stf-2

Evinis Talon

STF: a interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação não é aborto

04/06/2020

Compartilhar no facebook
Compartilhar no twitter
Compartilhar no linkedin
Compartilhar no whatsapp

URGENTE! Última oportunidade!
Descontos de 40%, 50% e 500 reais!!

Direito Penal, Processo Penal e Execução Penal com o prof. Evinis Talon

CLIQUE AQUI

Decisão proferida pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal no HC 124306, julgado em 09/08/2016, julgado em (leia a íntegra do acórdão).

Confira a ementa:

Ementa: Direito processual penal. Habeas corpus. Prisão preventiva. Ausência dos requisitos para sua decretação. inconstitucionalidade da incidência do tipo penal do aborto no caso de interrupção voluntária da gestação no primeiro trimestre. Ordem concedida de ofício. 1. O habeas corpus não é cabível na hipótese. Todavia, é o caso de concessão da ordem de ofício, para o fim de desconstituir a prisão preventiva, com base em duas ordens de fundamentos. 2. Em primeiro lugar, não estão presentes os requisitos que legitimam a prisão cautelar, a saber: risco para a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (CPP, art. 312). Os acusados são primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na hipótese de condenação. 3. Em segundo lugar, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. 4. A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria. 5. A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos. 6. A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios. 7. Anote-se, por derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália. 8. Deferimento da ordem de ofício, para afastar a prisão preventiva dos pacientes, estendendo-se a decisão aos corréus.

Leia a íntegra do voto-vista do Min. Luís Roberto Barroso:

I. SÍNTESE DA DEMANDA

1. Trata-se de habeas corpus, com pedido de concessão de medida cautelar, impetrado em face de acórdão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que não conheceu do HC 290.341/RJ, de relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Extrai-se dos autos que os pacientes (que mantinham clínica de aborto) foram presos em flagrante, em 14.03.2013, devido à suposta prática dos crimes descritos nos arts. 126 1 (aborto) e 288 2 (formação de quadrilha) do Código Penal, em concurso material por quatro vezes, por terem provocado “aborto na gestante/denunciada (…) com o consentimento desta”.

2. Em 21.03.2013, o Juízo da 4ª Vara Criminal da Comarca de Duque de Caxias/RJ concedeu a liberdade provisória aos pacientes. Todavia, em 25.02.2014, a 4ª Câmara Criminal proveu recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, para decretar a prisão preventiva dos pacientes, com fundamento na garantia da ordem pública e na necessidade de assegurar a aplicação da lei penal. Na sequência, a defesa impetrou HC no STJ, que não foi conhecido pela Corte. O acórdão, porém, examinou o mérito e assentou não ser ilegal o encarceramento na hipótese.

3. Neste habeas corpus, os impetrantes alegam que não estão presentes os requisitos necessários para a decretação de prisão preventiva, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal. Nesse sentido, sustentam que: (i) os pacientes são primários, com bons antecedentes e têm trabalho e residência fixa no distrito da culpa; (ii) a custódia cautelar é desproporcional, já que eventual condenação poderá ser cumprida em regime aberto; e (iii) não houve qualquer tentativa de fuga dos pacientes durante o flagrante. Daí o pedido de revogação da prisão preventiva, com expedição do alvará de soltura. 4. Em 8.12.2014, o Ministro Marco Aurélio, relator da ação, deferiu a medida cautelar pleiteada, em benefício dos acusados Edilson dos Santos e Rosemere Aparecida Ferreira. Em 27.06.2015, estendeu os efeitos da decisão aos demais corréus, Débora Dias Ferreira, Jadir Messias da Silva e Carlos Eduardo de Souza e Pinto. 5. A Procuradoria-Geral da República, em parecer subscrito pela Dra. Cláudia Sampaio Marques, opinou pelo não conhecimento do pedido e, no mérito, pela denegação da ordem, cassando-se a liminar deferida aos pacientes e estendida aos corréus. 6. Iniciado o julgamento, o Ministro Marco Aurélio votou pela admissão do habeas corpus e, no mérito, pelo deferimento da ordem para afastar a custódia provisória, nos termos da liminar anteriormente deferida. Pedi vista antecipada dos autos para uma análise mais detida da matéria.

SOLUÇÃO DO CASO CONCRETO

I. DESCABIMENTO DE HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DO RECURSO ORDINÁRIO CONSTITUCIONAL

7. Inicialmente, verifico que se trata de habeas corpus , substitutivo do recurso ordinário constitucional, impetrado contra acórdão unânime da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça que não conheceu do HC 290.341/RJ. Nos termos da jurisprudência majoritária desta Primeira Turma (HC 109.956, Rel. Min. Marco Aurélio; HC 128.256, Rel. Min. Rosa Weber), nessa hipótese, o processo deve ser extinto, sem resolução do mérito, por inadequação da via processual. Nada obstante isso, em razão da excepcional relevância e delicadeza da matéria, passo a examinar a possibilidade de concessão da ordem de ofício.

II. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DO ART. 312 DO CPP PARA DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA

8. Em primeiro lugar, entendo que o decreto de prisão preventiva não apontou elementos individualizados que evidenciem a necessidade da custódia cautelar ou mesmo o risco efetivo de reiteração delitiva pelos pacientes e corréus. Em verdade, a decisão limitou-se a invocar genericamente a gravidade abstrata do delito de “provocar o aborto com o consentimento da gestante” imputado, bem como a necessidade de assegurar a aplicação da lei penal ante à suposta tentativa dos pacientes de se evadirem do local dos fatos. No entanto, conforme notou o Ministro Marco Aurélio em seu voto, “a liberdade dos acusados tanto não oferece risco ao processo que a instrução criminal tem transcorrido normalmente, conforme revelou a consulta realizada ao sítio do Tribunal de Justiça, noticiando o comparecimento de todos à última audiência de instrução e julgamento, ocorrida no dia 17 de agosto de 2015, quando já soltos”.

9. Não se encontram preenchidos, no caso concreto, os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal 5 , que exigem, para decretação da prisão preventiva, que estejam presentes riscos para a ordem pública ou para a ordem econômica, conveniência para a instrução criminal ou necessidade de assegurar a aplicação da lei. Note-se que a prisão torna-se ainda menos justificável diante da constatação de que os pacientes: (i) são primários e com bons antecedentes; (ii) têm trabalho e residência fixa; (iii) têm comparecido devidamente aos atos de instrução do processo; e (iv) cumprirão a pena, no máximo, em regime aberto, na hipótese de condenação. Aplicável, portanto, a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal no sentido de que é ilegal a prisão cautelar decretada sem a demonstração, empiricamente motivada, dos requisitos legais (HC 109.449, Rel. Min. Marco Aurélio; e HC 115.623, Rel. Min. Rosa Weber).

10. A ausência de motivação concreta já seria suficiente para afastar a custódia preventiva na hipótese, tornando definitiva a liminar implementada em favor dos pacientes e estendida aos corréus. No entanto, há outra razão que conduz à concessão da ordem.

III. INCONSTITUCIONALIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DA INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO EFETIVADA NO PRIMEIRO TRIMESTRE

11. Em segundo lugar, é preciso examinar a própria constitucionalidade do tipo penal imputado aos pacientes e corréus, já que a existência do crime é pressuposto para a decretação da prisão preventiva, nos termos da parte final do art. 312 do CPP. Para ser compatível com a Constituição, a criminalização de determinada conduta exige que esteja em jogo a proteção de um bem jurídico relevante, que o comportamento incriminado não constitua exercício legítimo de um direito fundamental e que haja proporcionalidade entre a ação praticada e a reação estatal.

12. No caso aqui analisado, está em discussão a tipificação penal do crime de aborto voluntário nos arts. 124 a 126 do Código Penal 6 , que punem tanto o aborto provocado pela gestante quanto por terceiros com o consentimento da gestante. O bem jurídico protegido – vida potencial do feto – é evidentemente relevante. Porém, a criminalização do aborto antes de concluído o primeiro trimestre de gestação viola diversos direitos fundamentais da mulher, além de não observar suficientemente o princípio da proporcionalidade. É o que se demonstrará a seguir.

13. Antes de avançar, porém, cumpre estabelecer uma premissa importante para o raciocínio a ser desenvolvido: o aborto é uma prática que se deve procurar evitar, pelas complexidades físicas, psíquicas e morais que envolve. Por isso mesmo, é papel do Estado e da sociedade atuar nesse sentido, mediante oferta de educação sexual, distribuição de meios contraceptivos e amparo à mulher que deseje ter o filho e se encontre em circunstâncias adversas. Portanto, ao se afirmar aqui a incompatibilidade da criminalização com a Constituição, não se está a fazer a defesa da disseminação do procedimento. Pelo contrário, o que ser pretende é que ele seja raro e seguro.

1. Violação a direitos fundamentais das mulheres

14. A relevância e delicadeza da matéria justificam uma brevíssima incursão na teoria geral dos direitos fundamentais. A história da humanidade é a história da afirmação do indivíduo em face do poder político, do poder econômico e do poder religioso, sendo que este último procura conformar a moral social dominante. O produto deste embate milenar são os direitos fundamentais, aqui entendidos como os direitos humanos incorporados ao ordenamento constitucional.

15. Os direitos fundamentais vinculam todos os Poderes estatais, representam uma abertura do sistema jurídico perante o sistema moral 7 e funcionam como uma reserva mínima de justiça assegurada a todas as pessoas 8 . Deles resultam certos deveres abstenção e de atuação por parte do Estado e da sociedade. Após a Segunda Guerra Mundial, os direitos fundamentais passaram a ser tratados como uma emanação da dignidade humana, na linha de uma das proposições do imperativo categórico kantiano: toda pessoa deve ser tratada como um fim em si mesmo, e não um meio para satisfazer interesses de outrem ou interesses coletivos. Dignidade significa, do ponto de vista subjetivo, que todo indivíduo tem valor intrínseco e autonomia.

16. Característica essencial dos direitos fundamentais é que eles são oponíveis às maiorias políticas. Isso significa que eles funcionam como limite ao legislador e até mesmo ao poder constituinte reformador (CF, art. 60, § 4º) 9 . Além disso, são eles dotados de aplicabilidade direta e imediata, o que legitima a atuação da jurisdição constitucional para a sua proteção, tanto em caso de ação como de omissão legislativa.

17. Direitos fundamentais estão sujeitos a limites imanentes e a restrições expressas. E podem, eventualmente, entrar em rota de colisão entre si ou com princípios constitucionais ou fins estatais. Tanto nos casos de restrição quanto nos de colisão, a solução das situações concretas deverá valer-se do princípio instrumental da razoabilidade ou proporcionalidade10 .

18. O princípio da proporcionalidade destina-se a assegurar a razoabilidade substantiva dos atos estatais, seu equilíbrio ou justa medida. Em uma palavra, sua justiça. Conforme entendimento que se tornou clássico pelo mundo afora, a proporcionalidade divide-se em três subprincípios: (i) a adequação, que identifica a idoneidade da medida para atingir o fim visado; (ii) a necessidade, que expressa a vedação do excesso; e (iii) a proporcionalidade em sentido estrito, que consiste na análise do custobenefício da providência pretendida, para se determinar se o que se ganha é mais valioso do que aquilo que se perde.

19. A proporcionalidade, irmanada com a ideia de ponderação, não é capaz de oferecer, por si só, a solução material para o problema posto. Mas uma e outra ajudam a estruturar a argumentação de uma maneira racional, permitindo a compreensão do itinerário lógico percorrido e, consequentemente, o controle intersubjetivo das decisões.

20. Passando da teoria à prática, é dominante no mundo democrático e desenvolvido a percepção de que a criminalização da interrupção voluntária da gestação atinge gravemente diversos direitos fundamentais das mulheres11, com reflexos inevitáveis sobre a dignidade humana12. O pressuposto do argumento aqui apresentado é que a mulher que se encontre diante desta decisão trágica – ninguém em sã consciência suporá que se faça um aborto por prazer ou diletantismo – não precisa que o Estado torne a sua vida ainda pior, processando-a criminalmente. Coerentemente, se a conduta da mulher é legítima, não há sentido em se incriminar o profissional de saúde que a viabiliza.

21. Torna-se importante aqui uma breve anotação sobre o status jurídico do embrião durante fase inicial da gestação. Há duas posições antagônicas em relação ao ponto. De um lado, os que sustentam que existe vida desde a concepção, desde que o espermatozoide fecundou o óvulo, dando origem à multiplicação das células. De outro lado, estão os que sustentam que antes da formação do sistema nervoso central e da presença de rudimentos de consciência – o que geralmente se dá após o terceiro mês da gestação – não é possível ainda falar-se em vida em sentido pleno.

22. Não há solução jurídica para esta controvérsia. Ela dependerá sempre de uma escolha religiosa ou filosófica de cada um a respeito da vida. Porém, exista ou não vida a ser protegida, o que é fora de dúvida é que não há qualquer possibilidade de o embrião subsistir fora do útero materno nesta fase de sua formação. Ou seja: ele dependerá integralmente do corpo da mulher. Esta premissa, factualmente incontestável, está subjacente às ideias que se seguem.

23. Confiram-se, a seguir, os direitos fundamentais afetados.

1.1. Violação à autonomia da mulher

24. A criminalização viola, em primeiro lugar, a autonomia da mulher, que corresponde ao núcleo essencial da liberdade individual, protegida pelo princípio da dignidade humana (CF/1988, art. 1º, III). A autonomia expressa a autodeterminação das pessoas, isto é, o direito de fazerem suas escolhas existenciais básicas e de tomarem as próprias decisões morais a propósito do rumo de sua vida. Todo indivíduo – homem ou mulher – tem assegurado um espaço legítimo de privacidade dentro do qual lhe caberá viver seus valores, interesses e desejos. Neste espaço, o Estado e a sociedade não têm o direito de interferir.

25. Quando se trate de uma mulher, um aspecto central de sua autonomia é o poder de controlar o próprio corpo e de tomar as decisões a ele relacionadas, inclusive a de cessar ou não uma gravidez. Como pode o Estado – isto é, um delegado de polícia, um promotor de justiça ou um juiz de direito – impor a uma mulher, nas semanas iniciais da gestação, que a leve a termo, como se tratasse de um útero a serviço da sociedade, e não de uma pessoa autônoma, no gozo de plena capacidade de ser, pensar e viver a própria vida?

1.2. Violação do direito à integridade física e psíquica

26. Em segundo lugar, a criminalização afeta a integridade física e psíquica da mulher. O direito à integridade psicofísica (CF/1988, art. 5º, caput e III) protege os indivíduos contra interferências indevidas e lesões aos seus corpos e mentes, relacionando-se, ainda, ao direito à saúde e à segurança. A integridade física é abalada porque é o corpo da mulher que sofrerá as transformações, riscos e consequências da gestação. Aquilo que pode ser uma bênção quando se cuide de uma gravidez desejada, transmuda-se em tormento quando indesejada. A integridade psíquica, por sua vez, é afetada pela assunção de uma obrigação para toda a vida, exigindo renúncia, dedicação e comprometimento profundo com outro ser. Também aqui, o que seria uma bênção se decorresse de vontade própria, pode se transformar em provação quando decorra de uma imposição heterônoma. Ter um filho por determinação do direito penal constitui grave violação à integridade física e psíquica de uma mulher.

1.3. Violação aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher

27. A criminalização viola, também, os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que incluem o direito de toda mulher de decidir sobre se e quando deseja ter filhos, sem discriminação, coerção e violência, bem como de obter o maior grau possível de saúde sexual e reprodutiva. A sexualidade feminina, ao lado dos direitos reprodutivos, atravessou milênios de opressão. O direito das mulheres a uma vida sexual ativa e prazerosa, como se reconhece à condição masculina, ainda é objeto de tabus, discriminações e preconceitos. Parte dessas disfunções é fundamentada historicamente no papel que a natureza reservou às mulheres no processo reprodutivo. Mas justamente porque à mulher cabe o ônus da gravidez, sua vontade e seus direitos devem ser protegidos com maior intensidade.

28. O reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres como direitos humanos percorreu uma longa trajetória, que teve como momentos decisivos a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD), realizada em 1994, conhecida como Conferência do Cairo, e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em 1995, em Pequim. A partir desses marcos, vem se desenvolvendo a ideia de liberdade sexual feminina em sentido positivo e emancipatório. Para os fins aqui relevantes, cabe destacar que do Relatório da Conferência do Cairo constou, do Capítulo VII, a seguinte definição de direitos reprodutivos:

“§ 7.3. Esses direitos se baseiam no reconhecido direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de seus filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais alto padrão de saúde sexual e de reprodução. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência, conforme expresso em documentos sobre direitos humanos”.

29. O tratamento penal dado ao tema, no Brasil, pelo Código Penal de 1940, afeta a capacidade de autodeterminação reprodutiva da mulher, ao retirar dela a possibilidade de decidir, sem coerção, sobre a maternidade, sendo obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada. E mais: prejudica sua saúde reprodutiva, aumentando os índices de mortalidade materna e outras complicações relacionadas à falta de acesso à assistência de saúde adequada.

1.4. Violação à igualdade de gênero

29. A norma repressiva traduz-se, ainda, em quebra da igualdade de gênero. A igualdade veda a hierarquização dos indivíduos e as desequiparações infundadas, impõe a neutralização das injustiças históricas, econômicas e sociais, bem como o respeito à diferença. A histórica posição de subordinação das mulheres em relação aos homens institucionalizou a desigualdade socioeconômica entre os gêneros e promoveu visões excludentes, discriminatórias e estereotipadas da identidade feminina e do seu papel social. Há, por exemplo, uma visão idealizada em torno da experiência da maternidade, que, na prática, pode constituir um fardo para algumas mulheres13. Na medida em que é a mulher que suporta o ônus integral da gravidez, e que o homem não engravida, somente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca da sua manutenção ou não. A propósito, como bem observou o Ministro Carlos Ayres Britto, valendo-se de frase histórica do movimento feminista, “se os homens engravidassem, não tenho dúvida em dizer que seguramente o aborto seria descriminalizado de ponta a ponta ” 14 .

1.5. Discriminação social e impacto desproporcional sobre mulheres pobres

30. Por fim, a tipificação penal produz também discriminação social, já que prejudica, de forma desproporcional, as mulheres pobres, que não têm acesso a médicos e clínicas particulares, nem podem se valer do sistema público de saúde para realizar o procedimento abortivo. Por meio da criminalização, o Estado retira da mulher a possibilidade de submissão a um procedimento médico seguro. Não raro, mulheres pobres precisam recorrer a clínicas clandestinas sem qualquer infraestrutura médica ou a procedimentos precários e primitivos, que lhes oferecem elevados riscos de lesões, mutilações e óbito.

31. Em suma: na linha do que se sustentou no presente capítulo, a criminalização da interrupção da gestação no primeiro trimestre vulnera o núcleo essencial de um conjunto de direitos fundamentais da mulher. Trata-se, portanto, de restrição que ultrapassa os limites constitucionalmente aceitáveis. No próximo capítulo, procedese, de todo modo, a um teste de proporcionalidade, para demonstrar que, também por esta linha argumentativa, a criminalização não é compatível com a Constituição.

2. Violação ao princípio da proporcionalidade

32. O legislador, com fundamento e nos limites da Constituição, tem liberdade de conformação para definir crimes e penas. Ao fazê-lo, deverá ter em conta dois vetores essenciais: o respeito aos direitos fundamentais dos acusados, tanto no plano material como no processual; e os deveres de proteção para com a sociedade, cabendo-lhe resguardar valores, bens e direitos fundamentais dos seus integrantes. Nesse ambiente, o princípio da razoabilidade-proporcionalidade, além de critério de aferição da validade das restrições a direitos fundamentais, funciona também na dupla dimensão de proibição do excesso e da insuficiência.

33. Cabe acrescentar, ainda, que o Código Penal brasileiro data de 1940. E, a despeito de inúmeras atualizações ao longo dos anos, em relação aos crimes aqui versados – arts. 124 a 128 – ele conserva a mesma redação. Prova da defasagem da legislação em relação aos valores contemporâneos foi a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 54, descriminalizando a interrupção da gestação na hipótese de fetos anencefálicos. Também a questão do aborto até o terceiro mês de gravidez precisa ser revista à luz dos novos valores constitucionais trazidos pela Constituição de 1988, das transformações dos costumes e de uma perspectiva mais cosmopolita.

34. Feita esta breve introdução, e na linha do que foi exposto acerca dos três subprincípios que dão conteúdo à proporcionalidade, a tipificação penal nesse caso somente estará então justificada se: (i) for adequada à tutela do direito à vida do feto (adequação); (ii) não houver outro meio que proteja igualmente esse bem jurídico e que seja menos restritivo dos direitos das mulheres (necessidade); e (iii) a tipificação se justificar a partir da análise de seus custos e benefícios (proporcionalidade em sentido estrito)

2.1. Subprincípio da adequação

35. Em relação à adequação, é preciso analisar se e em que medida a criminalização protege a vida do feto15. É, porém, notório que as taxas de aborto nos países onde esse procedimento é permitido são muito semelhantes àquelas encontradas nos países em que ele é ilegal16. Recente estudo do Guttmacher Institute e da Organização Mundial da Saúde (OMS) demonstra que a criminalização não produz impacto relevante sobre o número de abortos17. Ao contrário, enquanto a taxa anual de abortos em países onde o procedimento pode ser realizado legalmente é de 34 a cada 1 mil mulheres em idade reprodutiva, nos países em que o aborto é criminalizado, a taxa sobe para 37 a cada 1 mil mulheres18. E estima-se que 56 milhões de abortos voluntários tenham ocorrido por ano no mundo apenas entre 2010 e 201419 .

36. Na verdade, o que a criminalização de fato afeta é a quantidade de abortos seguros e, consequentemente, o número de mulheres que têm complicações de saúde ou que morrem devido à realização do procedimento20. Trata-se de um grave problema de saúde pública, oficialmente reconhecido21. Sem contar que há dificuldade em conferir efetividade à proibição, na medida em que se difundiu o uso de medicamentos para a interrupção da gestação, consumidos privadamente, sem que o Poder Público tenha meios para tomar conhecimento e impedir a sua realização22 .

37. Na prática, portanto, a criminalização do aborto é ineficaz para proteger o direito à vida do feto. Do ponto de vista penal, ela constitui apenas uma reprovação “simbólica” da conduta23. Mas, do ponto de vista médico, como assinalado, há um efeito perverso sobre as mulheres pobres, privadas de assistência. Deixe-se bem claro: a reprovação moral do aborto por grupos religiosos ou por quem quer que seja é perfeitamente legítima. Todos têm o direito de se expressar e de defender dogmas, valores e convicções. O que refoge à razão pública é a possibilidade de um dos lados, em um tema eticamente controvertido, criminalizar a posição do outro.

38. Em temas moralmente divisivos, o papel adequado do Estado não é tomar partido e impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam sua escolha de forma autônoma. O Estado precisa estar do lado de quem deseja ter o filho. O Estado precisa estar do lado de quem não deseja – geralmente porque não pode – ter o filho. Em suma: por ter o dever de estar dos dois lados, o Estado não pode escolher um.

39. Portanto, a criminalização do aborto não é capaz de evitar a interrupção da gestação e, logo, é medida de duvidosa adequação para a tutela da vida do feto. É preciso reconhecer, como fez o Tribunal Federal Alemão, que, considerando “o sigilo relativo ao nascituro, sua impotência e sua dependência e ligação única com a mãe, as chances do Estado de protegê-lo serão maiores se trabalhar em conjunto com a mãe ” 24 , e não tratando a mulher que deseja abortar como uma criminosa.

2.2. Subprincípio da necessidade

40. Em relação à necessidade, é preciso verificar se há meio alternativo à criminalização que proteja igualmente o direito à vida do nascituro, mas que produza menor restrição aos direitos das mulheres. Como visto, a criminalização do aborto viola a autonomia, a integridade física e psíquica e os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, a igualdade de gênero, e produz impacto discriminatório sobre as mulheres pobres.

41. Nesse ponto, ainda que se pudesse atribuir uma mínima eficácia ao uso do direito penal como forma de evitar a interrupção da gestação, deve-se reconhecer que há outros instrumentos que são eficazes à proteção dos direitos do feto e, simultaneamente, menos lesivas aos direitos da mulher. Uma política alternativa à criminalização implementada com sucesso em diversos países desenvolvidos do mundo é a descriminalização do aborto em seu estágio inicial (em regra, no primeiro trimestre), desde que se cumpram alguns requisitos procedimentais que permitam que a gestante tome uma decisão refletida. É assim, por exemplo, na Alemanha, em que a grávida que pretenda abortar deve se submeter a uma consulta de aconselhamento e a um período de reflexão prévia de três dias25. Procedimentos semelhantes também são previstos em Portugal26, na França27 e na Bélgica28 .

42. Além disso, o Estado deve atuar sobre os fatores econômicos e sociais que dão causa à gravidez indesejada ou que pressionam as mulheres a abortar29. As duas razões mais comumente invocadas para o aborto são a impossibilidade de custear a criação dos filhos e a drástica mudança na vida da mãe (que a faria, e.g., perder oportunidades de carreira)30. Nessas situações, é importante a existência de uma rede de apoio à grávida e à sua família, como o acesso à creche e o direito à assistência social. Ademais, parcela das gestações não programadas está relacionada à falta de informação e de acesso a métodos contraceptivos. Isso pode ser revertido, por exemplo, com programas de planejamento familiar, com a distribuição gratuita de anticoncepcionais e assistência especializada à gestante e educação sexual. Logo, a tutela penal também dificilmente seria aprovada no teste da necessidade.

2.3. Subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito

43. Por fim, em relação à proporcionalidade em sentido estrito, é preciso verificar se as restrições aos direitos fundamentais das mulheres decorrentes da criminalização são ou não compensadas pela proteção à vida do feto.

44. De um lado, já se demonstrou amplamente que a tipificação penal do aborto produz um grau elevado de restrição a direitos fundamentais das mulheres. Em verdade, a criminalização confere uma proteção deficiente aos direitos sexuais e reprodutivos, à autonomia, à integridade psíquica e física, e à saúde da mulher, com reflexos sobre a igualdade de gênero e impacto desproporcional sobre as mulheres mais pobres. Além disso, criminalizar a mulher que deseja abortar gera custos sociais e para o sistema de saúde, que decorrem da necessidade de a mulher se submeter a procedimentos inseguros, com aumento da morbidade e da letalidade.

45. De outro lado, também se verificou que a criminalização do aborto promove um grau reduzido (se algum) de proteção dos direitos do feto, uma vez que não tem sido capaz de reduzir o índice de abortos. É preciso reconhecer, porém, que o peso concreto do direito à vida do nascituro varia de acordo com o estágio de seu desenvolvimento na gestação. O grau de proteção constitucional ao feto é, assim, ampliado na medida em que a gestação avança e que o feto adquire viabilidade extrauterina, adquirindo progressivamente maior peso concreto. Sopesando-se os custos e benefícios da criminalização, torna-se evidente a ilegitimidade constitucional da tipificação penal da interrupção voluntária da gestação, por violar os direitos fundamentais das mulheres e gerar custos sociais (e.g., problema de saúde pública e mortes) muito superiores aos benefícios da criminalização.

46. Tal como a Suprema Corte dos EUA declarou no caso Roe v. Wade, o interesse do Estado na proteção da vida pré-natal não supera o direito fundamental da mulher realizar um aborto31. No mesmo sentido, a decisão da Corte Suprema de Justiça do Canadá, que declarou a inconstitucionalidade de artigo do Código Penal que criminalizava o aborto no país, por violação à proporcionalidade32. De acordo com a Corte canadense, ao impedir que a mulher tome a decisão de interromper a gravidez em todas as suas etapas, o Legislativo teria falhado em estabelecer um standard capaz de equilibrar, de forma justa, os interesses do feto e os direitos da mulher. Anote-se, por derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante a fase inicial da gestação como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália.

47. Nada obstante isso, para que não se confira uma proteção insuficiente nem aos direitos das mulheres, nem à vida do nascituro, é possível reconhecer a constitucionalidade da tipificação penal da cessação da gravidez que ocorre quando o feto já esteja mais desenvolvido. De acordo com o regime adotado em diversos países (como Alemanha, Bélgica, França, Uruguai e Cidade do México), a interrupção voluntária da gestação não deve ser criminalizada, pelo menos, durante o primeiro trimestre da gestação. Durante esse período, o córtex cerebral – que permite que o feto desenvolva sentimentos e racionalidade – ainda não foi formado, nem há qualquer potencialidade de vida fora do útero materno33. Por tudo isso, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição ao arts. 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre.

48. No caso em exame, como o Código Penal é de 1940 – data bem anterior à Constituição, que é de 1988 – e a jurisprudência do STF não admite a declaração de inconstitucionalidade de lei anterior à Constituição, a hipótese é de não recepção (i.e., de revogação parcial ou, mais tecnicamente, de derrogação) dos dispositivos apontados do Código Penal. Como consequência, em razão da não incidência do tipo penal imputado aos pacientes e corréus à interrupção voluntária da gestação realizada nos três primeiros meses, há dúvida fundada sobre a própria existência do crime, o que afasta a presença de pressuposto indispensável à decretação da prisão preventiva, nos termos da parte final do caput do art. 312 do CPP.

III. CONCLUSÃO

49. Ante o exposto, concedo de ofício a ordem de habeas corpus para afastar a prisão preventiva dos pacientes, estendendo-a aos corréus.

Leia também:

Precisa falar conosco? CONTATO: clique aqui

Siga o meu perfil no Instagram (clique aqui). Sempre que possível, vejo as mensagens no direct.

Evinis Talon é Advogado Criminalista com atuação no Brasil inteiro, com 12 anos de experiência na defesa penal, professor de cursos de mestrado e doutorado com experiência de 11 anos na docência, Doutor em Direito Penal pelo Centro de Estudios de Posgrado (México), Doutorando pela Universidade do Minho (Portugal – aprovado em 1º lugar), Mestre em Direito (UNISC), Máster en Derecho Penal (Universidade de Sevilha), Máster en Derecho Penitenciario (Universidade de Barcelona), Máster en Derecho Probatorio (Universidade de Barcelona), Máster en Derechos Fundamentales (Universidade Carlos III de Madrid), Máster en Política Criminal (Universidade de Salamanca – cursando), especialista em Direito Penal, Processo Penal, Direito Constitucional, Filosofia e Sociologia, autor de 7 livros, ex-Defensor Público do Rio Grande do Sul (2012-2015, pedindo exoneração para advogar. Aprovado em todas as fases durante a graduação), palestrante que já participou de eventos em 3 continentes e investigador do Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov) de Portugal. Citado na jurisprudência de vários tribunais, como TRF1, TJSP, TJPR, TJSC, TJGO, TJMG, TJSE e outros.

COMPARTILHE

Compartilhar no facebook
Compartilhar no twitter
Compartilhar no linkedin
Compartilhar no whatsapp

EVINIS TALON


LEIA TAMBÉM

Telefone / Whatsapp: (51) 99927 2030 | Email: contato@evinistalon.com

× Fale com o Dr. Evinis Talon