O colapso da (des)organização prisional
O lamentável episódio ocorrido no Amazonas, em que foram mortas 60 pessoas durante rebeliões em dois presídios da capital, demonstra o total descrédito do sistema prisional.
Tragédias anunciadas, que sempre ocorrem, mas apenas agora são midiatizadas, diante do maior número de pessoas presas vitimadas. Sim, são pessoas! Apenas dizer que foram mortos vários “presos” é tentar elevar um discurso legitimador da tragédia, como se tivessem sido eliminados ou inocuizados inimigos da sociedade, omitindo-se conscientemente o que, em sua essência, esses presos são: pessoas!
Deu-se ao Estado a legitimidade para cometer um ato de violência contra aqueles que fossem condenados pela prática de infrações penais. A pena é uma violência estatal legitimada, quando executada nos termos constitucionais e legais. Com a violência estatal (pena), busca-se a superação da violência privada (criminalidade).
Não alicerçarei teses abolicionistas, propondo o fim do Direito Penal. A pena continua sendo necessária. Se o âmbito de intervenção do Direito Penal deve ser menor, respeitando o princípio da intervenção mínima, esse é outro assunto, que deve ser debatido previamente ao que sustento neste artigo.
Defendo, portanto, a necessidade do Direito Penal e, mais especificamente, da pena. Todavia, a legitimidade da pena deve ser aferida à luz do ordenamento jurídico e da decisão penal condenatória.
Temos um Estado forte na persecução penal, mas fraco na execução da pena. O próprio Estado se deslegitima quando prioriza a obtenção do título penal condenatório, mas manifesta letargia e desdém em relação ao cumprimento desse título. Obtém-se algo (condenação) pelo qual há pouco interesse em se fazer cumprir da forma como foi obtido.
Fala-se muito sobre a correlação entre a peça exordial do processo (denúncia) e a sentença. Há muitos livros em que autores questionam sobre esse paralelismo e concluem pela impossibilidade de que o Magistrado julgue de forma alheia aos limites da imputação ministerial.
Todavia, não observamos pronunciamentos quanto à correlação entre a sentença ou o acórdão e a execução da pena em si. O título judicial penal (sentença condenatória) é executado tal como confeccionado? Não há despropósito e uma imoderação na execução da pena?
No estado atual das coisas, o próprio Estado se deslegitima perante os jurisdicionados, porque descumpre a legislação que ele mesmo elaborou. Quem ingressa no sistema prisional brasileiro tem um pouco mais de esperança de sair vivo e com sua integridade física e psíquica respeitada do que tinham os presos de Auschwitz. E esse conjunto de atrocidades ocorre porque o Estado se abdicou de cumprir seus deveres no âmbito prisional.
A ausência do Estado no cumprimento das disposições legais relativas à execução penal também fortifica a sua ausência na própria organização do expediente prisional. Há uma silenciosa privatização dos presídios, cada vez mais entregues aos próprios apenados. E isso é ensurdecedor!
Na ADPF 347, julgada no dia 9 de setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que o sistema penitenciário nacional vive um Estado de Coisas Inconstitucional, isto é, uma violação massiva e persistente de direitos fundamentais como decorrência de falhas estruturais e da falência de políticas públicas.
Ocorre que há tempos vivemos um contexto de deslegitimidade da violência estatal punitiva. Raras são as disposições da Lei de Execução Penal que, de fato, são cumpridas, com exceção da exigência de requisitos para o implemento de direitos. De forma temerária, o princípio da dignidade da pessoa humana parece não ter aplicação em relação a presos, que, como mencionei antes, parecem sofrer um alheamento progressivo da condição de pessoa.
Com o Decreto do Indulto de 2016, a situação tende a piorar. A ausência de previsão da comutação da pena e o aumento do rigor na concessão do indulto, além de outros retrocessos (leia aqui), serão decisivos para o aumento do número de presos. Com poucos apenados obtendo a extinção da punibilidade mediante o indulto, intensificar-se-á a falta de vagas no sistema prisional e o descaso em relação à situação legal no plano individual e coletivo.
Deve-se, urgentemente, questionar o que foi e continua sendo feito no âmbito da execução penal. Necessita-se de uma análise legislativa, gerencial e interdisciplinar. É imperioso indagar sobre o grau de cumprimento da Lei de Execução Penal.
À guisa de exemplo em relação aos questionamentos necessários, quantos Juízes que atuam na execução penal quedam-se inertes quanto ao envio do atestado anual de pena a cumprir aos apenados? Os que não o fazem são devidamente responsabilizados, como determina o art. 41, XVI, da Lei de Execução Penal?
Qual é o percentual de apenados que cumpre suas penas em celas individuais de no mínimo 6 m² e em ambientes salubres, conforme o art. 88 da Lei de Execução Penal? Quantos apenados estão em situação contrária ao ditames legais? O que foi feito até o momento para tentar trazer à legalidade a situação desses apenados? Quais políticas poderiam ser adotadas de forma imediata, independentemente de recursos orçamentários?
A crítica é inerente aos Advogados Criminalistas e estudiosos do Direito Penal e Processual Penal que não permanecem calados diante das arbitrariedades. Somos insatisfeitos, porquanto perscrutadores. Contudo, quanto à (des)organização prisional brasileira, a crítica se faz com uma mera narrativa dos fatos. Descaso estatal e menoscabo legal: eis o colapso!
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