Decisão proferida pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça no HC 106.550/SP, julgado em julgado em 27/11/2008 (leia a íntegra do acórdão).
Confira a ementa:
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. JÚRI. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRONÚNCIA. PROVAS. PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. […] II – Não obstante esse entendimento sedimentado nos Tribunais Superiores, cabe à primeira fase do procedimento relativo aos crimes da competência do Tribunal do Júri denominada iudicium accusationis, afastar da apreciação do Conselho de Sentença acusações manifestamente infundadas, destituídas, portanto, de qualquer lastro probatório mínimo. […] (HC 106.550/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 27/11/2008, DJe 23/03/2009)
Leia o voto:
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO FELIX FISCHER: Busca-se, no presente writ, a desconstituição da decisão tomada pelo e. Tribunal a quo e, por conseguinte, o restabelecimento da decisão proferida em primeiro grau que impronunciou o paciente.
A questão, à primeira vista, passaria pela necessidade de se reexaminar todo o acervo probatório para a partir de então, concluir-se, segundo a combativa Defensoria Pública, pela ausência de elementos aptos a sustentarem a pronúncia do paciente. Contudo, o exame das peças que instruem o mandamus sinalizam para a desnecessidade de tal medida que, não custa rememorar, é inadmissível na via eleita.
Pois bem, o exame da r. decisão de impronúncia bem como do v. acórdão que a reformou são suficientes para se concluir que, ainda que admitida a aplicação da máxima in dubio pro societate, no caso, há que ser restabelecida a decisão que impronunciou o paciente.
Com efeito, pela leitura das peças acima apontadas – r. decisão de impronúncia bem como do v. acórdão que a reformou – verifica-se que paira, contra o paciente, um único indício que o ligaria ao homicídio objeto de apuração nos autos principais: o testemunho prestado em sede policial por um terceiro, já falecido, que teria ouvido do apontado comparsa do paciente a confissão na qual estaria indicada a sua participação nos fatos (portanto, também uma delação).
Não há mais nada.
O paciente nega a autoria que lhé é imputada. Remanesce, assim, um único testemunho de “ouviu dizer” que sequer poderá ser renovado em juízo pois, como dito, a testemunha já faleceu.
Vale destacar que o co-réu, que seria o autor da confissão/delação, também é falecido.
A propósito, eis os fundamentos invocados para o decreto de impronuncia:
“No mérito não vislumbro no momento elementos suficientes para que seja o réu pronunciado, sem prejuízo da devida ressalva legal de eventual nova instauração de ação penal na eventualidade de surgirem novas provas em seu desfavor. É certo que não se debate na prova a existência em si do fato, haja vista o laudo de exame necroscópico de fls. 52-53 que, em harmonia com o restante da prova e subscrito ainda por outros documentos (fls. 6-7, 10, 11-13, 37-39 e 54-72) confirmam, em essência, o encontro do cadáver da vítima que morreu em razão de disparos de arma de fogo que a atingiram pelas costas, estando ela já imobilizada por amarramento. Contudo, não há como deixar de reconhecer que, propriamente na fase judicial, as provas da imputada autoria estão rigorosamente ausentes. Quando do inquérito policial o acusado não prestou depoimento e, em Juízo, limitou-se a negar a imputação afirmando que sequer se encontrava na cidade quando dos fatos (fls. 107). Já a testemunha Francisco Veloso, que constava haver antes delatado Carioca e um certo Gilmar como supostos autores do delito, veio a falecer e não houve, portanto, como prestar seu depoimento (fls. 140), sendo que também Carioca esta morto (fls 77). Na verdade, mesmo aquele depoimento anterior desse Francisco, constante de fls. 28, comporta sérias dúvidas e reclama diversos esclarecimentos: não se há de esquecer que Francisco não teria tomado conhecimento da autoria do fato apenas a partir de uma narrativa do falecido Carioca, não se sabendo, portanto, a idoneidade dessa narrativa em um meio cultural onde certamente os homicídios são moeda de superioridade social, o que leva as pessoas a deles se vangloriar, ainda que nem sempre verdadeiramente. Mas, ainda que assim não fosse, é também certo que Francisco não identificou sequer fotograficamente o acusado como o tal Gilmar referido em seu depoimento, mesmo porque é sabido que Gilmar não pode ser considerado de nenhum modo como um nome raro, sendo possível que naquela região houvesse outros homens que respondessem pelo mesmo nome e que, porventura tivessem ligações com Carioca. logo, depreende-se facilmente que o depoimento de fl. 28 não pode sequer ser considerado propriamente como um indício e, no máximo, poderia servir como padrão de simples suspeita contra o acusado, a ser, como toda e qualquer suspeita, melhor investigado ao longo de um trabalho policial sério, mais rico e mais idôneo, aqui infelizmente ausente. Outrossim, também não é correto que o depoimento de Avelino, na qualidade de Autoridade Policial, tenha suprido eventuais faltas do depoimento de Francisco. Realmente. Avelino foi expressivo e sincero ao afirmar não se recordar especificamente do caso em exame, lembrando-se apenas genericamente de delações de Francisco contra Gilmar. Ora, por certo não se pode, com a seriedade da Justiça Penal brasileira, dar abrigo a referências incriminatórias genéricas e, muito menos, já diante da seriedade do próprio Tribunal do Júri, levá-las ao julgamento do e. Conselho de Sentença, com dispêndios de esforços e, pior ainda, até mesmo de prestígio dessa que e a mais nobre de todas as montagens jurisdicionais. Para tanto, é imprescindível que os indícios e as provas sejam razoáveis, sérias e minimamente idôneas, não podendo ser substituídas por ouvir dizer ou por generalidades impassíveis de investigação minimamente crítica. Em casos tais, impõe-se a solução mais equilibrada da impronúncia, sem prejuízo, como dito, da devida ressalva legal. Em face do exposto, com base no artigo 409 do Código de Processo Penal, por não haver indício suficiente que subscreva a imputação da autoria, julgo IMPROCEDENTE a imputação inicial, o que faço para IMPRONUNCIAR o acusado GILMAR PEREIRA LOPES, já identificado nos autos, sem prejuízo de que, enquanto não extinta a punibilidade, poderá a qualquer tempo ser instaurado novo processo penal contra sua pessoa, caso surjam novas provas em seu desfavor” (fls. 449/450).
A orientação aqui adotada, no sentido de que não há indícios suficientes a permitirem a submissão do paciente a julgamento pelo Tribunal do Júri, não olvida o entendimento firmado nesta Corte no sentido de que “em se tratando de crime afeto à competência do Tribunal do Júri, o julgamento pelo Tribunal Popular só pode deixar de ocorrer, provada a materialidade do delito, caso se verifique ser despropositada a acusação, porquanto aqui vigora o princípio in dubio pro societate.” (HC 95731/RJ, 5ª Turma, de minha relatoria, DJ de 18/05/2008).
Havendo dúvida concreta sobre a autoria, como destacado, impõe-se a realização do julgamento pelo Conselho de Sentença, que é o juiz natural da causa (art. 5º, inciso XXXVIII, alínea d, da CF). Aplica-se, portanto, a máxima do in dubio pro societate.
Dessa forma, a existência de meros indícios acerca da autoria bastam para um juízo positivo na pronúncia. Indícios que por sinal, podem inclusive derivar do inquérito policial, como já decidido tanto pelo Pretório Excelso (HC 83542/PE, 1ª Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU de 26/03/2004) como por esta Corte ((HC 53.888/PR, 5ª Turma, de minha relatoria, DJ de 21/05/2007).
No presente caso, todavia, essa ensinança não se ajusta ao caso em apreço. As peculiaridades que norteiam o feito assim determinam. Nos precedentes citados havia a possibilidade de os indícios advindos do inquérito serem ratificados em juízo, por ocasião da realização do iudicium causae, além de serem corroborados por outras provas que viessem a ser, na mesma ocasião, produzidas. Mas, neste caso, tal possibilidade não existe. A acusação a ser submetida ao Júri Popular não encontra qualquer amparo e por tal razão não deve ser levada adiante. Do contrário, se não fosse permitida a censura que ora se propõe, de nada adiantaria toda primeira fase do procedimento escalonado dos processos afetos ao Tribunal do Júri, pois uma acusação totalmente destituída de base empírica, como a presente, poderia ser levada ao conhecimento de juízes leigos.
Não se trata, repito, de mera fragilidade dos indícios coligidos no inquérito policial. Trata-se, na verdade, de total ausência de viabilidade da acusação, de desamparo que obsta o prosseguimento da persecutio criminis contra o paciente.
Essa conclusão, impende consignar, deriva da fragilidade dos indícios colhidos no inquérito policial. Mas, além disso, deve-se somar o fato de que sequer poderão ser repetidos em Plenário de julgamento ante o falecimento da testemunha ouvida na fase policial.
Ante o exposto, concedo a ordem a fim de restabelecer a decisão que impronunciou o paciente.
É o voto.
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