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Evinis Talon

Júri da boate Kiss: Meu parecer sobre a decisão do min. Toffoli

04/09/2024

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PARTE PROPEDÊUTICA

Trata-se de um breve parecer sobre o recente julgamento, pelo ministro Dias Toffoli, dos recursos do Ministério Público do Rio Grande do Sul, do Ministério Público Federal e do acusado Luciano Augusto Bonilha Leão, referentes ao caso conhecido como “júri da boate Kiss”.

O objetivo do presente não é sua utilização no processo criminal, mas sim demonstrar, para fins acadêmicos e para a sociedade, do que se trata a referida decisão, considerando inúmeras divulgações equivocadas sobre o seu teor. Destarte, trata-se de um parecer acadêmico sem finalidade advocatícia.

Diante da necessidade de uma resposta rápida aos comentários da internet que divulgam inverdades sobre o caso, optou-se por um parecer de caráter resumido, para o fim de constatação e análise prática, sem citações doutrinárias ou jurisprudenciais, presumindo-se que o leitor sabe, por exemplo, o posicionamento dos tribunais sobre nulidades absolutas e relativas, preclusão e prejuízo.

De início, é imperativo destacar que o presente parecer trata somente de questões relativas ao afastamento das nulidades, isto é, de aspectos processuais, não abordando os tópicos de Direito Penal, tampouco desconsiderando o sofrimento dos sobreviventes e dos familiares das vítimas.

 

O QUE ACONTECEU?

A decisão tem 36 páginas, mas as 17 primeiras reproduzem as ementas das decisões da 1ª Câmara Criminal do TJRS e da Sexta Turma do STJ, contra as quais os recursos foram interpostos.

O Ministério Público do Rio Grande do Sul, em seu recurso, considerou equivocada a interpretação do TJRS sobre a desnecessidade de oportuna alegação (preclusão) e demonstração do prejuízo para as nulidades reconhecidas, quais sejam: processo de escolha de jurados, reunião reservada com jurados e erro na quesitação.

Por sua vez, no seu recurso, o Ministério Público Federal defendeu a preclusão e a falta de demonstração do prejuízo. Citou a jurisprudência do STF que exige prova de prejuízo até para nulidade absoluta.

Na sua decisão, o min. Toffoli relembrou sua fala no julgamento das ADCs n. 43, 44 e 54, julgadas em 12/11/2020, sobre as consequências do caso da boate Kiss, focando na demora do julgamento. Resumidamente, disse que, na época, 6 anos após o incêndio, 6 pais das vítimas morreram por doenças que podem estar relacionadas à perda dos seus filho, além de outros terem cometido suicídio. Relatou casos específicos de sobreviventes e parentes de vítimas nas 3 páginas seguintes.

Ao analisar os recursos extraordinários interpostos pelo MPF e MPRS, considerou que as irresignações merecem prosperar.

Primeiro, considerou que as decisões foram suficientemente motivadas.

Destacou que o TJRS e o STJ reconheceram três nulidades e que, agora, devem ser afastadas. São elas:

  • Não observância da sistemática legal na realização dos sorteios dos jurados.
  • Nulidade decorrente de reunião reservada entre o juiz presidente e os jurados.
  • Nulidade decorrente da quesitação. 

Vejamos:

 

Não observância da sistemática legal na realização dos sorteios dos jurados

Trata-se do afastamento de nulidade mais fundamentado na decisão.

Considerou que o reconhecimento dessa nulidade vai de encontro à plenitude de defesa e à soberania dos veredictos.

Basicamente, referiu que a apontada irregularidade teria ocorrido no último sorteio (24/11/21), mas nenhum dos 7 jurados do Conselho de Sentença veio desse sorteio. Citou o parecer da PGR no sentido de que, por esse motivo, não haveria prejuízo para a defesa dos réus.

O ministro também reconheceu a ocorrência da preclusão, pois havia apenas a insurgência nos autos do réu Elissandro, que, segundo o ministro, não teria apontado de forma específica e concreta nada relacionado ao sorteio.

Por fim, afirmou que o reconhecimento da nulidade violava a soberania dos veredictos, por se tratar de nulidade “inexistente e preclusa”.

Nulidade decorrente de reunião reservada entre o Juiz Presidente e os jurados

Trata-se de um dos fatos mais emblemáticos do júri. A reunião foi realizada sem a presença do Ministério Público e das defesas.

O TJRS havia considerado que a motivação desse ato não era importante e que o conteúdo dessa reunião não teve registro por escrito ou por qualquer mídia, não admitindo irresignação das partes. Nesse sentido, o TJRS considerou a nulidade do ato em si, sem se falar em parcialidade ou suspeição do magistrado. Assim, reconheceu a nulidade absoluta.

Novamente com base no entendimento da PGR, Toffoli considerou que a nulidade está preclusa. A PGR havia sustentado preclusão em virtude do silêncio da defesa e ausência de demonstração do prejuízo.

Nulidade decorrente da quesitação

Preliminarmente, é necessário compreender o que consta na ementa do acórdão do TJRS:

Algumas das imputações que haviam sido feitas na denúncia aos réus foram expressamente excluídas da decisão de pronúncia quando do julgamento do Recurso em Sentido Estrito nº 70071739239. Nada obstante, foram utilizadas no 2º quesito, em relação a todos os réus, parcelas acusatórias que haviam sido excluídas pelo Tribunal de Justiça e não faziam mais parte da decisão de pronúncia, violando o princípio da correlação entre a denúncia e a pronúncia e a sentença.
O 4º quesito foi redigido com a utilização da expressão “Assim agindo”, estabelecendo conexão com o 02º quesito, razão pela qual o 4º quesito, por derivação, também é nulo.

Novamente citando a PGR, o ministro referiu a ausência de insurgência das defesas no momento processual oportuno e a ocorrência da preclusão.

 

Dispositivo da decisão do ministro Toffoli

Conheço, em parte, para, nessa parte, dar provimento aos recursos extraordinários do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e do Ministério Público Federal, para reformar os acórdãos emanados do STJ e do TJRS, determinado que o Tribunal local prossiga no julgamento das questões de mérito contidas nas apelações deduzidas nos autos.
Nos termos do art. 492, I, ‘e”, do CPP, determino o imediato recolhimento dos réus à prisão, servindo a presente decisão como mandado.

 

Minha opinião

Respeitosamente, discordo da decisão.

Cabe frisar, por honestidade intelectual, que a exigência de manifestação no momento processual oportuno (sob pena de preclusão) e do prejuízo está de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal. É sabido que, atualmente, na jurisprudência, exige-se a demonstração do prejuízo para as nulidades absolutas e relativas.

O cerne da questão é reconhecer o equívoco da forma como são apreciadas as nulidades no Brasil. A equiparação das nulidades absolutas e relativas para o fim de se exigir a demonstração do prejuízo e a impugnação no momento oportuno é, por si só, equivocada, pois torna inócua a diferenciação dessas espécies de nulidades no que tange aos requisitos para o reconhecimento e à consequência prática.

No caso da boate Kiss, o prejuízo é inequívoco: os réus foram condenados a penas altas! Ademais, não é possível precisar a exata influência dessas nulidades na decisão dos jurados.

Poder-se-ia sustentar, como na decisão do min. Toffoli, que a nulidade ocorrida no sorteio dos jurados não gerou prejuízo, pois eles não compuseram o Conselho de Sentença. Aparentemente, parece ser um bom fundamento. Entretanto, tem o outro lado: sem a nulidade no último sorteio dos jurados, quem poderia ter composto o Conselho de Sentença? Em outras palavras, sem nulidade e respeitando as regras, seriam sorteados os mesmos jurados? Teria ocorrido a perda da chance de selecionar jurados que poderiam ter entendimentos mais favoráveis à defesa?

Para compreender esse ponto, é necessário ler uma parte da ementa do acórdão da apelação julgada pelo TJRS:

Defesas técnicas que tiveram, respectivamente, 20 (vinte) dias úteis para investigar 150 (cento e cinquenta) jurados, 10 (dez) dias úteis para investigar mais 88 (oitenta e oito) jurados, e, ao fim, 05 (cinco) dias úteis para examinar mais 67 (sessenta e sete) jurados, aqui já sem obediência ao prazo legal (somente metade do prazo legal), sendo que dos 25 (vinte e cinco) jurados que compuseram o Tribunal do Júri, i. é, que tiveram seus nomes colocados na urna, 13 (treze) deles foram oriundos do primeiro sorteio (03/11/2021), 02 (dois) do segundo (17/11/2021) e 04 (quatro) do último sorteio (24/11/2021), aqui flagrantemente fora do prazo legal.

Vejamos: 4 dos 25 jurados que compuseram o tribunal do júri eram oriundos do último sorteio, “flagrantemente fora do prazo legal”. O fato de nenhum jurado do último sorteio ter composto o Conselho de Sentença não parece ser tão relevante quando sabemos dessas outras informações.

Sobre a reunião reservada entre o juiz presidente e os jurados, como a defesa poderia demonstrar o prejuízo sem saber o teor da conversa, as palavras empregadas e outras informações que poderiam oferecer a possibilidade de compreensão sobre eventual grau de influência dessa conversa na decisão dos jurados? É necessário repetir: o teor da reunião não foi registrado.

Aqui, não se está discutindo eventual parcialidade do julgador. Ocorre que, no tribunal do júri, onde os detalhes importam ainda mais, cada palavra empregada pode ter o condão de influenciar os jurados, ainda que sem esse objetivo. Ademais, foi retirada uma parte enorme de exercício da plenitude de defesa: a possibilidade de fiscalizar o que é dito para os jurados.

Afinal, é por receio de influência dos jurados que o art. 478 do CPP prevê:

Art. 478. Durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências:
I – à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado;
II – ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo.

Assim, urge reconhecer que há uma impossibilidade de demonstrar efetivamente o prejuízo de uma nulidade referente a uma conversa não registrada, mas essa impossibilidade, da forma criada, justifica, por si só, o reconhecimento da nulidade, por criar um obstáculo intransponível ao exercício da plenitude de defesa.

Especificamente sobre o vício na quesitação, o TJRS havia decidido:

Algumas das imputações que haviam sido feitas na denúncia aos réus foram expressamente excluídas da decisão de pronúncia quando do julgamento do Recurso em Sentido Estrito nº 70071739239. Nada obstante, foram utilizadas no 2º quesito, em relação a todos os réus, parcelas acusatórias que haviam sido excluídas pelo Tribunal de Justiça e não faziam mais parte da decisão de pronúncia, violando o princípio da correlação entre a denúncia e a pronúncia e a sentença. O 4º quesito foi redigido com a utilização da expressão “Assim agindo”, estabelecendo conexão com o 02º quesito, razão pela qual o 4º quesito, por derivação, também é nulo.

Na decisão, o ministro Toffoli não analisou essas questões, partindo diretamente para a conclusão: essa questão está preclusa.

Dessa forma, em termos gerais, o ministro não afastou as nulidades porque “não havia nada de errado”. Ele as afastou por duas questões prévias na análise da nulidade: ausência de impugnação no momento oportuno e falta de demonstração do prejuízo.

Como sustento há anos, é incorreto:

  • Exigir prejuízo para nulidade absoluta.
  • Condicionar o reconhecimento de uma nulidade à atuação do advogado (impugnação no momento oportuno, sob pena de preclusão).
  • Considerar que nulidade absoluta é atingida pela preclusão.

Com base em vários estudos sobre Direito Processual Penal, especialmente nas Universidades de Barcelona e de Sevilha, entendo ser questionável a separação, no processo penal, de nulidades absolutas e relativas, bem como a exigência de prejuízo para as relativas.

De qualquer forma, entendo que:

  • As nulidades afastadas pelo min. Toffoli são absolutas.
  • Não seria necessária a demonstração do prejuízo.
  • Mesmo que fosse exigida a demonstração do prejuízo, ela é evidente, por se tratar de um caso em que os réus foram condenados a penas altas.
  • Pela própria natureza da nulidade referente à reunião reservada entre juiz presidente e jurados, seria impossível/incabível a demonstração do prejuízo.
    • Ainda assim, a própria impossibilidade de fiscalizar se teve ou não prejuízo é causa mais do que suficiente para reconhecer o cerceamento da plenitude de defesa.

 

O que pode acontecer agora?

Além da possibilidade de prisão imediata dos réus, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul analisará as questões de mérito das apelações. Com isso, fica excluída qualquer possibilidade de anulação do julgamento e submissão a um novo júri? Não.

No julgamento das apelações, pode ser reconhecida, por exemplo, que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, nos termos do art. 593, III, “d”, do Código de Processo Penal. Conforme o parágrafo terceiro do referido artigo, se o TJRS reconhecer isso, os réus serão submetidos a novo julgamento.

Assim, ainda não está descartada a possibilidade de um segundo júri da boate Kiss, pois foram afastadas as nulidades, mas, no julgamento do mérito das apelações, pode ser decidida a realização de um novo julgamento.

É o parecer.

Curitiba/PR, 3 de setembro de 2024.

 Evinis da Silveira Talon

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Evinis Talon é Advogado Criminalista com atuação no Brasil inteiro, com 12 anos de experiência na defesa penal, professor de cursos de mestrado e doutorado com experiência de 11 anos na docência, Doutor em Direito Penal pelo Centro de Estudios de Posgrado (México), Doutorando pela Universidade do Minho (Portugal – aprovado em 1º lugar), Mestre em Direito (UNISC), Máster en Derecho Penal (Universidade de Sevilha), Máster en Derecho Penitenciario (Universidade de Barcelona), Máster en Derecho Probatorio (Universidade de Barcelona), Máster en Derechos Fundamentales (Universidade Carlos III de Madrid), Máster en Política Criminal (Universidade de Salamanca), especialista em Direito Penal, Processo Penal, Direito Constitucional, Filosofia e Sociologia, autor de 7 livros, ex-Defensor Público do Rio Grande do Sul (2012-2015, pedindo exoneração para advogar. Aprovado em todas as fases durante a graduação), palestrante que já participou de eventos em 3 continentes e investigador do Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov) de Portugal. Citado na jurisprudência de vários tribunais, como TRF1, TJSP, TJPR, TJSC, TJGO, TJMG, TJSE e outros.

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