O Ministro da Justiça pode impetrar habeas corpus em favor do Ministro da Educação?
No dia 27 de maio de 2020, quarta-feira, o Ministro da Justiça, André Mendonça, impetrou habeas corpus em favor do Ministro da Educação, Abraham Weintraub, sustentando a quebra da independência, harmonia e respeito entre os Poderes (“in casu”, entre os Poderes Executivo e Judiciário). Para acessar a peça, CLIQUE AQUI.
No remédio constitucional, o Ministro da Justiça pediu a concessão da ordem para:
a) liminarmente, suspender a oitiva de Abraham Weintraub no Inquérito 4781 no prazo máximo de 5 dias, salientando que é urgente a concessão da medida;
b) excluir Abraham Weintraub do inquérito ou trancar o inquérito relativamente a Abraham Weintraub por inexistência de relação entre o objeto do inquérito (fake news) e o exercício da liberdade de expressão;
c) subsidiariamente, trancar o inquérito relativamente ao que seja considerado resultado do exercício do direito de opinião e liberdade de expressão, inclusive crítica construtiva como é próprio do regime democrático de governo;
d) em caso de indeferimento dos pedidos anteriores, reconhecer que Abraham Weintraub é investigado, não testemunha, logo, tem o direito constitucional e legal de ser interrogado apenas ao final do inquérito, bem assim comparecer ou não, calar ou não, inclusive sendo-lhe facultado pronunciar-se por escrito;
e) por questão de isonomia e coerência, a extensão dos pedidos a todos aqueles que tenham sido objeto de diligências e constrições no âmbito do Inquérito cujo trancamento é demandado.
Inicialmente, salienta-se que, quanto aos pedidos, trata-se de uma estratégia frequentemente utilizada pela defesa, não havendo nada de errado quanto ao seu conteúdo.
Nesse diapasão, é comum impetrar habeas corpus para suspender a oitiva ou o interrogatório, especialmente em comissões parlamentares de inquérito (CPIs), em que pode existir o risco de autoincriminação, diante dos excessos na inquirição. No caso, trata-se de um inquérito, mas a lógica quanto à inexistência do dever de se autoincriminar também é aplicável.
Na mesma linha, também tem sentido o pedido de que o Ministro da Educação seja considerado como investigado, e não testemunha, para que tenha o respectivo tratamento, inclusive quanto ao direito ao silêncio e à impossibilidade de responder por crime de falso testemunho em caso de ocultar fatos ou mentir. Insta salientar que, no Brasil, não há crime de perjúrio, razão pela qual quem recebe o tratamento legal de investigado ou réu pode mentir sem responder criminalmente por isso.
Também são coerentes os pedidos de trancamento do inquérito, que são muito utilizados nos casos de atipicidade e falta de justa causa. No caso em comento, o fundamento sustentado seria o exercício da liberdade de expressão e do direito de opinião.
Por fim, o pedido de extensão dos pedidos aos outros investigados também é de praxe. Aliás, os efeitos poderiam ser estendidos de ofício, isto é, independentemente de pedido do impetrante.
Assim, quanto ao conteúdo (fundamentos e pedidos), não se observa nada de estranho no habeas corpus impetrado pelo Ministro da Justiça.
A crítica que deve ser feita diz respeito ao impetrante, mormente quanto a sua função. Também devemos avaliar se a defesa deveria/poderia ser feita por um agente público.
De início, ressalta-se que, conforme o art. 654 do CPP, “o habeas corpus poderá ser impetrado por qualquer pessoa, em seu favor ou de outrem, bem como pelo Ministério Público”.
Portanto, além de ter a possibilidade de escolher qualquer um dos mais de um milhão de Advogados do país (para ver o número exato, clique aqui), o Ministro da Educação também poderia escolher qualquer outra pessoa, mesmo que não fosse um Advogado, bem como impetrar o habeas corpus em seu próprio nome.
Juridicamente, não há empecilho à impetração do habeas corpus pelo Ministro da Justiça, considerando que qualquer pessoa poderia ter impetrado. Portanto, no que concerne à legitimidade, não há equívoco.
O problema consiste no fato de que, como qualquer outra pessoa poderia impetrar habeas corpus, seria recomendável que o remédio constitucional não fosse impetrado pelo Ministro da Justiça, considerando os seguintes fundamentos.
A Polícia Federal é integrante da estrutura básica do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Inclusive, o Regimento Interno da Polícia Federal é aprovado pelo respectivo Ministro de Estado, prevendo, por exemplo, que ao Diretor-Geral incumbe promover a execução das diretrizes de segurança pública estabelecidas pelo Ministro e prestar informações a ele para o aprimoramento e a implementação da Política Nacional de Segurança Pública.
Como é sabido, a Polícia Federal tem, dentre outras, as atribuições de apurar determinadas infrações penais e exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União (art. 144, §1º, I e IV, da Constituição Federal).
Em suma, como justificar que o Ministro da Justiça atue em favor de um investigado?
Seria “menos errado” se o habeas corpus tivesse sido impetrado pelo Advogado-Geral da União. Vejam: não estamos afirmando que seria certo, mas sim que não causaria tanta estranheza, por inexistir qualquer vínculo ou relação com a Polícia Federal ou qualquer outro órgão que apure infrações penais.
O Advogado-Geral da União é o mais elevado órgão de assessoramento jurídico do Poder Executivo (art. 3º, §1º, da LC n. 73/1993). Entre as atribuições previstas no art. 4º da LC 73, estão:
- representar a União junto ao Supremo Tribunal Federal (III);
- assessorar o Presidente da República em assuntos de natureza jurídica (VII);
- sugerir ao Presidente da República medidas de caráter jurídico reclamadas pelo interesse público (IX).
Observa-se que as atribuições do AGU dizem respeito à União e ao Presidente da República, não havendo previsão específica de atuação em favor de um Ministro de Estado no âmbito de uma investigação que apura a suposta prática de infrações penais. Portanto, mesmo se o habeas corpus tivesse sido impetrado pelo AGU, poderia sofrer críticas quanto à falta de atribuição.
Poderíamos ir além: parece-nos que a utilização do Ministro da Justiça (como foi o caso) ou do Advogado-Geral da União (como seria “menos errado”) para defender individualmente um investigado é uma indevida institucionalização da defesa penal, que não deveria ser exercida por outros Ministros, mas sim por Advogados particulares ou Defensores Públicos.
Logo, ainda que a impetração do habeas corpus pelo Ministro da Justiça seja, em tese, possível, entendemos que, por coerência, lógica e respeito à coisa pública e às instituições, não é oportuna, por significar uma institucionalização da defesa e uma preocupação política na seara processual.
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