STJ: o crime de redução a condição análoga à escravidão não exige restrição à liberdade de locomoção
No REsp 2.204.503-BA, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), decidiu que “a configuração do delito de redução à condição análoga à de escravo, previsto no art. 149 do Código Penal, não exige a restrição da liberdade de locomoção dos trabalhadores, sendo suficiente a submissão a condições degradantes de trabalho”.
Informações do inteiro teor:
A questão em discussão consiste em saber se a configuração do crime de redução à condição análoga à de escravo, previsto no art. 149 do Código Penal, exige a restrição da liberdade de locomoção dos trabalhadores ou se basta a submissão a condições degradantes de trabalho.
O aludido dispositivo legal estabelece tipo misto alternativo, configurando-se mediante: (i) submissão a trabalhos forçados; (ii) submissão à jornada exaustiva; (iii) sujeição a condições degradantes de trabalho; ou (iv) restrição da liberdade de locomoção. Trata-se de crime plurissubsistente, cuja tipicidade se aperfeiçoa com a verificação de qualquer das condutas previstas, independentemente da ofensa ao bem jurídico liberdade de locomoção.
No caso, o Relatório de Fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego documentou minuciosamente as condições subumanas a que estavam submetidos as vítimas, destacando-se: 1) trabalhadores alojados no meio do mato, dividindo-se entre os que dormiam em ônibus velho e os que dormiam em barraco de plástico preto, sem piso e sem energia elétrica; 2) água armazenada em caminhão-pipa velho e enferrujado, estacionado sob o sol, consumida sem qualquer tratamento; 3) ausência total de instalações sanitárias, obrigando os trabalhadores a fazer suas necessidades no mato; 4) local para banho improvisado com pedaços de plástico sustentados por forquilhas; 5) refeições preparadas ao lado do ônibus, em fogão improvisado no chão; e 6) área de alojamento suja e desorganizada, dentre outras.
Tais circunstâncias, inequivocamente, configuram condições degradantes de trabalho na acepção jurisprudencial consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça, caracterizando, destarte, o delito previsto no art. 149 do Código Penal. Ora, trata-se de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social, aliciadas em contexto de miserabilidade e, consequentemente, propensas à submissão a condições desumanas que objetivam tão somente a redução máxima dos custos da atividade empresarial.
Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Inquérito 3.412/AL, consolidou entendimento de que a escravidão moderna é mais sutil e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos, concluindo que para a configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessária a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva ou a condições degradantes de trabalho (STF. Inq 3.412, relator Ministro Marco Aurélio, relatora p/ acórdão Ministra Rosa Weber, Tribunal Pleno, DJ 30/3/2012).
Desse modo, a interpretação adotada pelo Tribunal de origem, ao exigir demonstração de cerceamento da liberdade de ir e vir para configuração do tipo penal, contraria a jurisprudência consolidada desta Corte Superior, do Supremo Tribunal Federal e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, notadamente a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura (Decreto n. 58.563/1966), a Convenção Americana de Direitos Humanos (Decreto n. 678/1992) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Decreto n. 592/1992).
Leia a ementa:
DIREITO PENAL. RECURSO ESPECIAL. REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. CONDIÇÕES DEGRADANTES DE TRABALHO. DESNECESSIDADE DE RESTRIÇÃO À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO. PRECEDENTES. RECURSO PROVIDO. I. Caso em exame 1. Recurso especial interposto pelo Ministério Público Federal contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região que manteve a absolvição dos recorridos, apesar de reconhecer a existência de condições degradantes de trabalho, por entender que não houve cerceamento da liberdade de locomoção dos trabalhadores. II. Questão em discussão 2. A questão em discussão consiste em saber se a configuração do crime de redução à condição análoga à de escravo, previsto no art. 149 do Código Penal, exige a restrição da liberdade de locomoção dos trabalhadores ou se basta a submissão a condições degradantes de trabalho. III. Razões de decidir 3. A jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal estabelece que o crime de redução à condição análoga à de escravo pode ser configurado pela submissão a condições degradantes de trabalho, independentemente da restrição à liberdade de locomoção. 4. O acórdão recorrido aplicou incorretamente o art. 149 do Código Penal ao exigir a demonstração de cerceamento da liberdade de locomoção, contrariando a jurisprudência consolidada e compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. 5. A submissão dos trabalhadores a condições degradantes, conforme evidenciado no conjunto probatório, é suficiente para a configuração do delito, sem necessidade de comprovação de restrição física à liberdade. IV. Dispositivo e tese 6. Recurso provido. Tese de julgamento: “1. A configuração do delito de redução à condição análoga à de escravo, previsto no art. 149 do Código Penal, não exige a restrição da liberdade de locomoção dos trabalhadores, sendo suficiente a submissão a condições degradantes de trabalho. 2. A submissão a condições degradantes de trabalho é suficiente para a tipificação do crime, independentemente de restrição à liberdade de locomoção”. Dispositivos relevantes citados: Código Penal, art. 149; Decreto n. 58.563/1966; Decreto n. 678/1992; Decreto n. 592/1992. Jurisprudência relevante citada: STF, Inq 3.412, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ acórdão Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, julgado em 29/3/2012, DJ 30/3/2012; STJ, REsp 1.952.180, Rel. Min. Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 14/12/2021, DJe de 25/2/2022; STJ, AgRg no REsp 1.969.868/MT, Rel. Min. Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 12/9/2023, DJe de 18/9/2023. (REsp n. 2.204.503/BA, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 9/9/2025, DJEN de 16/9/2025.)
INFORMAÇÕES ADICIONAIS:
Legislação
Código Penal (CP), art. 149.
Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura (Decreto n. 58.563/1966)
Convenção Americana de Direitos Humanos (Decreto n. 678/1992)
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Decreto n. 592/1992)
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Fonte: Informativo de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – Edição nº 862, de 16 de setembro de 2025 (leia aqui).
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