O crime de extorsão está previsto no art. 158 do Código Penal brasileiro (CP) da seguinte forma:
Art. 158 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa:
Pena – reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
Inicialmente, constata-se que, no Brasil, o crime de extorsão tem uma das maiores penas do mundo para esse tipo de conduta, variando entre 4 e 10 anos de reclusão. Devia-se debater melhor sobre o princípio da proporcionalidade quanto ao preceito secundário desse tipo penal.
Apenas para se estabelecer um parâmetro, na Espanha, o art. 243 do Código Penal estabelece a pena de prisão de 1 a 5 anos. Em outras palavras, a pena mínima espanhola é 1/4 da pena mínima brasileira, enquanto a pena máxima é exatamente a metade da nossa pena máxima. De modo semelhante à Espanha, mas sem a cominação de uma pena mínima, o art. 223 do Código Penal de Portugal, ao disciplinar o crime de extorsão, prevê a pena de até 5 anos de prisão.
Portanto, é imperioso que se discuta o princípio da proporcionalidade no que concerne à pena do crime de extorsão.
De qualquer forma, um debate precedente à questão da pena é, evidentemente, a análise da tipicidade. Ausente a tipicidade (formal ou material), o fato é atípico, não havendo crime e, por conseguinte, não sendo aplicável a sanção penal.
Assim, imagine a seguinte situação:
Alguém furta ou rouba a moto da vítima. Dias depois, a vítima recebe uma ligação de Tício, que solicita um valor para devolver a moto. Em outras palavras, Tício diz à vítima que, não sendo pago o valor, a moto não será devolvida, permanecendo tudo como está. Independentemente de quem furtou ou roubou a moto, a conduta de Tício se subsume ao tipo penal do crime de extorsão?
A questão a ser analisada é se a promessa de não devolver a moto caso não seja pago o valor é ou não uma grave ameaça. Noutros termos, há tipicidade do crime de extorsão quando a “grave ameaça” consiste na afirmação de que, se não for paga a vantagem indevida, a vítima continuará sem o bem furtado ou roubado? Há tipicidade quando se diz que tudo permanecerá como está?
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem entendimento no sentido de que o fato é típico, ou seja, a promessa de não devolução do bem em caso de ausência do pagamento do “resgate” constitui grave ameaça.
A título de exemplo, o seguinte julgado:
PENAL. HC SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. EXTORSÃO. GRAVE AMEAÇA DE DANO A BEM DA VÍTIMA. POSSIBILIDADE. ABSOLVIÇÃO. MAIORES INCURSÕES QUE DEMANDARIAM REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-COMPROBATÓRIO DOS AUTOS. IMPROPRIEDADE DO WRIT. ORDEM NÃO CONHECIDA.
[…]
2. Nos termos da jurisprudência desta Corte, configura a grave ameaça necessária para a tipificação do crime de extorsão a exigência de vantagem indevida sob ameaça de destruição e não devolução de veículo da vítima, que havia sido dela subtraído.
Precedentes.
[…]
4. Habeas corpus não conhecido.
(HC 343.825/SC, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 15/09/2016, DJe 21/09/2016)
Em sentido contrário, entendo pela atipicidade, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul possui algumas decisões relevantes. Cito, por todas, a seguinte:
EMBARGOS INFRINGENTES. CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO. EXTORSÃO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. POSSIBILIDADE. A simples exigência de valores para que o veículo objeto de subtração anterior fosse recuperado, sob pena de não ocorrer a devolução, embora seja eticamente reprovável, não se mostra suficiente à configuração da elementar do art. 158 do CP. Embargos infringentes acolhidos. Por maioria. (Embargos Infringentes e de Nulidade Nº 70068815141, Quarto Grupo de Câmaras Criminais, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jucelana Lurdes Pereira dos Santos, Julgado em 23/09/2016)
Com outro enfoque, entendo que não seria típica a extorsão quando a violência ou grave ameaça é dirigida ao patrimônio, outra decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
APELAÇÃO. CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO. EXTORSÃO. INSURGÊNCIA MINISTERIAL. ELEMENTAR GRAVE AMEAÇA NÃO DEMONSTRADA. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. ATIPICIDADE. ART. 386, INC. III, DO CPP. A denúncia narra a prática de crime de extorsão praticado mediante a exigência de entrega pela vítima de quantia em dinheiro, “sob a ameaça de não devolução de sua motocicleta”. Ocorre que, para a configuração do crime em tela – em que pese a divergência doutrinária, o que não se desconhece -, necessária se faz a comprovação do emprego de violência ou grave ameaça dirigida à vida, integridade física, moral ou psíquica da vítima, o que não se verifica, na hipótese. A conduta narrada na exordial, no que diz com a classificação jurídica imputada aos réus – extorsão -, é atípica, muito embora pudessem os atos anteriores caracterizar, em tese, o delito de furto ou receptação, o que não se cogitou na origem. Absolvição mantida, com fulcro no art. 386, inc. III, do CPP. APELO IMPROVIDO. POR MAIORIA. (Apelação Crime Nº 70064116197, Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Isabel de Borba Lucas, Julgado em 27/07/2016)
Portanto, duas questões merecem ser analisadas:
– há crime de extorsão quando a ameaça se refere à destruição de patrimônio?
– há crime de extorsão quando a ameaça é de que tudo permaneça como está (o bem não seja devolvido)?
Sobre a primeira questão, há enorme divergência doutrinária.
O fato de o crime de extorsão se encontrar previsto no Título II (Dos crimes contra o patrimônio) não tem qualquer relevância para o deslinde dessa divergência sobre a devolução do objeto da vítima. Refere-se unicamente à vantagem econômica e ao eventual prejuízo que possa resultar para a vítima.
Se a previsão do crime de extorsão na posição topográfica dos crimes contra o patrimônio solucionasse a questão acima, teríamos um problema quando a ameaça se direcionasse à vida ou à integridade física ou psicológica da vítima, pois, pelo mesmo critério, não haveria crime de extorsão.
Portanto, a classificação da extorsão como crime contra o patrimônio não significa que caiba ameaça direcionada à destruição ou ao ocultamento do objeto da vítima.
De qualquer modo, entendo que a questão deve ser analisada a partir da segunda questão, ou seja, se há ou não extorsão quando a ameaça consiste na mera afirmação de que tudo permanecerá como está e que o objeto não será devolvido.
No que tange a essa indagação, há de se considerar que a ameaça é o risco de algo acontecer futuramente. Não se ameaça propondo a continuidade ou a permanência de uma situação prejudicial que o indivíduo não tenha o dever de amenizar, tampouco tenha dado origem a essa situação.
Da mesma forma, não há ameaça quando se solicita uma vantagem para que a situação da vítima seja melhorada, afirmando que, caso essa vantagem não seja paga, a vítima continuará na situação prejudicial em que se encontra.
Nesse prisma, afirmar que fará alguém ser despedido tem gravidade muito mais cristalina do que afirmar que nada fará para que alguém deixe de estar desempregado.
Caso a “ameaça” de não devolução do bem seja proveniente daquele sujeito que o furtou/roubou/recebeu, deverá ser analisada individualmente a eventual prática de furto, roubo ou receptação. Entretanto, o fato será atípico no que tange ao crime de extorsão, pois a intimidação consistiria no mero risco de que a situação permaneça como está.
À vista disso, conclui-se pelo acerto da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que considera formalmente atípica a conduta de exigir vantagem indevida sob pena de que algo não seja devolvido.