Notícia publicada no site do Superior Tribunal de Justiça no dia 24 de março de 2019 (leia aqui).
Sozinho na cela 16, pavilhão J, do Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília, Adealdo Ferreira Cardoso precisou tomar uma decisão definitiva: continuaria envolvido no universo criminoso que o levou a uma condenação acumulada de 25 anos de prisão ou buscaria um novo sentido para a sua vida? Com apego à fé e às oportunidades de trabalho e estudo, ele não só optou pelo segundo caminho, como também conseguiu abreviar o cumprimento de sua pena por meio do benefício da remição.
Aos 56 anos – e prestes a completar a marca de 27 anos desde que cumpriu seu último dia de pena –, Adealdo ultrapassou uma série de etapas de ressocialização que permitiram a um detento semianalfabeto se transformar, primeiro, em gerente de uma associação que proporcionou mais de 200 vagas de trabalho para egressos do sistema prisional e, depois, em um líder religioso que ajuda outras pessoas a encontrar uma vida de paz, muito longe do crime.
Nascido no Amapá, mas criado em Belém, Adealdo conta que teve contato com drogas ainda na infância e, para sustentar o vício, iniciou seus primeiros furtos na capital paraense. “Vi as pessoas no mundo do crime com uma aparência bacana, como se fossem bem-sucedidas. Como eu não tinha exemplo em casa, eu me espelhei nesses camaradas, desejei ser como eles.”
O crime
A primeira detenção ocorreu quando ele tinha 11 anos. Foi internado em um centro para menores, mas fugiu. Já morando definitivamente em Brasília, em 1981, Adealdo participou de uma série de crimes após desentendimentos com grupos rivais. Ele chegou a escapar da polícia, mas, ao voltar à capital federal e se alistar no Exército, foi preso e transferido para o Núcleo de Custódia de Brasília. Aos 19 anos, chegava ao sistema prisional com apenas as duas primeiras séries do ensino fundamental e sem nunca ter trabalhado na vida.
“Na penitenciária, o clima era tenso. Os fortes queriam imperar sobre os mais fracos. Havia brigas e até mortes. Ninguém se conformava em um ambiente desse tipo. Às vezes, algumas pessoas fracas de mente se enforcavam nas grades. Era preciso andar armado para não ser tido como fraco”, recorda.
Para fugir de um “segundo inferno” no cárcere, as alternativas encontradas por Adealdo foram a educação e, ao mesmo tempo, a capacitação profissional dentro do presídio. Quando passou a trabalhar como jardineiro na Papuda e reuniu as primeiras apostilas do ensino básico, Adealdo iniciou seu processo de reintegração social, obtendo os primeiros dias de remição de pena.
A remição
A remição está regulada desde 1984 pela Lei de Execução Penal – LEP (Lei 7.210), que inicialmente previa apenas o encurtamento da pena em virtude do trabalho. Segundo o texto original da lei, o condenado em regime fechado poderia descontar um dia de pena a cada três de trabalho.
Posteriormente, em 2007, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ampliou a interpretação do artigo 126 da LEP para estabelecer que a frequência a curso de ensino formal é causa de remição de parte do tempo de execução da pena sob o regime fechado ou semiaberto.
Ao fixar a tese, consolidada na Súmula 341, o tribunal considerou que a interpretação extensiva do vocábulo “trabalho”, longe de afrontar o artigo 126, dá-lhe correta aplicação, já que a atividade estudantil – tanto ou mais que o trabalho – está perfeitamente adequada à finalidade do instituto da remição.
“Sendo um dos objetivos da lei, ao instituir a remição, incentivar o bom comportamento do sentenciado e a sua readaptação ao convívio social, a interpretação extensiva se impõe in casu, se considerarmos que a educação formal é a mais eficaz forma de integração do indivíduo à sociedade”, afirmou o ministro Gilson Dipp em um dos precedentes que deram origem à súmula. Em 2011, o texto da LEP foi alterado para incluir o estudo como hipótese de remição.
Mais recentemente, em 2016, a Terceira Seção do STJ editou a Súmula 562, que fixou a possibilidade de remição de pena quando o condenado, em regime fechado ou semiaberto, desempenha atividade laborativa mesmo fora do presídio.
“A única imposição contida no artigo 126 da LEP para a concessão da remição é a de que o condenado cumpra pena em regime fechado ou semiaberto, nada explicitando acerca do local desse trabalho. Logo, possível a remição da pena naqueles casos em que o preso trabalha fora do estabelecimento prisional”, apontou o ministro Og Fernandes em uma das ações que serviram de base para a súmula.
A recuperação
Dos gramados do presídio, Adealdo transformou-se em monitor educacional após concluir os níveis fundamental e médio. Passou a dar aulas de matemática, função que desempenhou durante seis anos, antes de concluir sua experiência profissional dentro dos muros da penitenciária, em uma pequena fazenda administrada pelo presídio.
Somadas as atividades como jardineiro, monitor e “vaqueiro” da fazenda, como brinca Adealdo, foram no total oito anos trabalhados no período de regime fechado. Submetido aos critérios restritivos da redação original da LEP – que previa a remição apenas na hipótese de trabalho –, Adealdo obteve cerca de dois anos e meio em dias remidos.
Caso a interpretação extensiva das normas ou a mudança legislativa tivesse acontecido antes, ele teria a possibilidade de descontar ainda mais tempo de pena, considerando o longo período de estudo no cárcere e o trabalho desenvolvido fora dos muros do presídio, após a progressão para o regime semiaberto.
A liberdade
Adealdo obteve a progressão em 1992, após uma década em regime fechado. Por intermédio do Centro de Reabilitação do Preso Egresso (Cerape), obteve uma vaga de trabalho em uma associação ligada às Centrais de Abastecimento do Distrito Federal (Ceasa-DF). Como gerente da associação, após convênio com a Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso, Adealdo participou do recrutamento de mais de 200 egressos do sistema prisional, garantindo a diversos ex-presos a valiosa oportunidade de ressocialização.
Desde 1999, Adealdo passou a atuar em tempo integral como pastor em uma igreja evangélica localizada em Taguatinga (DF). Além de apontar a religião como um marco divisor entre o crime e a redenção, o líder evangélico identifica nas chances que teve dentro e fora do cárcere o ponto de partida para uma nova vida.
“Mesmo do mal que acontece na nossa vida, surgem oportunidades. E, se nos derem oportunidades, nós provamos nossa capacidade aqui fora”, define o ex-presidiário.
Hipóteses ampliadas
Em consonância com a Recomendação 44/2013 do Conselho Nacional de Justiça, o STJ tem ampliado as hipóteses de remição da pena mesmo nos casos de atividades educacionais e profissionais não previstas expressamente na LEP. Apoiada em um sentido de ressocialização, a corte já admitiu a possibilidade de remição em casos como a leitura, o trabalho artesanal e a participação regular em grupo de coral.
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