Texto escrito em coautoria com Thomás Severo, Advogado Criminalista em Recife/PE.
A imputação da autoria de um crime a determinado sujeito sempre foi um desafio à dogmática criminal. Dessa forma, é perceptível ao longo da história o esforço de vários estudiosos do Direito Penal para solucionar a distinção na aplicação das sanções penais, tendo como base a ação de cada indivíduo envolvido na prática do delito.
Nesse contexto, surge a teoria do domínio do fato, cujo maior responsável por traçar um formato capaz de sobreviver a tantos embates doutrinários sobre o conceito de autoria foi o doutrinador alemão Claus Roxin. Por sua vez, esta não tem como pretensão imputar a autoria de um crime a determinado sujeito, quando de outra forma ele não seria punido. Na verdade, para a teoria do domínio do fato, “[…] não se trata de determinar se o agente será ou não punido, e sim se o será como autor, ou como mero partícipe” (GRECO; LEITE, 2013, p. 63).
Dessa forma, evidencia-se que Roxin foi responsável por uma descoberta dogmática, tendo em vista que a sua concepção de domínio do fato partiu de um aspecto mais abstrato, a saber, ser o autor a figura central do acontecer típico. Ele não elaborou um conceito de domínio do fato, mas, a partir das diretrizes, procura estabelecer quando há ou não este domínio (AFLEN, 2014, p. 108).
Isto posto, é forçoso ao operador do Direito entender do que se trata o termo “domínio do fato” antes de utilizá-lo em suas denúncias, petições, sentenças ou em qualquer outra forma de tentativa de persuasão do interlocutor para o fazer acreditar que alguém é autor de um crime através do uso dessa teoria, uma vez que o próprio Roxin deixa clara a necessidade de verificação nas experiências vividas, na observação das coisas, para só então determinar se houve ou não este domínio.
Nesse sentido, Aflen (2014, p. 111) traz importante lição quanto ao alcance do termo em análise:
[…] a questão relativa ao alcance da ideia de domínio […] somente pode ser respondida a partir do exame dos tipos penais em espécie, pois ‘o domínio do fato somente pode caracterizar a figura central do acontecimento delitivo, quando a conduta analisada pelo legislador como digna de pena é dominável’ […] ‘domináveis são todos os acontecimentos cujos efeitos desaprovados se encontram no âmbito material ou psíquico’, tais como mortes lesões corporais, danos materiais, incêndios provocados, roubos, cujas consequências externas são acessíveis enquanto configurações dirigidas.
Para Roxin, o domínio do fato subdivide-se em três manifestações, a saber: domínio sobre a ação – acarreta a autoria direta; domínio funcional do fato – acarreta a coautoria; domínio da vontade de um terceiro – acarreta a autoria mediata (BOMBARDELLI, 2014). Por sua vez, esta última é subdividida em outras três formas, quais sejam: coação exercida sobre o homem da frente, indução do homem da frente em erro e domínio por meio de aparato organizado de poder. Merece destaque o “domínio por meio de aparato organizado de poder”, por ser a forma menos nominalmente usada, porém mais utilizada, muitas vezes erroneamente, na praxe jurídico-criminal.
No ano de 1963, Claus Roxin publicou um artigo intitulado Straftaten im Rahmen organisatorischer Machtapparate, onde discorreu sobre uma terceira forma de autoria do homem por trás do executor do fato, sendo esta completamente distinta das anteriores, chamada de ““domínio da vontade em virtude de aparatos organizados de poder” a qual permite, ao contrário de ambas as formas de autoria mediata anteriormente mencionadas, um domínio do acontecimento, apesar da plena responsabilidade do executor” (AFLEN, 2014, p. 136).
Outrossim, para falarmos do supracitado domínio, é necessário verificar a existências de quatro pressupostos: o poder de comando; a desvinculação do direito pelo aparato de poder; a fungibilidade do executor direto; e, por fim, a disposição essencialmente elevada dos executores ao fato (AFLEN, 2014, p. 140).
Pode-se dizer que o poder de comando é verificável na ação daquele sujeito por trás do executor. Em termos de criminalidade brasileira, pode-se verificar esse poder de comando plenamente viável nas facções criminosas atuantes no tráfico de drogas, pois o sujeito intitulado como gerente da boca de fumo exerce o poder de comando sobre os seus “soldados” do tráfico. Por outro lado, aquele recebe ordens dos chefes das facções, sujeitos de hierarquia elevada e também detentores do poder de comando.
Já a chamada desvinculação do direito pelo aparato de poder é fator preponderante para utilização dessa forma de autoria mediata, o que é verificável no interior de facções criminosas como o Comando Vermelho (CV), o Primeiro Comando da Capital (PCC), os Amigos dos Amigos (ADA), dentre tantas outras organizações criminosas presentes no Brasil, sendo essas detentoras de seus próprios códigos de conduta, os quais desrespeitam a legislação pátria vigente, especialmente quanto aos seus “tribunais do crime”.
[…] a limitação da autoria pelo domínio de aparatos organizados de poder aos casos em que esses aparatos atuam à margem do direito, faz que esse atuar à margem da ordem jurídica se converta em pressuposto ineludível para construir este tipo de imputação e recorrer à teoria do domínio por organização (CERVINI; ADRIASOLA, 2015) (grifo nosso)
Por conseguinte, a fungibilidade do autor direto é marcada pelo fato de ter o homem de trás várias opções de executores diretos para a realização do seu intento criminoso. Podemos analisar este pressuposto em um fato ocorrido no ano passado dentro da facção paulista intitulada de PCC, em que o líder desta, dentro de uma penitenciária de segurança máxima, teria ordenado a morte de um dos seus subalternos, sem especificar quem seria o autor direto do fato, uma vez que vários dos integrantes daquela organização criminosa poderiam executar a ordem emanada (clique aqui).
Por fim, o último requisito elencado por Roxin é a disposição essencialmente elevada dos executores ao fato, que tem como base o fato de ser creditado ao executor de uma ordem emanada dentro de um aparato organizado de poder um maior intento na conduta, porque já recebera a influência de vários autores mediatos para realizar o ato, o que evidencia o poder do autor da ordem criminosa.
Neste diapasão, deve o operador do direito verificar que os requisitos são cumulativos. Ausente qualquer um deles, não há que se falar em domínio por meio de aparato organizado de poder e, consequentemente, ausente estará a teoria do domínio do fato.
Recentemente, os chefes da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro ordenaram que, nos próximos casos de homicídio de policiais em confronto, deverão ser responsabilizados também os chefes das referidas facções criminosas (clique aqui), surgindo mais uma vez a discussão quanto a utilização da obra do doutrinador alemão como meio de imputação da autoria criminal a determinado sujeito.
A pergunta que surge é a seguinte: estará correta tal imputação de homicídios aos líderes desses aparatos organizados de poder? Pois bem. Há duas respostas para tal indagação.
Primeiro, como fora dito acima, a utilização da teoria do domínio do fato, em seu desdobramento no domínio por meio de aparato organizado de poder, é lastreada por requisitos cumulativos, os quais não podem ser negociados, sob pena de rechaço às normas de Direito Penal e consequente responsabilidade penal objetiva, o que não se deve tolerar de forma alguma.
Sendo assim, verificado que o executor de um homicídio recebeu expressamente de seu superior hierárquico a ordem de ceifar a vida de outrem, restando totalmente comprovados os quatro requisitos mencionados, sim, deverá este chefe de organização criminosa responder pelo homicídio como autor mediato do fato, recebendo as devidas sanções penais postas no ordenamento jurídico.
Por outro lado, não sendo possível afirmar, mediante os meios probatórios postos em contraditório judicial, que tal chefe de organização ordenou a execução de outrem, por meio de algum dos seus subalternos, não se pode utilizar da obra de Roxin, a fim de imputar, de maneira “mais fácil”, a prática do crime.
Desta forma, o que não se pode tolerar é a negociata com institutos e princípios que resguardam o direito de todos os cidadãos, repito, todos os cidadãos, a fim de lutar a todo custo contra a criminalidade. Aliás, quem desrespeita a lei “em nome da lei e da ordem” acaba se tornando um infrator da lei.
REFERÊNCIAS:
AFLEN, Pablo Rodrigo. Teoria do domínio do fato. São Paulo: Saraiva, 2014.
BOMBARDELLI, Pablo. Domínio do Fato em Welzel e em Roxin: critérios de conceito restritivo de autoria. Disponível em:<https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/111796/000951838.pdf?sequence=1> Acesso em 28 de março de 2018.
CERVINI, Raul; ADRIASOLA, Gabriel apud SANTOS, Bartida Macedo Miranda; RIBEIRO, Luiz Gustavo Gonçalves; CASTRO, Matheus Felipe de. Direito Penal e Constituição. XXIV Congresso Nacional do CONPEDI – UFMG/FUMEC/Dom Helder Câmara. Disponível em < https://www.conpedi.org.br/publicacoes/66fsl345/393xa7s7/uCWD1unuI155E26e.pdf> Acesso em 28 de março de 2018.
GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato sobre a distinção entre autor e partícipe no direito penal. Revista dos Tribunais 933, 2013.
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