RE n. 628.624/MG, Rel. p/acórdão Ministro Edson Fachin, DJe 6/4/2016, destaquei).
A discussão surge com a possível conexão existente entre o referido delito e o crime sexual cometido pelos demais acusados que, para o Juízo suscitante, seria suficiente a atrair a competência da Justiça Federal para o processamento de todos os crimes, nos termos do enunciado da Súmula n. 122 do STJ, com esse teor: “Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, “a”, do Código de Processo Penal”.
Não descuro da orientação contida em tal enunciado – calcada na economia processual, haja vista a possibilidade de aproveitamento das provas produzidas, bem como no melhor julgamento da causa ao permitir o magistrado tenha uma visão mais completa dos fatos e, também, para evitar decisões contraditórias –, mas o preceito sumular, a meu sentir, somente deve ser aplicado quando dois ou mais crimes possuem uma relação entre si de tal ordem que recomenda o julgamento em conjunto pelo mesmo juiz ou Tribunal.
No caso, em princípio, tudo leva a crer que os acusados pela divulgação das imagens e dos vídeos nas redes sociais não participaram do crime de estupro, mas, apenas, repassaram o conteúdo recebido (que havia sido registrado por um dos autores do delito sexual) via mensagem privada. Nesse particular, tanto o relatório da Polícia Civil quanto a manifestação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro pontuam essa circunstância (v.g., da promoção ministerial, como visto alhures, extrai-se que “o denunciado Raí encaminhou as imagens por ele produzidas para os investigados Marcelo Miranda da Cruz Corrêa e Michel Brasil da Silva, mediante utilização de meio de comunicação direta e restrita a eles, qual seja, o aplicativo Whatsapp”).
Assim, é possível concluir que a suposta conduta de dois dos acusados, que teriam divulgado imagens e vídeos íntimos de adolescente em perfis públicos sitiados em redes sociais, não guarda relação direta com a prática do crime de estupro. A única ligação entre o crime previsto 241-A da Lei n. 8.069/1990 e os demais os praticados contra a vítima é o conteúdo das imagens divulgadas.
Nesse particular, estou de acordo com a manifestação do Ministério Público Federal, às fls. 1.234-1235, quando assinalou:
De fato, embora as investigações sobre o estupro de vulnerável, de adolescente com 16 anos de idade, que se encontrava desprovida de oferecer qualquer resistência, tenham sido iniciadas a partir da notícia da divulgação, na internet, de vídeos e fotografias do crime, ou seja, no mesmo contexto fático, inexiste qualquer conexão probatória entre os delitos. 13. Nesse sentido, é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que firmou o entendimento no sentido de que, inexistindo conexão probatória, não é da Justiça Federal a competência para processar e julgar crimes de competência da Justiça Estadual, ainda que os delitos tenham sido descobertos em um mesmo contexto fático. […] 14. Desse modo, por consequência, inaplicável a Súmula 122 do STJ, devendo a competência para o processamento e julgamento permanecer no Juízo de Direito da 2ª Vara Criminal de Jacarepaguá/RJ, o suscitado.
Dispositivo
À vista do exposto, conheço do conflito para declarar competente o Juízo de Direito da 2ª Vara Criminal Regional de Jacarepaguá – RJ, ora suscitado, remanescendo perante o Juízo Federal da 5ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro somente o crime previsto no art. 241-A da Lei n. 8.069/1990.
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