Prevaricação
O crime de prevaricação tem previsão no art. 319 do CP: “Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. A pena é de detenção, de três meses a um ano, e multa.
Esse crime, que pressupõe uma autocorrupção, pois não há um corruptor, tem como regimes iniciais possíveis apenas os regimes semiaberto e aberto, porque é prevista uma pena de detenção. É o que dispõe o art. 33 do CP.
Tratando da prevaricação, Noronha (1988, p. 257) afirma:
prevaricação é a infidelidade ao dever do ofício, à função exercida. É o não-cumprimento das obrigações que lhe são inerentes, movido o agente por interesse ou sentimento próprios. Nossa lei compreende a omissão de ato funcional, o retardamento e a prática, sempre contrários à disposição legal. O objeto jurídico é o interesse da administração pública que não se compadece com o proceder do funcionário que não cumpre seus deveres com o fito de satisfazer a objetivos pessoais, prejudicando o desenvolvimento normal e regular daquela atividade. Já não se trata de coibir a venda do ato ou conduta, como na corrupção, mas de impedir procedimento que molesta ou ofende aquele bem jurídico, sendo do mesmo modo impelido o funcionário por objetivos pessoais.
Há uma distinção básica entre retardar ou deixar de praticar. Quanto ao verbo retardar, entende-se inserida a conduta daquele que atrasa (mas ainda pode praticar o ato) ou pratica determinado ato com atraso. Deixar de praticar, por sua vez, pressupõe não ser mais possível praticar o ato, em razão de alguma circunstância (intempestividade, superação por outra situação fática etc.).
Pelos vários elementos previstos no art. 319 do CP, há boa margem para atuação da defesa, mormente quanto à finalidade especial (“para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”).
Ademais, considerando a expressão “indevidamente”, também não haverá prevaricação se a conduta do funcionário público for justificável, como no caso de excesso de trabalho. Da mesma forma, caso a omissão seja decorrência do exercício de um direito, como o de greve (arts. 9º e 37, VII, da Constituição Federal), não é possível imputar o crime de prevaricação, por vários motivos:
- Não há tipicidade formal, diante do não preenchimento do elemento “indevidamente”.
- Não há tipicidade conglobante, porque há uma outra norma (inclusive constitucional) que permite essa conduta.
- Há exercício regular de um Direito, o que exclui a ilicitude.
Quanto ao interesse ou sentimento pessoal – finalidade especial –, o STF já decidiu que “é inepta a denúncia por prevaricação que não indica concretamente o interesse ou sentimento pessoal que moveu o agente público” (STF, HC 85180). Aqui, da mesma forma que não basta que o Ministério Público mencione na denúncia apenas a expressão “grave ameaça” no roubo (pois deve detalhar qual foi a ameaça efetuada), também não é suficiente que a acusação apenas repita o tipo penal.
Deve, portanto, narrar que a conduta indevida foi para “satisfazer interesse ou sentimento pessoal, consistente em (…)”. Se não houver esse complemento, a denúncia é inepta.
Em um caso muito interessante, o STJ reconheceu a atipicidade quanto ao crime de calúnia em situação na qual o advogado apresentou pedido de desagravo dizendo que o juiz agiu em represália e fez nítida retaliação. A narrativa não mencionava que o Juiz contrariou a lei, tampouco que agiu para satisfazer interesse ou sentimento pessoal, como exige a prevaricação (STJ, RHC 57.561/RS).
REFERÊNCIA:
NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. v.4.
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