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Evinis Talon

STJ: inviável o conhecimento da tese de malferimento do art. 599 do CPP se o acórdão recorrido não emitiu juízo de valor sobre o conteúdo do dispositivo ou tese que se busca discutir

19/03/2023

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Decisão proferida pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1299021/SP, julgado em 14/02/2017 (leia a íntegra do acórdão).

Confira a ementa:

PENAL. RECURSO ESPECIAL. ESTELIONATO E EXTORSÃO. ALEGAÇÃO GENÉRICA DE VIOLAÇÃO DO ART. 619 DO CPP. SÚMULA N. 284 DO STF. ART. 599 DO CPP. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. MAL ESPIRITUAL. INEFICÁCIA DA AMEAÇA NÃO CONFIGURADA. VÍTIMA QUE, COAGIDA, EFETUOU O PAGAMENTO DA INDEVIDA VANTAGEM ECONÔMICA. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME DO ART. 284 DO CP. SÚMULA N. 7 DO STJ. EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE. VIOLAÇÃO DO ART. 59 DO CP NÃO CONFIGURADA. PENA SUPERIOR A 4 ANOS E INFERIOR A 8 ANOS DE RECLUSÃO. REGIME INICIAL SEMIABERTO. OBSERVÂNCIA ART. 33, § 2°, “B”, DO CP. ATRIBUIÇÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AO RECURSO ESPECIAL. PREJUDICIALIDADE DO PEDIDO. POSSIBILIDADE DE EXECUÇÃO IMEDIATA DA PENA. ENTENDIMENTO DO PLENÁRIO VIRTUAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E NÃO PROVIDO. AGRAVO REGIMENTAL NA TUTELA PROVISÓRIA JULGADO PREJUDICADO. 1. O recurso especial que indica a violação do art. 619 do CPP sem especificar a tese que deixou de ser analisada no acórdão recorrido, é deficiente em sua fundamentação e atrai a aplicação do óbice da Súmula n. 284 do STF.2. Inviável o conhecimento da tese de malferimento do art. 599 do Código de Processo Penal se o acórdão recorrido não emitiu juízo de valor expresso sobre o conteúdo do dispositivo federal ou sobre a tese jurídica que se busca discutir na instância excepcional. Eventual ofensa ao princípio da correlação não pode nem sequer ser acolhida de ofício, pois a recorrente foi julgada estritamente pelos fatos narrados na denúncia, ainda que o Ministério Público não haja pleiteado, expressamente, a aplicação do art. 71 do CP. 3. A alegação de ineficácia absoluta da grave ameaça de mal espiritual não pode ser acolhida, haja vista que, a teor do enquadramento fático do acórdão, a vítima, em razão de sua livre crença religiosa, acreditou que a recorrente poderia concretizar as intimidações de “acabar com sua vida”, com seu carro e de provocar graves danos aos seus filhos; coagida, realizou o pagamento de indevida vantagem econômica. Tese de violação do art. 158 do CP afastada. 4. O pedido de aplicação do princípio da consunção não foi deduzido nas contrarrazões do apelo do Ministério Público, na apelação criminal da defesa e tampouco por ocasião da oposição dos embargos de declaração e, por tal motivo, deixou de ser enfrentado pelo Tribunal de origem, o que caracteriza a ausência de prequestionamento e impede, no ponto, o conhecimento do recurso especial. 5. Não há, na dinâmica dos fatos descritos pelo Tribunal de origem, elemento que autorize, de plano, o acolhimento da tese de que a recorrente agiu com o intuito de, com fórmulas e rituais, resolver os problemas de saúde supostados pela vítima., praticando, em verdade, o crime de curandeirismo. Para afastar a conclusão da instância ordinária, de que a recorrente, desde o início, valeu-se da liberdade de crença da vítima e de sua fragilidade para obter vantagem patrimonial indevida, seria necessário reexaminar fatos e provas, providência incabível no recurso especial, a teor da Súmula n. 7 do STJ. 6. Devidamente motivada a fixação da reprimenda inicial acima do mínimo legal, não há falar em violação do art. 59 do CP. Em relação ao crime de estelionato, o acórdão registrou que a recorrente “explorou os sofrimentos da vítima, bem como obteve ganhos expressivos”, elementos que justificam o acréscimo da pena-base em apenas 2 meses de reclusão. Quanto ao crime de extorsão, a instância ordinária exasperou a reprimenda em 8 meses de reclusão, haja vista que a recorrente, além de consumar a extorsão, obteve com a conduta o proveito de R$ 20.000,00. Correta a mais severa fixação da pena nesta hipótese, quando comparada, por exemplo, com a conduta de agente que consuma a extorsão, mas não exaure o crime, vale dizer, não obtém a indevida vantagem econômica que desejava. 7. Por força do concurso material, as penas foram aplicadas de forma cumulativa, não havendo reparo a ser feito no regime inicial semiaberto, que observou o art. 33, § 2°, “b”, do CP. 8. Julgado o recurso especial, sem êxito, não há falar em atribuição de excepcional efeito suspensivo ao reclamo para obstar a execução imediata da pena, providência que está em consonância com entendimento firmado pelo Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do ARE n. 964.246, sob a sistemática da repercussão geral. Agravo Regimental na Tutela Provisória no Recurso Especial prejudicado. 9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta extensão, não provido. Agravo regimental prejudicado. (REsp 1299021/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 14/02/2017, DJe 23/02/2017)

Leia a íntegra do voto:

VOTO

O SENHOR MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ (Relator):

Consoante o acórdão impugnado:

 […] a vítima dirigiu-se até a residência da ré, local em que esta, induzindo-a e mantendo-a em erro, afirmou que faria trabalhos espirituais em favor dela, solicitando, para tanto, no dia 11 de outubro de 2007, o valor de R$ 280,00. Posteriormente, afirmando que precisaria acabar o serviço, a ré manteve inúmeros contatos com a vítima e novamente lhe solicitou dinheiro, agora no montante de R$ 2.500,00. Finalmente, em 26 de outubro de 2007, a ré, mantendo a vítima em erro ao argumento de que o trabalho ainda não estaria findo, solicitou a quantia de R$ 3.200,00. Todos esses valores foram efetivamente entregues pela vítima. Outrossim, após o pagamento desses valores, a ré passou a exigir o valor de R$ 32.000,00 da vítima que se negou a entregar tal quantia, passando a ré ameaçá-la de mal injusto e grave contra ela e contra seus filhos (fls. 340-341).

I. Art. 619 do CPP

Em relação à apontada violação do art. 619 do CPP, o recurso não comporta conhecimento. A jurisprudência desta Corte é firme em assinalar a incidência da Súmula n. 284 do STF quando o recorrente limita-se a sustentar, de forma genérica, a omissão do acórdão, sem especificar a tese que deixou de ser analisada e sua relevância para o deslinde da controvérsia, como na hipótese.

A recorrente cingiu-se a argumentar, de forma genérica, que o acórdão deixou de analisar “todas as teses e matérias pretendidas” (fl. 389) e que “trouxe evidenciação de violação a partir de teses de Direito e que não foram combatidas e nem rebatidas” (fl. 390), não sendo possível identificar, na leitura do recurso especial, a controvérsia relevante para o julgamento da apelação criminal que deixou de ser analisada no acórdão.

Mutatis mutandis:

[…] 1. A alegação genérica de que o acórdão não indicou expressamente “alguns dispositivos questionados pela defesa”, sem especificar quais seriam eles, atrai o óbice da Súmula n. 284 do STF. Destarte, consoante entendimento desta Corte Superior, não é necessária a indicação numérica dos preceitos legais se o acórdão enfrenta a questão federal controvertida. […] (REsp n. 1.304.871/SP, Rel. Ministro Rogerio Schietti, 6ª T., DJe 1°/7/2015).

II. Art. 599 do Código de Processo Penal

A recorrente sustenta a ocorrência de julgamento ultra petita e ofensa ao princípio da correlação, haja vista não constar requerimento expresso, na denúncia, de aplicação do art. 71 do CP. Aponta a violação do art. 599 do CPP, mas o conteúdo do dispositivo não guarda pertinência com a tese jurídica. Confira-se o teor do dispositivo legal: “As apelações poderão ser interpostas quer em relação a todo o julgado, quer em relação a parte dele”.

Além da deficiência assinalada, urge ressaltar que, no bojo da apelação, o Tribunal de Justiça registrou:

Sob outra ótica, os crimes de estelionato e extorsão encontram-se perfeitamente descritos na denúncia, inclusive quanto ao concurso de crimes. O reconhecimento da continuidade delitiva não representa ‘mutatio libelli’; via de consequência, não há que se falar em inobservância das providências escritas no artigo 384, CPP. Logo, inexiste vício a ser reconhecido.

É condição sine qua non ao conhecimento do especial que o acórdão recorrido tenha emitido juízo de valor expresso sobre o dispositivo federal apontado ou sobre a tese jurídica que se busca discutir na instância excepcional, sob pena de ausência do pressuposto processual específico do recurso especial, o prequestionamento. Na hipótese, o art. 599 do CPP não foi analisado, o que evidencia a falta de prequestionamento.

De mais a mais, mesmo que superado o óbice apontado, da leitura da sentença e do édito condenatório, não exsurge a alegada ausência de identidade entre o objeto da imputação e o da condenação.

A denúncia narrou a prática de várias condutas pela recorrente, em diferentes dias e condições. O Ministério Público requereu sua condenação “como incursa nos arts. 171 e 158, c/c. o art. 69” (fl. 3). Todos os atos reconhecidos no acórdão constam da narrativa acusatória.

É cediço que o réu seu se defende dos fatos narrados na denúncia e não da capitulação jurídica a eles atribuída pelo Ministério Público, nada impedindo que, consignada na denúncia – de forma suficiente para a compreensão da imputação – a prática de várias condutas autônomas, o Juízo natural da causa, depois da instrução criminal, aplique, em benefício do sentenciado, e se preenchidos os requisitos legais, a ficção legal do art. 71 do CP.

O Ministério Público narrou todos os crimes reconhecidos pelo órgão de segunda instância, sendo perfeitamente compreensível para a defesa a imputação de várias condutas autônomas à acusada. Nesse cenário, o Juiz não estava adstrito à capitulação jurídica realizada pelo Ministério Público, que mencionou a aplicação do art. 69 do CP e não do art. 71 do CP.

Afirma a denúncia que, “no dia 11 de outubro de 2007” (1), a vítima entregou à acusada R$ 280,00 para “sanação do problema, o qual estaria sendo causado por ‘dois espíritos ruins’ ” (fl. 2). Em seguida (2), “a denunciada retomou contato com a vítima” e a convenceu que “seria necessário ‘terminar o trabalho’, pois ‘não havia conseguido retirar os espíritos’. Na nova oportunidade (3), a convenceu a pagar R$ 2.500,00. Ato seguinte (4), a denunciada efetuou várias ligações e comunicou a vítima que o trabalho espiritual não estaria terminado, determinando a entrega de mais R$ 3.200,00. Depois da entrega das quantias assinaladas, a recorrente continuou a ligar para a vítima, sem sucesso.

A narrativa acusatória esclarece que a ré mudou de conduta e “passou a ameaçá-la gravemente (1), e constranger a mesma a entregar-lhe a quantia de R$ 32.000,00 […], tendo-se em vista que ‘tinha alguma coisa enterrada no cemitério’ contra os filhos da vítima” (fl. 20). A vítima sacou a quantia de R$ 12.000,00 e entregou a quantia à recorrente.

Em seguida, a recorrente constrangeu a vítima a entregar a quantia restante de R$ 20.000,00 (2). Na oportunidade “veio a ameaçar a mesma e a sua família, afirmando ‘vou acabar com a sua vida, a vida de seus filhos, te pego aqui na esquina’, bem como afirmando que agiria em nome dos espíritos” (fl. 2). A vítima sacou a quantia de R$ 8.000,00 e o entregou à recorrente.

A ré (3) “reiterou as ameaças, afirmando que aguardaria a entrega do valor restante de R$ 12.000,00 na segunda-feira próxima, sendo certo que apenas após a entrega de todo dinheiro, o sofrimento acabaria” (fl. 3).

O acórdão recorrido reconheceu: a) “na primeira oportunidade em que procurou Priscila, esta lhe solicitou […] quantia […] para a cura de seus males. Três ou quatro dias depois, ela solicitou e recebeu da vítima mais R$ 280,00 […] Vislumbro aqui o primeiro crime de estelionato” (fl. 351); b) “uma nova fraude foi empregada. A ré passou a dizer que a vítima estava com um ‘encosto'[…]; para isso, era necessário comprar uma vela com peso equivalente ao peso da vítima ao custo de R$ 2.500,00. […] a vítima entregou essa quantia à acusada, consumando-se um segundo estelionato” (fl. 351); c) “mais tarde, dizendo que se tratava de um “espírito enorme e gordo”, a apelante solicitou […] mais R$ 3.250,00, sendo atendida. Eis o emprego de nova fraude, que configurou o terceiro estelionato” (fl. 352). Decidiu: “quando a vítima […] tentou dar um basta, pedindo a Priscila que parasse, sobreveio a ameaça já mencionada, mediante a qual […] exigiu a quantia total de R$ 32.000,00” (fl. 352).

Exsurge da leitura da denúncia e do aresto, que a recorrente foi julgada estritamente pelos fatos narrados pelo Ministério Público, preservados o contraditório e a ampla defesa, de modo que não há falar em ofensa ao princípio da correlação.

III. Art. 158 do CP

A recorrente afirma ser possível a revaloração das provas para reconhecer a atipicidade da conduta e a contrariedade ao art. 158 do CP, haja vista não haver “proferido qualquer tipo de grave ameaça à pseudo-vítima” ou empregado “violência contra a pessoa à caracterizar o delito” (fl. 404). Ademais, a ameaça foi fantasiosa e não implicou em mal grave, sério e apto a intimidar o homem médio, não se podendo cogitar “da figura do art. 158 do CP”.

Dispõe o art. 158 do CP: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa”.

A teor dos fatos delineados no acórdão, “a vítima agiu coagida pela grave ameaça e efetuou o pagamento das vultosas quantias exigidas pela denunciada”; esclareceu, em depoimento judicializado, “que ‘as ameaças proferidas pela ré eram sérias e me senti muito intimidada’ ” (fl. 342). A recorrente submeteu a vítima a constrangimento ilegal, mediante grave ameaça espiritual que revelou-se idônea ao fito de atemorizá-la e compeli-la a realizar o pagamento de vantagem econômica indevida.

O trabalho espiritual, quando relacionado a algum tipo de credo ou religião, pode ser exercido livremente, porquanto a Constituição Federal assegura a todos a liberdade de crença e de culto. No entanto, na hipótese dos autos, a teor do enquadramento fático do acórdão, houve excesso no exercício dessa garantia constitucional, com o intuito de obter vantagem econômica indevida, o que caracteriza o crime do art. 158 do CPP.

A recorrente, de uma situação inicial, em que foi voluntariamente provocada a realizar atendimento sobrenatural para fins de cura, interpelou a vítima em diversas oportunidades e a convenceu, mediante ardil, a desembolsar vultosas quantias para realizar outros rituais, não solicitados. Fez a vítima acreditar que estava acometida de mal causado por entidades sobrenaturais e que seria imprescindível sua intervenção, solicitando, para tanto, vultosas quantias. Mesmo depois de expresso pedido de interrupção dos rituais, modificou a abordagem inicial e passou a empregar grave ameaça de acabar com a vida da vítima, seu carro e de causar dano à integridade física de seus filhos, para forçá-la a desembolsar indevida vantagem econômica.

A vítima relata que, depois de pagar vultosas quantias por atendimentos espirituais, “pediu por favor para que ela parasse”, mas que a recorrente “passou a proferir ameaças dizendo: ‘acabo com sua vida e com seu carro’. Disse que a ré começou a ameaçar também seus filhos. Em certo dia, a ré a levou até um cemitério, onde encontrou dois bonecos amarrados, dizendo que eram os filhos da vítima e que caso não fosse dado mais dinheiro, “pegava qualquer um deles e acabava com eles’ “(fl. 174).

A ameaça de mal espiritual, em razão da garantia de liberdade religiosa, não pode ser considerada inidônea ou inacreditável. Para a vítima e boa parte do povo brasileiro, existe a crença na existência de força ou forças sobrenaturais, manifestada em doutrinas e rituais próprios, não havendo falar que são fantasiosas e que nenhuma força possuem para constranger o homem médio. Os meios empregados foram idôneos, tanto que ensejaram a intimidação da vítima, a consumação e o exaurimento da extorsão.

Não há falar, portanto, em violação do art. 158 do CP.

IV. Ofensa ao princípio da consunção relativamente aos arts. 171 e 158 do CP (fl. 406)

O pedido de aplicação do princípio da consunção não foi deduzido nas contrarrazões do apelo do Ministério Público (fls. 219-228), na apelação criminal (fls. 252-298) e tampouco por ocasião da oposição dos embargos de declaração (fls. 357-369) e, por tal motivo, deixou de ser analisado no acórdão recorrido, consubstanciando ausência de prequestionamento e indevida inovação processual.

O pleito também não pode ser acolhido de ofício, pois não está caracterizada, icto oculi, a progressão criminosa. A recorrente iniciou, executou e consumou os crimes de estelionato. Finalizada a conduta relacionada ao estelionato, em momento diverso, movida por desígnio autônomo, engendrou a prática da extorsão, de forma independente, e iniciou a prática relacionada ao art. 158 do CP. Não há sinais de que mudou de idéia (substituição do dolo) ainda durante o iter criminis, de forma a almejar resultado mais grave.

V. Desclassificação das condutas para o art. 284 do CP

No ponto, o acórdão consignou: “A ré, manifestamente, agiu com dolo de obter vantagens ilícitas; pretendeu lesar o patrimônio da vítima, e não a incolumidade pública” (fl. 350).

Consoante o enquadramento fático do acórdão, a recorrente valeu-se da liberdade de crença para, com sagacidade, ludibriar a vítima e fazê-la acreditar que precisava desembolsar milhares de reais para realizar rituais sobrenaturais não solicitados. A intenção da recorrente, consoante o Tribunal de Justiça, foi de enganar a vítima e não de curá-la de mal impossível, desejando, desde o início, violar seu patrimônio. Conhecedora das posses da vítima, decidiu forçá-la, mediante grave ameaça, a realizar o pagamento indevido de R$ 32.000,00, o que configura o tipo penal do art. 158 do CP.

A dinâmica dos fatos (exigência crescente de altas quantias de dinheiro, não compatíveis com o preço do atendimento inicial), o registro de que a recorrente passou a procurar a vítima, de forma insistente, em várias oportunidades (mesmo de depois de pedido expresso de interrupção), fazendo-a acreditar que havia espíritos que poderiam fazer grande mal a ela; que havia fantoche enterrado em cemitério representando seus filhos etc. (finalidade diversa daquela para o qual foi inicialmente procurada, em razão de dores de cabeça), não autoriza o acolhimento da tese de que agiu unicamente movida pela crença de que, com fórmulas, rituais ou gestos, poderia resolver problema de saúde enfrentado pela vítima.

Nesse cenário, em que as provas delineadas no acórdão evidenciaram a exigência crescente de remuneração em troca de rituais não solicitados pela vítima e destinados a fins que não eram sua cura (ela foi convencida pela recorrente de que espíritos iriam prejudicar sua família, seu relacionamento amoroso e a vida de seus filhos), o Tribunal de Justiça conclui, de acordo com sua livre convicção motivada, que a liberdade de crença foi utilizada de forma abusiva, como artifício e com a intenção precípua de lesar o patrimônio de outrem, não com o fim de cura.

Assim, não é possível reconhecer a prática do crime do art. 284 do CP. No curandeirismo, o agente acredita que, com suas fórmulas, poderá resolver problema de saúde da vítima, finalidade não evidenciada na hipótese, em que ficou comprovado, no decorrer da instrução, o objetivo da recorrente de obter vantagem ilícita, de lesar o patrimônio da vítima, ganância não interrompida nem sequer mediante requerimento expresso de interrupção das atividades.

Para desclassificar os crimes dos arts. 158 e 171 do CP para o tipo penal previsto no art. 284 do CP, seria necessário ignorar as provas delineadas pelo Tribunal de Justiça e julgar, novamente, a ação penal, reexaminando o conjunto fático-probatório dos autos, providência vedada no recurso especial, a teor da Súmula n. 7 do STJ.

VI. Arts. 33, 59 e 68 do CP

A recorrente aponta a ilegalidade da exasperação da reprimenda, porque a instância ordinária “levou em consideração condições afetas ao próprio tipo penal e sua gravidade” (fl. 418). Afirma: “em momento algum […] ficou salientado quais seriam as circunstâncias judiciais desfavoráveis que dariam ensejo à majoração da pena acima do patamar mínimo” (fl. 424). Ademais, “a gravidade do delito, mencionada de forma abstrata e genérica não se porta como elemento idôneo para a fixação de um regime de cumprimento de pena mais gravoso” (fl. 429).

Confira-se o acórdão, no ponto em que realizou a individualização da pena:

Para o crime de estelionato, tendo em vista que a ré agiu com dolo intenso, já que explorou os sofrimentos da vítima, bem como obteve ganhos expressivos, fixo a pena-base 1/6 acima dos mínimos legais, em 1 ano e 2 meses de reclusão, e 11 dias- multa. Em segunda fase, deixo de considerar a agravante do artigo 61, II, h do Código Penal, por falta de pedido nesse sentido no recurso do Ministério Público. Finalmente, por conta da continuidade delitiva, aumento a pena em 1/5, do que resulta a sanção definitiva de 1 ano, 4 meses e 24 dias de reclusão, e 13 dias-multa. Tendo em vista a especial gravidade das circunstâncias concretas que envolveram os fatos, já destacadas, e a prática subseqüente de extorsão, fixo o regime semiaberto para início do cumprimento da pena privativa de liberdade para o crime de estelionato. Pelas mesmas razões, deixo de substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, ou de conceder o sursis. Para o crime de extorsão, acompanhando o eminente Relator, fixo a pena-base em 1/6 acima do piso, do que resulta a sanção de 4 anos e 8 meses de reclusão e 11 dias-multa. Em segunda fase, deixo de aplicar a agravante do art. 61, II, h do Código Penal, já que a r. sentença, condenando a ré pela extorsão, não o fez, e contra isso não se insurgiu po Ministério Público. Assim, tal pena se torna definitiva, à míngua de agravantes, bem como de causas de aumento ou diminuição. Para o crime de extorsão, estabeleço o regime inicial semi- aberto, à míngua de causas suficientes para determinar regime mais gravoso. Por força do concurso material entre a extorsão e os estelionatos, a pena da acusada totaliza 6 anos e 24 dias de reclusão e 24 dias-multa. Mantenho o valor do dia-multa no piso. 6. Isto posto, pelo meu voto, rejeitam-se as preliminares e dá-se parcial provimento aos recursos do Ministério Público e da ré para fixar a pena de Priscila Estephanovichil em 6 (seis) anos e 24 (vinte e quatro) dias de reclusão, em regime inicial semi-aberto, e 24 (vinte e quatro) dias-multa no valor mínimo legal, mantida, no mais, a r. sentença (fls. 353-354).

Não verifico a violação do art. 59 do CP em relação ao crime de estelionato. O acórdão registrou a maior censurabilidade da conduta e exasperou a pena em 2 meses de reclusão e 1 dia-multa, já que a recorrente explorou a fragilidade da vítima e obteve ganhos expressivos (superior a R$ 5.000,00). Os registros justificam, concretamente, o aumento da pena na primeira fase da dosimetria.

Em relação ao crime de extorsão, o Juiz consignou: “há reconhecer que as consequências do crime vão muito além do dano material”; além “da perda de cerca de R$ 20.000,00 […], a vítima sofreu grande prejuízo moral e psicológico, consistente no temor sempre presente de que algo poderia lhe acontecer ou a seus familiares” (fl. 182). Ademais: “o delito de extorsão caracteriza-se, quanto à consumação, como formal (Súmula 96 do Superior Tribunal de Justiça), o que autoriza, em caso de exaurimento, com a efetiva obtenção da vantagem econômica indevida, seja majorada a pena, tendo em conta as gravosas circunstâncias concreta da infração” (fl. 182).

O acórdão, a seu turno, decidiu: “sem embargo do entendimento do i. juiz sentenciante, exagerada a opção inicial por 2/3 acima do patamar mínimo, mostrando-se suficiente […] o estabelecimento da básica em 1/6 acima do mínimo, perfazendo 04 anos e 08 meses de reclusão, mais 11 dias-multa” (fl. 345).

A despeito de a integridade física e psíquica também ser objeto de proteção do art. 158 do CP – os bens ou interesses visados pela ameaça podem ser a vida, a integridade física, a honra a reputação etc. –, certo é que a principal razão da exasperação da pena-base foi o exaurimento do crime. A recorrente consumou a extorsão no momento em que impôs coativamente à vítima o pagamento de R$ 32.000,00, sendo irrelevante, para a consumação do delito, o recebimento do proveito econômico indevido.

Sem o recebimento do numerário, a recorrida poderia ser apenada com a pena mínima prevista no preceito secundário do art. 158 do CP. A instância ordinária optou por exasperar a reprimenda básica em 1/6 (8 meses de reclusão), porque ela obteve, efetivamente, a vantagem patrimonial indevida. Mais do que consumar, exauriu a extorsão, apossando-se efetivamente de parte daquilo que foi indevidamente exigido. O Tribunal justificou a mais severa fixação da pena nesta hipótese de extorsão, quando a comparou, por exemplo, com a conduta de agente que consuma o crime, mas não obtém com a conduta o efeito que desejava.

Por força do concurso material, as penas dos crimes foram aplicadas de forma cumulativa, totalizando 6 anos e 24 dias de reclusão e 24 dias-multa, não havendo reparo a ser feito no regime inicial semiaberto, fixado de acordo com o art. 33, § 2°, “b”, do CP: “O condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semiaberto”.

VII. Execução provisória da pena

Julgado o recurso especial não há falar em excepcional atribuição de efeito suspensivo ao reclamo, pois já afastada sua chance de êxito. A determinação de execução imediata da pena foi exarada em consonância com entendimento firmado pelo Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do ARE n. 964.246, sob a sistemática da repercussão geral, sendo possível depois da prolação de acórdão em segundo grau de jurisdição e antes do trânsito em julgado da condenação, para garantir a efetividade do direito penal e dos bens jurídicos constitucionais por ele tutelados.

VIII. Dispositivo

À vista do exposto, conheço parcialmente do recurso especial e, nesta extensão, nego-lhe provimento.

Julgo prejudicado o agravo regimental de fls. 630-635, que buscava impedir a execução imediata da pena na pendência de julgamento do recurso especial.

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Evinis Talon é Advogado Criminalista com atuação no Brasil inteiro, com 12 anos de experiência na defesa penal, professor de cursos de mestrado e doutorado com experiência de 11 anos na docência, Doutor em Direito Penal pelo Centro de Estudios de Posgrado (México), Doutorando pela Universidade do Minho (Portugal – aprovado em 1º lugar), Mestre em Direito (UNISC), Máster en Derecho Penal (Universidade de Sevilha), Máster en Derecho Penitenciario (Universidade de Barcelona), Máster en Derecho Probatorio (Universidade de Barcelona), Máster en Derechos Fundamentales (Universidade Carlos III de Madrid), Máster en Política Criminal (Universidade de Salamanca), especialista em Direito Penal, Processo Penal, Direito Constitucional, Filosofia e Sociologia, autor de 7 livros, ex-Defensor Público do Rio Grande do Sul (2012-2015, pedindo exoneração para advogar. Aprovado em todas as fases durante a graduação), palestrante que já participou de eventos em 3 continentes e investigador do Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov) de Portugal. Citado na jurisprudência de vários tribunais, como TRF1, TJSP, TJPR, TJSC, TJGO, TJMG, TJSE e outros.

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