Direito Penal simbólico

Evinis Talon

A ADPF 347 e o Estado de Coisas Inconstitucional

14/09/2019

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A ADPF 347 e o Estado de Coisas Inconstitucional

Neste texto, falarei sobre o dia em que todos os presos do Brasil foram soltos (leia até o final). Todos os presos provisórios e definitivos, condenados por crimes hediondos ou comuns, na condição de primários ou de reincidentes, foram colocados em liberdade.

Trata-se do julgamento da medida cautelar na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) n. 347, julgada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, sob relatoria do Ministro Marco Aurélio. A decisão, prolatada no ano de 2015, ocorreu em uma quarta-feira e impactou a vida de toda a massa carcerária do país.

Foi o momento em que a mais alta Corte do Judiciário brasileiro decidiu que o sistema penitenciário configura, na verdade, um Estado de Coisas Inconstitucional, ou seja, entendeu como inconstitucional tudo isso que encontramos (e criticamos) no sistema prisional: superlotação, violação da dignidade da pessoa humana, superação de prazos,  falta de realização de audiências de custódia etc. Em suma, aquilo que é denunciado, há muitos anos, como uma crise do sistema penitenciário brasileiro.

Portanto, a decisão da medida cautelar na ADPF 347 reconheceu que, atualmente, observamos um Estado de Coisas Inconstitucional no sistema prisional brasileiro.

Como é sabido, uma ADPF faz parte do controle concentrado de constitucionalidade. Talvez o leitor já tenha estudado esse tema na faculdade, caso seja estudante de Direito, porque os professores de Direito Constitucional normalmente falam bastante sobre o assunto (alguns professores iniciam dizendo que “cai muito em concurso”).

A referida ação de controle concentrado de constitucionalidade, assim como a ADIn, possui eficácia contra todos – “erga omnes” – e efeito vinculante. Nesse julgamento, por meio do reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional, entendeu-se que o sistema prisional viola normas básicas e, portanto, fere preceitos da Constituição Federal.

Com base nesse entendimento, todos os presos do Brasil foram colocados em liberdade. O julgamento do STF ocorreu em um quarta-feira e, no dia seguinte, todos os presos foram soltos. Lembro-me de que, no mesmo dia, o jornalista William Bonner, do Jornal Nacional, anunciou em rede nacional que todos os presos do Brasil seriam soltos.

Atualmente, o Brasil tem um pouco mais de 800 mil presos (clique aqui). Em 2015, ano do julgamento da medida cautelar em comento, o número era um pouco menor, mas já era assustador. Após o julgamento, centenas de milhares de presos foram soltos, independente do crime e do tempo de pena.

Fazendo essa retrospectiva, pergunto ao leitor: você se lembra desse fato? Você se lembra do dia em que a notícia acerca da soltura de todos os presos brasileiros tomou conta dos noticiários? Certamente não! E você não lembra porque isso nunca aconteceu. Se isso tivesse acontecido, seria algo tão marcante quanto, por exemplo, o ataque às Torres Gêmeas, nos Estados Unidos, em que todos lembramos onde estávamos naquele momento. Logo, esse desencarceramento em massa jamais ocorreu.

Não pretendo argumentar que o STF deve soltar todos os presos. O que quero demonstrar aqui é o seguinte: nessa decisão, o STF – repito, a mais alta Corte do Poder Judiciário brasileiro -, reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional, ou seja, reconheceu que o nosso sistema prisional viola a dignidade da pessoa humana e preceitos de convenções e tratados internacionais, ferindo, da mesma forma, a Constituição Federal.

É importante ressaltar que isso foi decidido em um dia e, no dia seguinte, nada aconteceu. Nada foi feito a respeito. Todos os presos continuaram no mesmo lugar, sofrendo as mesmas ilegalidades. Imaginemos alguém informando aos presos que o STF havia reconhecido que tudo isso que ocorre com eles é inconstitucional, tendo em vista que, na prática, viola-se a Constituição e a legislação. Em seguida, tudo continuou da mesma forma.

Ministros que votaram a favor do reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional, poucos dias depois do julgamento, denegaram habeas corpus com pedidos de revogação de prisão preventiva e relaxamento de prisão ilegal. Da mesma forma, negaram pedidos de progressão de regime, inclusive argumentando que o apenado não havia implementado o requisito subjetivo, porque não havia sido favorável o exame criminológico, apesar de tal exigência não estar prevista no art. 112 da Lei de Execução Penal.

Enfim, nada mudou! Os mesmos Ministros que, em um dia, decidiram pelo reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional em relação ao sistema prisional, no outro dia, mantiveram muitas pessoas nesse mesmo sistema prisional, negando os pedidos que permitiriam o retorno à liberdade.

Os Civilistas falariam que isso seria um caso de “venire contra factum proprium”, porque, em um dia, a Corte manifestou que o sistema é inconstitucional e, no outro dia, deixou naquele Estado de Coisas Inconstitucional inúmeros seres humanos que estão presos (muitos em excesso de prazo). Repito: não argumento pelo desencarceramento em massa. No entanto, é necessário que o STF reconheça o efeito prático das suas decisões. Se o STF decidiu, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, algo dessa magnitude, deveria ter mantido a coerência posteriormente.

Nessa ADPF, foram realizados oito pedidos cautelares. O STF reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional e deferiu apenas duas medidas. A primeira foi a liberação do recurso do fundo penitenciário, que é algo que nem precisava ser dito, pois é um absurdo a retenção de um valor altíssimo, de mais de um bilhão de reais, em uma conta do fundo penitenciário, enquanto ocorre a superlotação carcerária e todos os problemas estruturais (falta de fornecimento de alimentação, higiene, tratamento médico etc).

A outra medida deferida foi a realização de audiência de custódia, porque, pela legislação brasileira, não há uma previsão específica sobre a sua realização, mas a Convenção Americana de Direitos Humanos prevê a referida audiência. Assim, o STF decidiu algo que já estava em uma Convenção da qual o Brasil é signatário. Repetiu, basicamente, algo que não precisava ser repetido.

Resumidamente, o STF deferiu duas medidas: uma que está prevista em lei (Lei do Fundo Penitenciário Nacional – LC n. 70/94) e outra que está em uma convenção da qual o Brasil é signatário (clique aqui).

O que foi indeferido?

Não deferiram, por exemplo, o pedido de determinação aos Juízes para que motivem as suas decisões quanto à prisão cautelar. Ora, o dever de motivar as decisões relativas à prisão está no art. 5º, LXI, da Constituição Federal. Não há dúvidas de que as decisões judiciais devem ser motivadas. Contudo, mesmo sendo algo tão óbvio, o pedido não foi deferido pela Suprema Corte.

Ainda que tenha determinado a liberação dos valores do fundo penitenciário e a realização de audiências de custódia, sabe-se que, no Brasil, há várias comarcas que não realizam tais audiências, argumentando, por exemplo, que há dificuldades logísticas e que não há Juízes suficientes.

Destarte, é necessário que a decisão do STF tenha algum peso. É imprescindível que o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional tenha algum efeito prático. Caso contrário, o Tribunal do topo do Poder Judiciário brasileiro não terá decidido nada. Apenas terá declarado (ou repetido o que está na legislação) algo que não tem/terá repercussão prática.

Durante a graduação, um professor me disse que, quando um cliente pergunta ao Advogado sobre algum caso referente à área criminal, não se deve responder qual é a natureza do crime (material, formal ou de mera conduta, por exemplo), se ele é um crime de tendência interna transcendente ou se é necessário argumentar sobre a inexistência de “periculum libertatis” e “fumus commissi delicti”. Não é necessário que o Advogado demonstre todo o seu conhecimento jurídico, porque a única coisa que o cliente quer saber é se ele será preso ou não. O que realmente importa para o investigado, réu ou apenado é o efeito prático ou a consequência do que foi decidido.

Portanto, é nesse sentido que devemos pensar. Não tem utilidade que o STF reconheça algo tão importante – o Estado de Coisas Inconstitucional -, que já havia sido reconhecido na Colômbia, por exemplo, quanto a direitos previdenciários de professores, e não dê utilidade prática a esse tipo de decisão.

Nós, Criminalistas, devemos defender que isso tenha algum peso, isto é, que as palavras proferidas pela Corte em favor dos presos (ainda que sejam apenas uma repetição da Constituição e da Convenção Americana de Direitos Humanos) tenham um peso e que não se use uma expressão (Estado de Coisas Inconstitucional), como se esse termo servisse para qualquer coisa e não tivesse força para mudar o “status quo”.

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Evinis Talon é Advogado Criminalista com atuação no Brasil inteiro, com 12 anos de experiência na defesa penal, professor de cursos de mestrado e doutorado com experiência de 11 anos na docência, Doutor em Direito Penal pelo Centro de Estudios de Posgrado (México), Doutorando pela Universidade do Minho (Portugal – aprovado em 1º lugar), Mestre em Direito (UNISC), Máster en Derecho Penal (Universidade de Sevilha), Máster en Derecho Penitenciario (Universidade de Barcelona), Máster en Derecho Probatorio (Universidade de Barcelona), Máster en Derechos Fundamentales (Universidade Carlos III de Madrid), Máster en Política Criminal (Universidade de Salamanca), especialista em Direito Penal, Processo Penal, Direito Constitucional, Filosofia e Sociologia, autor de 7 livros, ex-Defensor Público do Rio Grande do Sul (2012-2015, pedindo exoneração para advogar. Aprovado em todas as fases durante a graduação), palestrante que já participou de eventos em 3 continentes e investigador do Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov) de Portugal. Citado na jurisprudência de vários tribunais, como TRF1, TJSP, TJPR, TJSC, TJGO, TJMG, TJSE e outros.

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