A fase da investigação preliminar tem um impacto considerável no futuro processo penal, haja vista que seus resultados serão utilizados como fundamentos do arquivamento do inquérito ou para o oferecimento e o recebimento da peça acusatória. Não raramente, durante a investigação, também são aplicadas medidas cautelares pessoais (inclusive a pior delas: a prisão preventiva) e reais, bem como produzidas provas irrepetíveis.
Conquanto seja dispensável (arts. 12, 27, 39, §5º e 46, §1º, todos do CPP), o inquérito policial, via de regra, acompanha a denúncia ou queixa, sendo decisivo para que o julgador receba ou rejeite a denúncia, mormente para a análise da justa causa.
Dessa forma, devemos entender o papel da defesa durante o inquérito e as desvantagens que temos em comparação com quem, futuramente, fará a imputação de uma infração penal contra o investigado.
A primeira observação recai sobre o fato de que o Ministério Público exerce o controle externo da atividade policial (art. 129, VII, da Constituição Federal). Ainda que o Delegado tenha boa-fé na condução do inquérito, é evidente que essa atribuição do Ministério Público pode influenciar a forma de investigar, adotando linhas que favoreçam os interesses do “Parquet”.
Além disso, nos concursos públicos para o cargo de Delegado, é comum que os candidatos precisem adotar livros de viés punitivista ou, no mínimo, que repitam mantras como “não existe contraditório no inquérito policial”. Esse tipo de estudo poderá ter influência no exercício das atribuições, inclusive quando for decidir sobre o pedido de alguma diligência formulado pelo investigado (art. 14 do CPP).
Sem a investigação criminal defensiva, o Advogado dependeria sempre da concordância da autoridade policial para realizar as diligências no inquérito policial, o que, conforme a parte final do art. 14 do CPP (“será realizada, ou não, a juízo da autoridade”), não seria tão fácil. Aliás, na prática, é comum o indeferimento desses requerimentos. Cita-se, por exemplo, a seguinte decisão:
[…]
1. A autoridade policial possui discricionariedade na condução do inquérito, dentro dos limites da lei. As diligências citadas pela defesa, não realizadas na fase extrajudicial pelo delegado, não demonstram parcialidade ou irregularidade. Decorrem da linha de investigação adotada. Preliminares rejeitadas.
[…]
(TJ-DF – RSE: 20141010053739, Relator: SANDRA DE SANTIS, Data de Julgamento: 17/09/2015, 1ª Turma Criminal, Data de Publicação: Publicado no DJE : 21/09/2015 . Pág.: 168)
A defesa é afastada da fase preliminar. Normalmente, seus pedidos são indeferidos e sua presença é indesejada ou apenas tolerada, mas raramente oportunizada/invocada.
Nesse viés, “temos uma política estatal de desconsideração das hipóteses defensivas, sendo tais proposições vistas com maus olhos, e taxadas quase sempre de irrelevantes, impertinentes e/ou protelatórias” (BULHÕES, 2019, p. 59).
Por outro lado, o membro do Ministério Público pode simplesmente requisitar o cumprimento de alguma diligência ou até instaurar uma investigação direta, procedimento já autorizado pelo STF (RE 593.727). Trata-se de uma nítida falta de paridade de armas, como veremos adiante.
Não apenas é difícil ter êxito nos requerimentos defensivos, mas também, em alguns casos, o acesso aos autos do inquérito policial é, por si só, hercúleo, apesar do art. 7º, XIV, do Estatuto da OAB, que prevê como direito do Advogado examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento. Inclusive, a diuturna violação desse direito ensejou a tipificação da negativa de acesso aos autos como crime de abuso de autoridade (art. 32 da Lei n. 13.869/19).
No mesmo sentido, também é constantemente violado o direito previsto no art. 7º, XXI, do Estatuto da OAB, que consiste em assistir aos clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento, podendo apresentar razões e quesitos.
Muitos desses problemas decorrem da equivocada ideia de que há uma rivalidade entre a autoridade policial e o Advogado Criminalista ou que este estaria em busca da impunidade. Desconsidera-se, infelizmente, o fato de que o Advogado é indispensável à administração da justiça (art. 133 da Constituição Federal).
Por derradeiro, como em qualquer outra carreira – pública ou privada -, há policiais que desonram as instituições em que trabalham, cometendo ilegalidades absurdas. Basta pesquisar a expressão “kit flagrante” (clique aqui) para encontrar notícias assustadoras. Felizmente, é uma minoria. Infelizmente, basta que um policial aja assim para destruir a vida de alguém.
Muitas ilegalidades policiais permanecem desconhecidas e invisíveis, dificultando o controle judicial e ministerial, ao contrário dos abusos praticados por Magistrados, normalmente gravados e consignados. Por esse motivo, Lyra (2009, p. 20) afirma que é preferível “a ‘elaboração’ judicial, que comporta defesa e recurso, às violências e fraudes policiais, aos expedientes de supostos técnicos arvorados em guias forenses.”
Por todos esses motivos, o inquérito policial não é um cenário adequado para a defesa exercer plenamente sua atividade. Queremos com isso sustentar que, como forma de superar os problemas do inquérito policial – já enraizados na prática forense e de difícil superação -, deve-se admitir a investigação criminal defensiva.
Conforme Oliveira (2008, p. 19), “o defensor não deve confiar o destino do arguido ‘à sorte’ das investigações oficiosas e, antes pelo contrário, deverá nas mesmas procurar intervir”. Em suma, desconsiderar a importância do inquérito policial, deixando as investigações nas mãos da autoridade policial, é um grande equívoco estratégico para a defesa.
Se, tentando intervir no inquérito policial, o Advogado não obtiver êxito, além das medidas de praxe (habeas corpus, mandado de segurança, reclamação constitucional etc.), a investigação criminal defensiva poderá ser uma saída.
REFERÊNCIAS:
BULHÕES, Gabriel. Manual prático de investigação defensiva: um novo paradigma na advocacia criminal brasileira. Florianópolis, SC: EMAIS, 2019.
LYRA, Roberto. Como julgar, como defender, como acusar. Belo Horizonte: Editora Líder, 2009.
OLIVEIRA, Francisco da Costa. A defesa e a investigação do crime. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2008.
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