STJ: A Receita Federal não pode investigar delitos sem repercussão na relação jurídica tributária
A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 12/12/2023 (processo sob segredo judicial), decidiu que “a Receita Federal não pode, a pretexto de examinar incidentes tributários e aduaneiros, investigar delitos sem repercussão direta na relação jurídica tributária – que se afastem de sua atribuição de órgão fiscal -, sendo nulos os elementos de prova por ela produzidos”.
Informações do inteiro teor:
A controvérsia consiste em analisar a nulidade de elementos de prova produzidos em investigação conduzida pela Receita Federal do Brasil, quando ultrapassados os limites de sua atribuição administrativa em matéria de fiscalização e investigação para aplicação de legislação tributária.
A Receita Federal do Brasil possui atribuição e poderes administrativos para, em caráter suplementar, apurar condutas de repercussão penal, desde que insertas no espectro de suas atribuições e em atenção à finalidade fiscal. As limitações, por conseguinte, são duas: (i) pertinência temática: a atuação deve estar associada à relação jurídica tributária ou aduaneira; e (ii) finalidade fiscal: a atividade deve perseguir a tutela fiscal, de modo que, ainda que apure ilícitos de natureza tributária, não se admite desvirtuamento de finalidade para que sejam atingidos outros fins.
O poder de polícia administrativa da Receita Federal, portanto, possui contornos e não pode ser exercido de forma ampla e irrestrita, sob pena da potencialidade de violação a direitos fundamentais e indevida invasão da esfera de atribuição dos órgãos de persecução penal. A atividade de administração e repressão fiscal pressupõe, assim, limites inerentes e a respectiva sujeição ao controle judicial.
Por consequência lógica, muito embora existam pontos de contato, o desenvolvimento da atividade da Receita Federal não pode invadir a esfera de atribuição da polícia judiciária ou, ainda que na apuração tematicamente adequada, atuar em desvio da finalidade fiscal. E os respectivos procedimentos fiscais averiguatórios não podem, dessa forma, ter por objeto a persecução de condutas delituosas desconectadas da relação jurídica tributária.
Obviamente, nada obstante o poder para investigar ilícitos tributários e aduaneiros – que, eventualmente, podem caracterizar crimes de natureza tributária -, é possível que a apuração identifique, em decorrência da atuação, indícios de prática de delitos estranhos à atribuição do órgão fiscal. Nessa hipótese, a Receita Federal persistirá nas averiguações do fato, porquanto inserido na esfera de sua atividade finalística. E, encerrada a investigação e considerando a existência de indícios de possível ocorrência de infração tributária de natureza criminal, fará comunicação aos órgãos de repressão penal, pois configurado o dever de representação fiscal para fins penais.
Por outro lado, como dito, a Receita Federal não pode, a pretexto de examinar incidentes tributários e aduaneiros, investigar delitos sem repercussão direta na relação jurídica tributária. Nessa hipótese, a pertinência temática e finalística denota limitação na atuação e o consequente dever de comunicar os órgãos de persecução tipicamente penal, uma vez que constituído o dever de representação para fins penais.
Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal, ao analisar os poderes de investigação do Ministério Público, igualmente, delimitou o espaço de atuação de cada órgão fiscalizatório, ao decidir que “o ordenamento constitucional não impede que outros órgãos estatais, diversos da Polícia, promovam, por direito próprio, em suas respectivas áreas de atribuição, atos de investigação destinados a viabilizar a apuração e a colheita de provas concernentes a determinado fato que atinja valores jurídicos postos sob a imediata tutela de referidos organismos públicos, independentemente de estes posicionarem-se nos domínios institucionais do Poder Executivo ou do Poder Legislativo” (STF, HC n. 89.837/DF, Rel. Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, DJe 19/11/2009).
No caso, segundo a defesa, a Receita Federal teria recebido denúncia anônima que apontava crimes de natureza tributária e não tributária envolvendo o paciente. Todavia, a Receita Federal não teria encaminhado a notícia aos órgãos de persecução penal e teria tomado para si a tarefa de investigar as suspeitas. Isso porque, após analisar informações fiscais e movimentações bancárias das pessoas envolvidas, a Receita deu início a dois procedimentos fiscais com requisições, em paralelo, de informações sobre movimentações financeiras e expedições de ofícios que, ao juízo da defesa, teriam o objetivo de investigar crimes financeiros, de falsidade e de lavagem de capitais. E, anos depois da denúncia anônima, foi redigido o relatório fiscal objeto da controvérsia.
Constata-se, assim, que o relatório da operação não se limitava ao procedimento fiscal ordinário, inserto na temática tributária e com finalidade de apuração de ilícitos dessa natureza. Em verdade, as investigações tiveram como ponto de partida denúncia apócrifa, que, desde logo, narrava a existência de tipos penais não tributários. E culminaram no acesso às informações fiscais e bancárias disponíveis ao órgão tributário e em outras ações efetivadas exclusivamente pelo órgão de fiscalização fiscal com vistas à averiguação das infrações penais. Isso tudo sem autorização prévia do Poder Judiciário ou notificação ao Ministério Público Federal, o qual não foi cientificado quando suspeitas de ilícitos não tributários surgiram, mas somente após longo período do início das investigações acerca de tais crimes pela Receita Federal.
Nesse contexto, registra-se, também, que o caso não se confunde com a descoberta fortuita de provas. A serendipidade pressupõe o encontro acidental de prova relacionado a fato diverso daquele que está sendo investigado. Na espécie, os fatos dos quais se constituíram os elementos de prova eram objeto da investigação, de modo que inviável a tese de que teria surgido no curso de procedimento fiscal de forma casual.
Dessa forma, a Receita Federal desborda dos limites de sua atribuição ao perseguir elementos estranhos à relação jurídica tributária, portanto, fora da limitação temática que dá contorno à sua atuação e em desvio da finalidade fiscal.
LEGISLAÇÃO
Constituição Federal (CF), art. 144, §1º, inciso IV, e §4º.
Código de Processo Penal (CPP), art. 4º, § único, e 157, §1º.
Código Tributário Nacional (CTN), art. 194.
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Fonte: Informativo de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – Edição Extraordinária nº 16 – leia aqui.
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