Decisão proferida pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça no RHC 65.205/RN, julgado em julgado em 12/04/2016 (leia a íntegra do acórdão).
Confira a ementa:
[…] TRÁFICO DE DROGAS. AUSÊNCIA DE APREENSÃO DE TÓXICOS COM O ACUSADO OU COM AS MENORES QUE COM ELE SE ENCONTRAVAM. INEXISTÊNCIA DE LAUDO QUE COMPROVE QUE A SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE SERIA APTA A CAUSAR DEPENDÊNCIA FÍSICA OU PSÍQUICA. IMPOSSIBILIDADE DE COMPROVAÇÃO DA MATERIALIDADE DO DELITO. COAÇÃO ILEGAL CONFIGURADA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. 1. Conquanto existam precedentes em que, na hipótese de inexistência de apreensão da droga, dispensam laudo para comprovar a materialidade do delito de tráfico de entorpecentes, a melhor compreensão é a que defende a indispensabilidade da perícia no crime em questão. 2. A constatação da aptidão da substância entorpecente para produzir dependência, ou seja, para viciar alguém, só é possível mediante perícia, já que tal verificação depende de conhecimentos técnicos específicos. Doutrina. 3. O artigo 50, § 1º, da Lei 11.343/06 não admite a prisão em flagrante e o recebimento da denúncia sem que seja demonstrada, ao menos em juízo inicial, a materialidade da conduta por meio de laudo de constatação preliminar da substância entorpecente, que configura condição de procedibilidade para a apuração do ilícito de tráfico. Precedentes. 4. Na hipótese em exame, verifica-se que nenhuma droga foi encontrada em poder do acusado ou das menores que com ele se encontravam, e, por conseguinte, não foi efetivada qualquer perícia que ateste que ele teria fornecido às adolescentes substâncias entorpecentes, circunstância que impede que seja incriminado pelo ilícito tipificado no artigo 33 da Lei 11.343/2006, já que ausente a comprovação da materialidade delitiva. 5. Recurso parcialmente provido apenas para determinar o trancamento da ação penal no tocante ao crime de tráfico de drogas. (RHC 65.205/RN, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 12/04/2016, DJe 20/04/2016)
Leia a íntegra do voto:
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO JORGE MUSSI (Relator): Por meio deste recurso ordinário constitucional, pretende-se, em síntese, o trancamento da ação penal instaurada contra o recorrente.
Segundo consta da denúncia, três adolescentes estavam reunidas em um quiosque na Praia do Meio, tendo sido abordadas pelo acusado, que teria perguntado se “fumavam maconha” (e-STJ fl. 26).
Diante da afirmativa das menores, o réu as levou para um motel, local em que, além de lhes haver ofertado, ainda que de forma gratuita, a droga ilícita, também lhes teria oferecido a quantia de R$ 50,00 (cinquenta) reais para que com ele mantivessem relações sexuais (e-STJ fl. 26).
As adolescentes teriam fumado maconha, ingerido bebida alcoólica e praticado sexo com o denunciado (e-STJ fl. 26).
Policiais foram acionados para comparecer ao estabelecimento em razão de denúncias de um suposto tráfico de drogas praticado por 3 (três) menores, ocasião em que encontraram o recorrente e as jovens em um quarto, tendo todos sido conduzidos para a Delegacia da Criança e do Adolescente (e-STJ fls. 26/27).
Por tais fatos, o Ministério Público imputou ao acusado a prática dos delitos previstos no artigo 218-A do Código Penal e 33 da Lei 11.343/2006.
Feitos estes breves esclarecimentos, no tocante à alegada atipicidade do delito de exploração sexual de criança ou adolescente, cumpre trazer à baila a redação da norma incriminadora em questão:
Favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável. Art. 218-B. Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos. (…)§ 2 o Incorre nas mesmas penas: I – quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos na situação descrita no caput.
Da leitura do tipo penal em apreço, verifica-se que se pune o cliente da pessoa menor de 18 (dezoito) anos e maior de 14 (catorze) anos submetida, atraída, induzida à prostituição ou outra forma de exploração sexual, bem como aquele que impede ou dificulta o abandono da exploração sexual ou prostituição de criança ou adolescente, não havendo qualquer menção à necessidade de obtenção de lucro ou vantagem material por parte do agente.
No caso dos autos, o órgão ministerial afirmou que o recorrente teria atraído três adolescentes a se prostituírem, com ele mantendo relações sexuais mediante promessa de pagamento, encontrando-se descritas, portanto, as elementares exigidas para a caracterização do crime em exame, o que é suficiente para que seja deflagrada a ação penal.
Como se sabe, toda denúncia é uma proposta de demonstração da ocorrência de fatos típicos e antijurídicos atribuídos a determinado acusado, sujeita, evidentemente, à comprovação e contrariedade, a qual somente deve ser repelida quando não houver prova da existência de crime ou de indícios de sua participação no evento criminoso noticiado, ou, ainda, quando se estiver diante de flagrante causa de exclusão da ilicitude ou da tipicidade, ou se encontrar extinta a punibilidade.
E como o remédio constitucional não é o instrumento adequado à discussão aprofundada a respeito de provas e fatos, não há como se valorar os elementos de convicção até então colacionados, como pretende a defesa, para perquirir se as vítimas já eram prostitutas, se teriam se dirigido ao motel por livre e espontânea vontade, ou se haveria indícios suficientes de autoria em desfavor do acusado.
Com efeito, para debate dessa natureza, reserva-se ao réu o processo criminal, ocasião em que as partes podem produzir aquelas provas que melhor entenderem alicerçar seus respectivos interesses, além daquela que pode ser feita pelo Juiz da causa, e não nesta oportunidade e instância, no âmbito estreito do writ.
Portanto, qualquer conclusão diversa, na via eleita, consoante vem decidindo esta colenda Turma, inevitavelmente levaria à vedada análise de provas em sede de habeas corpus.
A propósito:
PROCESSUAL PENAL E PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL, ORDINÁRIO OU DE REVISÃO CRIMINAL. NÃO CABIMENTO. FAVORECIMENTO DA PROSTITUIÇÃO DE ADOLESCENTE. PESSOA QUE SE SERVE DA ATIVIDADE. TIPICIDADE. DOLO AFERIDO DA CONDUTA IMPUTADA. DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL DO ADOLESCENTE. INDÍCIOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE. LIMITADO ACESSO DE VALORAÇÃO DA PROVA NO HABEAS CORPUS. INÉPCIA NÃO RECONHECIDA. 1. Ressalvada pessoal compreensão diversa, uniformizou o Superior Tribunal de Justiça ser inadequado o writ em substituição a recursos especial e ordinário, ou de revisão criminal, admitindo-se, de ofício, a concessão da ordem ante a constatação de ilegalidade flagrante, abuso de poder ou teratologia. 2. Contendo a imputação inicial narrativa do fato de manter relação sexual com adolescente, que atuava na prostituição, a habitualidade na mercancia do corpo dela sendo demonstrada pela agenciadora e pelos variados clientes individualizados na peça acusatória, é admitida como suficiente a descrição das elementares do crime do art. 218-B, § 2º, I, do Código Penal. 3. A denúncia por crime não culposo tem o dolo inferido na conduta imputada: ao descrever a prática de relações sexuais com menor de dezoito anos, a acusação expressa, implícita mas clara e diretamente, que essa conduta se deu conscientemente pelo agente, sabedor das condições do fato imputado. 4. Opção político-estatal de proteção integral da criança e adolescente, por princípio constitucional, normas nacionais e internacionais, que gradualmente fez inserir na legislação proibição de trabalho até os 16 anos de idade – sendo na menoridade de nenhum modo perigoso ou insalubre – e de submissão à prostituição (ECA, Art. 244-A), tipo penal derrogado pela Lei n. 12.015/90, que acresceu condutas não coativas de introdução ou de dificultação de abandono da prostituição (profissão voluntária), ou de exploração sexual (sem a voluntariedade) da adolescente – art. 218-B, § 2º, I, do Código Penal. 5. Para impedir violações à proteção integral, não se pune o adolescente (que trabalha ou se prostitui), mas quem serve-se dessa atividade vedada (punindo administrativamente empregadores e criminalmente – opção política de tratamento mais gravoso – aos clientes da prostituição). 6. Não é afetada a liberdade sexual do adolescente, pois ab-rogado o art. 218 do CP, apenas mantendo protegida sua imagem (ECA, arts. 240/241-E) e impedindo indução a servir como simples instrumento do prazer de terceiro (CP, Art. 227). 7. O tipo do art. 218-B, § 2º, I, do Código Penal, tem a condição de vulnerabilidade admitida por critério biológico ou etário, neste último caso pela constatação objetiva da faixa etária, de 14 a 18 anos, independentemente de demonstração concreta dessa condição de incapacidade plena de auto-gestão. A única habitualidade exigida é na atividade de prostituição – que não se dá por única prática sexual -, o que não afasta ato único em caso de exploração sexual. 8. Desimporta atuar a vítima previamente na prostituição, pois não se pune a provocação de deterioração moral, mas o incentivo à atividade de prostituição de adolescente, inclusive por aproveitamento eventual dessa atividade, como cliente. 9. O limitado acesso de valoração da prova no habeas corpus impede a verificação da suficiência dos indícios de autoria e materialidade para embasar a persecução criminal, fundamentadamente admitida no acórdão atacado. 10. Habeas corpus não conhecido. (HC 288.374/AM, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 05/06/2014, DJe 13/06/2014)
Assim, estando a decisão impugnada em total consonância com o entendimento jurisprudencial firmado por este Sodalício, não há que se falar em trancamento da ação penal quanto ao delito previsto no artigo 218-B, § 2º, inciso I do Código Penal, pois, de uma superficial análise dos elementos probatórios contidos no presente inconformismo, não se vislumbra estarem presentes quaisquer das hipóteses que autorizam a medida excepcional por esta via, já que tal conclusão dependeria, repita-se, de profundo estudo das provas, as quais deverão ser oportunamente valoradas pelo juízo competente.
Finalmente, no que se refere à aventada falta de justa causa para a persecução penal no tocante ao crime de tráfico de drogas, não se desconhece a existência de alguns julgados desta colenda Turma, no sentido de que o laudo toxicológico para comprovar a materialidade do delito em questão só é exigido quando há a apreensão da droga, de modo que nos casos em que esta não é encontrada, seria possível a condenação com base em outras provas, como a testemunhal.
Confira-se:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. NÃO CABIMENTO. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. AUSÊNCIA DE LAUDO TOXICOLÓGICO. PRESCINDIBILIDADE. CONJUNTO PROBATÓRIO ROBUSTO A COMPROVAR A MATERIALIDADE DO DELITO. ABSOLVIÇÃO. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS IMPOSSIBILIDADE NA ESTREITA VIA DO WRIT. (…) HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. (…) III – A ausência de laudo toxicológico não impede que a materialidade do crime de tráfico de drogas seja comprovada por outros meios de provas – interceptação telefônica, prova testemunhal e documental. (Precedentes do STJ e do STF). (…) Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício apenas para redimensionar as penas impostas ao paciente, tornando-as definitivas, em razão da regra do art. 69, do Código Penal, em 9 (nove) anos e 4 (quatro) meses de reclusão. (HC 303.109/ES, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 17/03/2015, DJe 27/03/2015) AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. (…) ALEGADA AUSÊNCIA DE MATERIALIDADE POR NÃO EXISTIR LAUDO TOXICOLÓGICO. PRESCINDIBILIDADE. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO POR FALTA DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. ÓBICE DO VERBETE SUMULAR N.º 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. (…) 2. A despeito da pacífica orientação desta Corte no sentido da indispensabilidade do laudo toxicológico para se comprovar a materialidade do crime de tráfico ilícito de drogas, já se posicionou esta Col. Quinta Turma (HC 91.727/MS, 5.ª Turma, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, DJe de 19/12/2008) no sentido de que o referido entendimento só é aplicável nas hipóteses em que a substância entorpecente é apreendida, a fim que se confirme a sua natureza. 3. Dessa forma, é possível, nos casos de não apreensão da droga, que a condenação pela prática do delito tipificado no art. 33 da Lei n.º 11.343/2006 seja embasada em extensa prova documental e testemunhal produzida durante a instrução criminal que demonstrem o envolvimento com organização criminosa acusada do delito, o que, conforme se constata dos excertos transcritos, constitui a hipótese dos autos. (…) 5. Decisão agravada que se mantém pelos seus próprios fundamentos. 6. Agravo regimental desprovido. (AgRg no AREsp 293.492/MT, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 26/08/2014, DJe 02/09/2014)
Contudo, não obstante os fundamentos constantes dos referidos precedentes, tem-se que a perícia é indispensável para a comprovação da materialidade do crime tipificado no artigo 33 da Lei 11.343/2006, que se encontra assim redigido:
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
O aludido diploma legal, no artigo 1º, § 1º, esclarece que “para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou produtos capazes de causar dependência, assim especificadas em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”.
Por sua vez, o artigo 66 da Lei de Drogas dispõe que, “para fins do disposto no parágrafo único do art. 1º desta Lei, até que seja atualizada a terminologia da lista mencionada no preceito, denominam-se drogas substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da Portaria SVS/MS no 344, de 12 de maio de 1998”.
Da leitura dos dispositivos acima mencionados, percebe-se que o bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora do artigo 33 da Lei 11.343/2006 é a saúde pública, sendo que o tipo penal exige, para sua caracterização, que a droga possua componentes que sejam capazes de causar dependência física ou psíquica.
Ora, a constatação da aptidão da substância entorpecente para produzir dependência, ou seja, para viciar alguém, só é possível mediante perícia, já que tal verificação depende de conhecimentos técnicos específicos.
A potencialidade para causar dependência da droga objeto do crime de tráfico constitui elementar do tipo penal em exame, razão pela qual, uma vez não atestada de forma inconteste, não há como se ter como provada a materialidade do delito em análise.
Em não havendo a apreensão e perícia dos tóxicos capazes de causar dependência física ou psíquica, como seria possível aferir, com segurança, que eles possuiriam tal natureza?
Sobre o exame pericial realizado em laboratório, Guilherme de Souza Nucci apresenta a seguinte lição:
“Trata-se do exame especializado realizado em lugares próprios ao estudo experimental e científico. Em muitos crimes, como ocorre no cenário dos delitos contra a saúde pública, é imprescindível a produção do exame laboratorial, para que os peritos, contando com aparelhos adequados e elementos químicos próprios, possam apresentar suas conclusões. Ex.: exame toxicológico para detecção de substâncias entorpecentes; exame de dosagem alcoólica; exame de substância venenosa; exame de constatação de produto farmacêutico falsificado, dentre outros.” (Provas no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 64).
Aliás, o próprio § 1º do artigo 50 da Lei 11.343/2006 exige a realização de exame pericial para comprovar a materialidade do crime de tráfico de drogas, sem o qual sequer é possível a prisão em flagrante do acusado:
Art. 50. Ocorrendo prisão em flagrante, a autoridade de polícia judiciária fará, imediatamente, comunicação ao juiz competente, remetendo-lhe cópia do auto lavrado, do qual será dada vista ao órgão do Ministério Público, em 24 (vinte e quatro) horas. § 1º Para efeito da lavratura do auto de prisão em flagrante e estabelecimento da materialidade do delito, é suficiente o laudo de constatação da natureza e quantidade da droga, firmado por perito oficial ou, na falta deste, por pessoa idônea. § 2º O perito que subscrever o laudo a que se refere o § 1º deste artigo não ficará impedido de participar da elaboração do laudo definitivo.
Tem-se, então, que por imperativo legal, não se admite a prisão em flagrante e o recebimento da denúncia sem que seja demonstrada, ao menos em juízo inicial, a materialidade da conduta por meio de laudo de constatação preliminar da substância entorpecente, que configura condição de procedibilidade para a apuração do ilícito de tráfico.
Por oportuno, merece transcrição a seguinte passagem da obra “As nulidades no processo penal”, da autoria de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Sarance Fernandes:
“A fim de haver justa causa para a ação penal, de regra, deve o exame de corpo de delito ser feito antes da denúncia, mas, em algumas situações, admite-se a acusação sem ele, desde que esteja a materialidade do crime evidenciada por outros elementos indiciários. Se o processo for instaurado sem o exame, deverá ser ele necessariamente realizado, sendo o laudo juntado antes da sentença. (…) Mesmo quando a materialidade for evidenciada diretamente por elemento constante dos autos (ex.: o próprio documento falsificado), não é possível prescindir-se do exame de corpo de delito.(As nulidades no processo penal. 11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.141).
Na mesma esteira são os ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci:
“Materialidade do crime: o crime relacionado às drogas ilícitas depende de prova pericial, pois é infração penal que deixa vestígio (art. 158, CPP). Logo, a materialidade precisa ser formada pelo laudo toxicológico, quando peritos examinam o produto apreendido, necessariamente, atestando tratar-se de substância entorpecente e indicando qual é a espécie. Laudo de constatação: é o exame pericial preliminar, realizado mais rapidamente, sem necessidade de dois peritos, somente para justificar o recebimento da denúncia ou queixa. O laudo é provisório e pode ser, futuramente, contrariado pelo exame definitivo. É autêntica condição de procedibilidade. Se a peça acusatória for recebida sem o laudo de constatação, há falta de justa causa para a ação penal, possibilitando seu trancamento, pela interposição de habeas corpus. Se o réu estiver preso, deve ser colocado em liberdade.” (Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 389).
Esta orientação também encontra amparo na jurisprudência desta Corte Superior, a exemplo dos julgados abaixo colacionados:
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSO PENAL. TRÁFICO ILÍCITO DE DROGAS. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. COMPROVAÇÃO DA MATERIALIDADE DELITIVA. AUSÊNCIA DO LAUDO TOXICOLÓGICO DEFINITIVO. ABSOLVIÇÃO. RESSALVA DO ENTENDIMENTO DA RELATORA. 1. Conforme a orientação atual desta Sexta Turma, a ausência nos autos do laudo toxicológico definitivo impõe a absolvição pela prática do crime de de tráfico ilícito de drogas, considerando que não restou devidamente comprovada a materialidade do delito. Ressalva do entendimento da Relatora no sentido da nulidade do feito. 2. Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp 1448529/RJ, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 14/04/2015, DJe 23/04/2015)
HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA, LAVAGEM DE DINHEIRO, TRÁFICO E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE DROGAS. CONDENAÇÃO. AUSÊNCIA DE LAUDO TOXICOLÓGICO. MATERIALIDADE DELITIVA NÃO COMPROVADA QUANTO AOS DELITOS DE TRÁFICO E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. NULIDADE ABSOLUTA. DEMAIS DELITOS. DISPENSABILIDADE. 1. A feitura e juntada aos autos do laudo toxicológico é indispensável para a comprovação da materialidade do delito de tráfico de drogas. Ao se constatar a ausência do laudo pericial da substância entorpecente, o processo deve ser anulado para que seja procedida à realização dos respectivos exames periciais e a devida intimação das partes. Precedentes. 2. O laudo de constatação provisório é suficiente para a lavratura do auto de prisão em flagrante e da oferta de denúncia, entretanto, não supre a ausência do laudo definitivo – cuja ausência gera nulidade absoluta, pois que afeta o interesse público e diz respeito à própria prestação jurisdicional. Precedentes desta Corte. 3. No caso, verifica-se que o Paciente está sendo processado pelo delito de tráfico de drogas sem a realização sequer do laudo de constatação provisório, somente tendo sido realizado o exame da aeronave onde os resquícios da droga teriam sido encontrados, restando evidenciado, assim, o constrangimento ilegal. 4. Vencida a Relatora, que entendia que se mostrava dispensável o laudo toxicológico quanto aos demais crimes imputados ao Paciente, na medida em que não constituem delitos que deixam vestígio. Entendimento majoritário prevalente: uma vez anulado o aditamento à denúncia relativamente ao delito de tráfico por ausência materialidade, a anulação deve ser estendida ao crime de associação. 5. Habeas corpus parcialmente concedido para, quanto aos delitos de tráfico e associação para o tráfico de drogas, declarar a nulidade da denúncia e subsequente aditamento. (HC 139.231/MS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 01/09/2011, DJe 17/11/2011)
Na hipótese em exame, verifica-se que nenhuma droga foi encontrada em poder do acusado ou das menores que com ele se encontravam (e-STJ fls. 30/36), e, por conseguinte, não foi efetivada qualquer perícia que ateste que ele teria fornecido às adolescentes substâncias entorpecentes, circunstância que impede que seja incriminado pelo ilícito tipificado no artigo 33 da Lei 11.343/2006, já que ausente a comprovação da materialidade delitiva.
Ante o exposto, dá-se parcial provimento ao recurso apenas para determinar o trancamento da ação penal no tocante ao crime de tráfico de drogas.
É o voto.
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