Decisão proferida pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça no RHC 63.510/RS, julgado em 20/09/2016 (leia a íntegra do acórdão).
Confira a ementa:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. EVASÃO DE DIVISAS. ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL QUANTO AO RECORRENTE POR INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. OFERECIMENTO DE ADITAMENTO À DENÚNCIA PARA INCLUÍ-LO NO PÓLO PASSIVO DA AÇÃO PENAL. NECESSIDADE DA EXISTÊNCIA DE NOVAS PROVAS. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 18 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. ENUNCIADO 524 DA SÚMULA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AUSÊNCIA DE DOCUMENTAÇÃO COMPROBATÓRIA. FALTA DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CONFIGURADO. 1. Nos termos do artigo 18 do Código de Processo Penal e do verbete 524 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, a decisão de arquivamento do inquérito por insuficiência probatória não gera coisa julgada material, sendo possível a reabertura das investigações se surgirem novos elementos de convicção. 2. Por novas provas entendem-se aquelas que produzem alteração no panorama probatório da época do requerimento do arquivamento, não se tratando de um mero reexame de provas antigas. Doutrina. Precedentes. 3. Na espécie, após requerer o arquivamento do inquérito policial no tocante ao recorrente ante a inexistência de indícios suficientes de sua participação nos fatos, o Ministério Público aditou a denúncia para incluí-lo no pólo passivo da ação penal com base nos interrogatórios judiciais dos corréus e nos demais elementos de convicção reunidos na fase extrajudicial. 4. A defesa deixou de anexar aos autos cópia dos depoimentos dos corréus em juízo, não se podendo constatar que o seu teor seria idêntico ao dos seus interrogatórios em sede policial, o que impede este Sodalício de verificar a existência ou não de prova substancialmente nova, passível de justificar o oferecimento de aditamento à denúncia em desfavor do recorrente. 5. O rito do habeas corpus e do recurso ordinário em habeas corpus pressupõe prova pré-constituída do direito alegado, devendo a parte demonstrar, de maneira inequívoca, por meio de documentos que evidenciem a pretensão aduzida, a existência do aventado constrangimento ilegal, ônus do qual não se desincumbiu a defesa. Precedentes. 6. Recurso desprovido. (RHC 63.510/RS, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 20/09/2016, DJe 28/09/2016)
Leia a íntegra do voto:
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO JORGE MUSSI (Relator):
Por meio deste recurso ordinário constitucional, pretende-se, em síntese, o reconhecimento da inépcia da denúncia ofertada contra o recorrente.
Segundo consta dos autos, o Ministério Público ofereceu denúncia contra Gabriel Nunes Teixeira e Rafael Telli, imputando-lhes a prática do delito previsto no artigo 22, parágrafo único, da Lei 7.492/196 (e-STj fl. 48).
Na ocasião, o órgão acusatório requereu o arquivamento do inquérito policial no tocante ao recorrente uma vez que “não há nos autos, até o presente momento, elementos aptos a ensejar a propositura de ação penal contra CLÁUDIO”, pois “os depoimentos de GABRIEL e RAFAEL são os únicos indícios que apontam para a participação dele nos ilícitos, sendo de ressaltar que sequer foi realizada sua oitiva em sede policial”, sendo que “o esclarecimento integral dos fatos deverá ocorrer ao longo da instrução da ação penal, na qual CLÁUDIO foi arrolado como testemunha da acusação” (e-STJ fl. 48).
No curso da ação penal, o recorrente foi ouvido como testemunha, e, após prestar o compromisso de dizer a verdade e ser advertido das penas cominadas ao falso testemunho, passou a responder as perguntas formuladas pela acusação, esclarecendo como teria participado da remessa de valores ao exterior a pedido de dos corréus, sendo que, ao ser questionado sobre os envios narrados na denúncia, afirmou que embora não recordasse das operações, elas teriam sido realizadas mediante a apresentação da documentação necessária, momento em que a magistrada singular interrompeu o depoimento, advertindo-o que ele já havia sido indiciado, e que não seria obrigado a responder qualquer indagação que o pudesse incriminar, ressaltando o seu direito de ser acompanhado por advogado, tendo ele asseverado que, ao seu ver, todas as operações teriam sido realizadas em atenção às normas legais, após o que a julgadora houve por bem encerrar a inquirição, enquanto não estivesse acompanhado por defensor dativo (e-STJ fl. 49).
Posteriormente à audiência, o órgão ministerial aditou a peça vestibular para incluir o recorrente no processo, consignando que, com o seu concurso indispensável, os corréus, responsáveis de fato e de direito pela administração da empresa FOCO AGÊNCIA DE CARGAS LTDA., em pelo menos 5 (cinco) oportunidades, teriam promovido, sem autorização legal, a saída de moeda para o exterior, utilizando-se para tanto de canais informais (‘dólar-cabo’) propiciados por organização criminosa que atuaria à margem do Sistema Financeiro Nacional (e-STJ fl. 49).
A participação do recorrente teria sido de fundamental importância, pois, na qualidade de administrador da empresa BON & WOLF TURISMO LTDA., constituiria o elo de ligação entre os corréus e a CASA BRANCA CÂMBIO E TURISMO LTDA., pessoa jurídica cuja estrutura teria sido utilizada para a realização das transações irregulares (e-STJ fl. 49).
O órgão ministerial asseverou que, de acordo com o depoimento judicial do recorrente, ele teria confirmado ter intermediado a remessa ilegal de valores ao exterior por meio da CASA BRANCA CÂMBIO E TURISMO LTDA., na qualidade de administrador da empresa BON & WOLF TURISMO LTDA., no interesse da empresa FOCO AGÊNCIA DE CARGAS LTDA., ao passo que os corréus, ao serem interrogados, teriam afirmado não haver mantido qualquer contato com o doleiro Carlos Borghini, sendo o recorrente o responsável por todas as tratativas referentes à realização das operações, inclusive recebendo os valores a serem remetidos, que teriam sido depositados em conta por ele informada, o que, somado às demais provas colhidas no inquérito policial, demonstraria que seria coautor das práticas delitivas (e-STJ fl. 49).
Acrescentou que, ao ser interrogado judicialmente, o corréu Gabriel Henrique Nunes Teixeira teria esclarecido que a remessa dos valores para o pagamento de importações era feito diretamente pela empresa de turismo do recorrente, tendo sido depositados na conta da pessoa jurídica BON & WOLF TURISMO LTDA., sendo que, após o pagamento da importação, a empresa apresentava o swift para a empresa FOCO, que comunicava aos fornecedores no exterior, consignando que nunca havia feito o pagamento de valores no exterior até então, e que não teve qualquer contato com a CASA BRANCA ou com Carlos Borghini (e-STJ fl. 49).
Registrou que no interrogatório de Rafael Telli, ele teria noticiado haver contatado a empresa BON & WOLF, por meio do recorrente, para realizar o pagamento de fornecedores no exterior, não tendo se preocupado com o contrato de câmbio, pois era do seu interesse apenas obter o swift, com o qual comprovaria o pagamento dos fornecedores, não tendo procurado se informar sobre a burocracia que envolvia a operação, pois contratou a empresa do recorrente para tanto, e que os valores sempre foram transferidos para a conta da BON & WOLF, nunca tendo ouvido falar da CASA BRANCA TURISMO ou de Carlos Borghini (e-STJ fls. 49/50).
Concluiu que, com base nas provas colhidas no curso da instrução processual, somadas ao conjunto probatório obtido em sede policial, o recorrente teria praticado as condutas narradas na denúncia com os demais denunciados, sendo que a sua intermediação teria sido indispensável para que a evasão de divisas fosse efetuada por intermédio da empresa de propriedade de Carlos Borghini (e-STJ fl. 50).
Feitos tais esclarecimentos, sabe-se que, nos termos do artigo 18 do Código de Processo Penal, “depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia”.
Verifica-se, assim, que a decisão de arquivamento do inquérito por insuficiência probatória não gera coisa julgada material, sendo possível a reabertura das investigações se surgirem novos elementos de convicção.
Sobre o assunto, merecem menção as lições de Guilherme de Souza Nucci:
“Prosseguimento das investigações, após o encerramento do inquérito: a decisão que determina o arquivamento do inquérito não gera, em regra, coisa julgada material, podendo ser revista a qualquer tempo, inclusive porque novas provas podem surgir. Ocorre que a autoridade policial, segundo o preceituado em lei, independentemente da instauração de outro inquérito, pode proceder a novas pesquisas, o que significa sair em busca de provas que surjam e cheguem ao seu conhecimento. Para reavivar o inquérito policial, desarquivando-o, cremos ser necessário que as provas coletadas sejam substancialmente novas – aquelas realmente desconhecidas por qualquer das autoridades – sob pena de configurar um constrangimento ilegal” (Código de Processo Penal Comentado. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 117).
No mesmo sentido é o enunciado 524 da Súmula do Supremo Tribunal Federal:
Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do Promotor de Justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas.
Entretanto, o termo “novas provas” deve ser entendido como aquelas que produzem alteração no panorama probatório da época do requerimento do arquivamento, não se tratando de um mero reexame de provas antigas.
A propósito, Denilson Feitoza esclarece que “provas novas, segundo o STF, são somente aquelas que produzem alteração no panorama probatório dentro do qual foi concebido e acolhido o pedido de arquivamento do inquérito”, salientando que “a nova prova há de ser substancialmente inovadora, e não apenas formalmente nova”, sendo que “se uma testemunha anteriormente ouvida no inquérito policial for novamente ouvida e disser as mesmas coisas, estaremos diante de uma prova formalmente, mas não substancialmente nova” (Direito Processual Penal: teoria, crítica e práxis. 6ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009, p.190).
A mesma orientação é extraída da jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça, a exemplo dos seguintes julgados:
HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. PEDIDO DE ARQUIVAMENTO ACOLHIDO PELO JUIZ DO PROCESSO. ALEGAÇÃO DE SURGIMENTO DE NOVAS PROVAS. DESARQUIVAMENTO E INSTAURAÇÃO DE AÇÃO PENAL. DEPOIMENTO DE TESTEMUNHAS ANTERIORMENTE OUVIDAS. AUSÊNCIA DE PROVAS SUBSTANCIALMENTE NOVAS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO. 1. “Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do Promotor de Justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas” (Súmula 524/STF). 2. No caso, o representante do Ministério Público se valeu de depoimento prestado por duas testemunhas durante o trâmite de processo cível. Essas pessoas já tinham sido ouvidas durante o curso do inquérito policial. 4. As provas capazes de autorizar o desarquivamento do inquérito e consequente início da ação penal hão de ser substancialmente inovadoras, não bastando sejam formalmente novas. 5. Na hipótese, não há falar em prova nova, pois, entre o primeiro e segundo depoimentos prestados pelas mesmas testemunhas, houve uma natural divergência, explicável não somente pelo decurso do tempo (aproximadamente três anos), mas também pela condução das perguntas, ora feita pelos advogados da parte autora no processo cível; ora feita pelo advogado da empresa proprietária do coletivo; ora pelo douto Promotor de Justiça. 6. Entre as versões exaradas nos dois depoimentos não houve substancial mudança, a viabilizar o desarquivamento do inquérito e instauração da persecução penal. 7. Ordem concedida, com o intuito de determinar seja trancada a ação penal movida contra o ora paciente (Processo nº 97/04 – 2ª Vara Criminal da Comarca de Campo Limpo Paulista). (HC 122.328/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 19/11/2009, DJe 14/12/2009)
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. LESÃO CORPORAL CULPOSA NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. TERMO CIRCUNSTANCIADO. ARQUIVAMENTO DOS AUTOS POR ATIPICIDADE DO FATO. SUPERVENIÊNCIA DE PROVA NOVA SUBSTANCIALMENTE INOVADORA. POSSIBILIDADE DE DESARQUIVAMENTO PELO SURGIMENTO DE NOVOS FATOS. PARECER DO MPF PELO PROVIMENTO DO RECURSO. RECURSO DESPROVIDO, NO ENTANTO. 1. O trancamento de Inquérito Policial, de Ação Penal ou de Termo Circunstanciado (Lei 9.099/95) por meio de Habeas Corpus é medida excepcional, somente admissível quando transparece dos autos, de forma inequívoca, a inocência do acusado, a atipicidade da conduta ou a extinção da punibilidade. 2. Admite-se o desarquivamento de Inquérito Policial quando surgirem provas substancialmente inovadoras aptas a ensejar o início da Ação Penal. 3. Parecer do MPF pelo provimento do recurso. 4. Recurso desprovido. (RHC 25.205/RJ, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 29/04/2009, DJe 03/08/2009)
No caso dos autos, como visto, após o arquivamento do inquérito policial quanto ao recorrente, o Ministério Público, com base no seu testemunho na ação penal, nos interrogatórios dos corréus em juízo, e nas demais provas colhidas no curso do procedimento inquisitorial, aditou a peça vestibular para incluído no pólo passivo do processo.
E, uma vez excluídas as declarações prestadas pelo recorrente em audiência, reputadas nulas pela Corte Federal, constata-se que o aditamento da peça vestibular baseou-se, exclusivamente, nos interrogatórios dos corréus e nos demais elementos de convicção reunidos extrajudicialmente, não se podendo, contudo, aferir se seriam suficientes para o desarquivamento do inquérito policial.
Isso porque não foi anexada aos autos cópia dos depoimentos dos corréus em juízo, não se podendo constatar que o seu teor seria idêntico ao dos seus interrogatórios em sede policial, o que impede este Sodalício de verificar a existência ou não de prova substancialmente nova, passível de justificar o oferecimento de aditamento à denúncia em desfavor do recorrente.
Como se sabe, o rito do habeas corpus e do recurso ordinário em habeas corpus pressupõe prova pré-constituída do direito alegado, devendo a parte demonstrar, de maneira inequívoca, por meio documentos que evidenciem a pretensão aduzida, a existência do aventado constrangimento ilegal, ônus do qual não se desincumbiu a defesa.
Nesse sentido:
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. AUSÊNCIA DE PEÇA ESSENCIAL À COMPREENSÃO DA CONTROVÉRSIA. DEFICIÊNCIA NA INSTRUÇÃO QUE IMPOSSIBILITA A ANÁLISE DO PEDIDO. DECISÃO MANTIDA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITOS. 1. Ação constitucional de natureza mandamental, o recurso em habeas corpus tem como escopo precípuo afastar eventual ameaça ao direito de ir e vir, cuja natureza urgente exige prova pré-constituída das alegações e não comporta dilação probatória. 2. Não instruído o recurso com a decisão em que homologados os novos cálculos de execução da pena e alterada a data-base, mostra-se inviável o exame do sustentado constrangimento ilegal. 3. Embargos de declaração rejeitados. (EDcl no RHC 37.529/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 18/06/2015, DJe 01/07/2015)
PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ASSOCIAÇÃO E TRÁFICO DE DROGAS. CORRUPÇÃO DE MENORES. EXCESSO DE PRAZO NA INSTRUÇÃO PROCESSUAL. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE MANIFESTA. PRISÃO PREVENTIVA. REQUISITOS. DEFICIÊNCIA NA INSTRUÇÃO. (…) 3. Em sede de habeas corpus e recurso ordinário, a prova deve ser pré-constituída e incontroversa, cabendo ao recorrente apresentar documentos suficientes à análise de eventual ilegalidade flagrante no ato atacado, razão pela qual, in casu, a ausência de cópia do decreto de prisão preventiva impede o exame do pedido de reconhecimento de fundamentação inidônea. 4. Recurso ordinário desprovido. (RHC 53.289/SC, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, QUINTA TURMA, julgado em 18/06/2015, DJe 03/08/2015)
Por conseguinte, tratando-se de recurso ordinário interposto pela Defensoria Pública da União, tem ela o ônus de instruir o reclamo corretamente, com a íntegra dos documentos necessários à análise da controvérsia, o que não foi feito, circunstância que impede a análise da alegada falta de justa causa para o aditamento à denúncia que incluiu o recorrente no pólo passivo da presente ação penal.
Ante o exposto, nega-se provimento ao recurso.
É o voto.
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