Decisão proferida pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal no RHC 133043, julgado em 10/05/2016 (leia a íntegra do acórdão).
Confira a ementa:
HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. LESÃO CORPORAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. PRETENSÃO DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA: IMPOSSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA. 1. Para incidência do princípio da insignificância devem ser relevados o valor do objeto do crime e os aspectos objetivos do fato, a mínima ofensividade da conduta do agente, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica causada. 2. Na espécie vertente, não se pode aplicar ao Recorrente o princípio pela prática de crime com violência contra a mulher. 3. O princípio da insignificância não foi estruturado para resguardar e legitimar condutas desvirtuadas, mas para impedir que desvios de conduta ínfimos, isolados, sejam sancionados pelo direito penal, fazendo-se justiça no caso concreto. 4. Comportamentos contrários à lei penal, notadamente quando exercidos com violência contra a mulher, devido à expressiva ofensividade, periculosidade social, reprovabilidade do comportamento e lesão jurídica causada, perdem a característica da bagatela e devem submeter-se ao direito penal. 5. Recurso ao qual se nega provimento.
(RHC 133043, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 10/05/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-105 DIVULG 20-05-2016 PUBLIC 23-05-2016)
Confira a íntegra do voto:
V O T O
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (Relatora):
Razão jurídica não assiste ao Recorrente.
O Recorrente sustenta dever-se aplicar o princípio da insignificância à espécie.
Foi a ele imputada a prática de crime de lesão corporal com violência doméstica, por “ofend[a] a integridade física d[a vítima], sua companheira, desferindo-lhe socos, arranhões e chutes, além de tentar asfixiá-la por meio de um travesseiro, que resultaram em lesões corporais leves”.
A verificação da tipicidade penal não pode ser percebida como o exercício abstrato de adequação do fato concreto à norma jurídica. Além da correspondência formal, para a configuração da tipicidade é necessária análise materialmente valorativa das circunstâncias do caso concreto, para se concluir sobre a ocorrência de lesão grave, contundente e penalmente relevante do bem jurídico tutelado.
O princípio da insignificância reduz o espaço de proibição aparente da tipicidade legal e torna atípico penalmente determinado fato, apesar de haver lesão a bem juridicamente tutelado pela norma penal.
O Desembargador Manoel Mendes Carli, da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, assentou a inaplicabilidade do princípio da insignificância aos crimes praticados com violência doméstica:
“Tenho que o princípio da bagatela, própria ou imprópria, é inaplicável em delitos que envolvam violência doméstica, diante da reprovabilidade social e moral da conduta, que não é inofensiva nem penalmente irrelevante. Na situação particular, pode-se verificar que se está diante de um caso de cometimento de infração penal perpetrada em situação de violência doméstica contra a mulher (Lei 11.340/06). Por essa razão, é que se consagrou o entendimento de que os delitos penais que são cometidos em situação de violência doméstica, não é admissível a aplicação do princípio da bagatela imprópria, tudo sob o pretexto de que a integridade física da mulher (bem jurídico) não pode ser tida como insignificante para a tutela do Direito Penal. Consigne-se ainda que ‘o fato de a vítima haver voltado a conviver com seu algoz não o exime da responsabilidade penal, ainda que em prol da harmonia familiar, pois o casal deve conviver dentro dos limites impostos pela Lei e construir a relação com base no respeito mútuo”.
Esse acórdão foi mantido pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao proferir o julgamento objeto desta impetração:
“Em primeira instância, o paciente foi condenado, por fatos praticados em 22.1.2012, à pena de 3 (três) meses de detenção, em regime inicial aberto, e ao pagamento de 291 (duzentos e noventa e um) dias-multa, pela prática do delito previsto no art. 129, § 9.º, do Código Penal, sendo aplicado o sursis pelo prazo de 2 (dois) anos (Processo n.º 0003435-18.2013.8.12.0001, da 10.ª Vara Criminal da Comarca de São Paulo⁄SP). De se notar que o princípio da bagatela imprópria, também nomeado irrelevância penal do fato, circunscreve-se à desnecessidade da pena no caso, não obstante o desvalor da conduta e do seu resultado. Ou seja, enquanto que no princípio da insignificância (propriamente dito) o fato cometido é atípico; na modalidade imprópria, as circunstâncias da conduta, mesmos as posteriores à prática delitiva, ensejam a consideração de irrelevância, a afastar o cumprimento da pena. Nesse diapasão, pauto-me pela jurisprudência deste Superior Tribunal, a entender que, no caso em liça, a reconciliação do casal não implica a desnecessidade da sanção. De fato, especialmente diante da significativa reprovabilidade da conduta que ofende o bem jurídico tutelado, qual seja, a integridade física da pessoa vítima de violência doméstica, não se apresenta dispensável a imposição de reprimenda na espécie, ainda que em virtude de posterior harmonização entre agente e vítima. A propósito, vejam-se estes julgados do Superior Tribunal de Justiça: (…) (AgRg no REsp 1464335⁄MS, de minha relatoria, SEXTA TURMA, julgado em 24⁄03⁄2015, DJe 31⁄03⁄2015) (…) (HC 222.093⁄MS, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 07⁄08⁄2012, DJe 14⁄08⁄2012) Inclusive, já se pontuou que o referido brocardo não incide em hipóteses de violência doméstica que, além de se tratar de ação penal pública incondicionada, são vedados institutos despenalizadores da Lei n.º 9.0099⁄95 (AREsp n.º 557.516⁄DF, decisão unipessoal do Ministro Sebastião Reis Júnior, DJe de 23.9.2014)”.
Esses julgados harmonizam-se com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal de que, “para a incidência do princípio da insignificância, devem ser relevados o valor do objeto do crime e os aspectos objetivos do fato, tais como, a mínima ofensividade da conduta do agente, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica causada” (RHC n. 115.226, de minha relatoria, DJ 21.11.2013).
Como afirmado no parecer da Procuradoria-Geral da República:
“3. Sem razão a recorrente. 4. Como afirmado pelo Superior Tribunal de Justiça: ‘no caso em liça, a reconciliação do casal não implica a desnecessidade da sanção. De fato, especialmente diante da significativa reprovabilidade da conduta que ofende o bem jurídico tutelado, qual seja, a integridade física da pessoa vítima de violência doméstica, não se apresenta dispensável a imposição de reprimenda na espécie, ainda que em virtude de posterior harmonização entre agente e vítima. (…) Inclusive, já se pontuou que o referido brocardo não incide em hipóteses de violência doméstica que, além de se tratar de ação penal pública incondicionada, são vedados institutos despenalizadores da Lei n.º 9.0099/95 (AREsp n.º 557.516/DF, decisão unipessoal do Ministro Sebastião Reis Júnior, DJe de 23.9.2014)’. 5. Nesse sentido, a jurisprudência dessa Suprema Corte: ‘É inviável reconhecer a aplicação do princípio da insignificância para crimes praticados com violência ou grave ameaça, incluindo o roubo. Jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal. Recurso ordinário em habeas corpus não provido’. (RHC nº 106.360/DF, rel. Min. Rosa Weber, DJe 04.10.2012). 6. Ademais, o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional o art. 41 da Lei nº 11.343/06, que dispõe que ‘aos crimes praticados com violência doméstica e familiar, independente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995’ (HC n º 106212/MS, rel. Min. Marco Aurélio, sessão realizada em 24.03.2011, Tribunal Pleno). 7. E mais, a prática da lesão corporal desencadeia ação penal pública incondicionada e, como a Lei Maria da Penha (art. 41) expressamente afasta a incidência da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95), não há espaço para acordo, renúncia à representação, transação, composição dos danos, suspensão do processo e tampouco aplicação do princípio da insignificância. 8. Isso posto, opino pelo desprovimento do recurso”.
O princípio da insignificância não foi estruturado para resguardar e legitimar condutas desvirtuadas, mas para impedir que desvios de conduta ínfimos, isolados, sejam sancionados pelo direito penal, fazendose justiça no caso concreto. Comportamentos contrários à lei penal, notadamente quando exercidos com violência contra a mulher, devido à expressiva ofensividade, periculosidade social, reprovabilidade do comportamento e lesão jurídica causada, perdem a característica da bagatela e devem submeter-se ao direito penal.
Pelo exposto, voto no sentido de negar provimento ao recurso.
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