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Evinis Talon

STJ: atipicidade quanto ao crime de apropriação indébita na hipótese em que o agente incide em mora na devolução de bens locados

20/12/2019

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Decisão proferida pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça no HC 215.522/RS, julgado em 20/10/2015 (leia a íntegra do acórdão).

Confira a ementa:

PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. VIA INADEQUADA. APROPRIAÇÃO INDÉBITA. CONTRATO DE LOCAÇÃO. NÃO DEVOLUÇÃO DOS OBJETOS LOCADOS – FITAS DE VÍDEO. FATO ATÍPICO. ILÍCITO CIVIL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.
1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, acompanhando a orientação da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, firmou-se no sentido de que o habeas corpus não pode ser utilizado como substituto de recurso próprio, sob pena de desvirtuar a finalidade dessa garantia constitucional, exceto quando a ilegalidade apontada é flagrante, hipótese em que se concede a ordem de ofício.
2. O paciente, mediante contrato prévio de locação com a vítima, alugou várias fitas de vídeo, avaliadas em R$ 155,00, não procedendo à devolução dos bens no prazo avençado, vindo a ser condenado pela prática do crime previsto no art. 168 do Código Penal.
3. A conduta apontada como criminosa não extrapola os limites do ilícito civil, visto que a simples mora na devolução dos bens pelo locatário ou eventual desídia de sua parte em informar o novo endereço, não passa de mera inadimplência contratual.
4. De acordo com o princípio da intervenção mínima, o direito penal não deve interferir em demasia na vida em sociedade, devendo ser utilizado somente quando os demais ramos do direito não forem suficientes para proteger os bens de maior importância.
5. No caso, o descumprimento de contrato, por si só, mostra-se insuficiente para caracterizar crime de apropriação indébita, devendo a questão ser resolvida na esfera civil, em razão da atipicidade da conduta no âmbito criminal.
6. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida, de ofício, para trancar a ação penal, por atipicidade da conduta, ficando prejudicadas as demais alegações. (HC 215.522/RS, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, QUINTA TURMA, julgado em 20/10/2015, DJe 10/11/2015)

Leia a íntegra do voto do Ministro Gurgel de Faria:

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO GURGEL DE FARIA (Relator):

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, acompanhando a orientação da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, firmou-se no sentido de que o habeas corpus não pode ser utilizado como substituto de recurso próprio, sob pena de desvirtuar a finalidade dessa garantia constitucional, exceto quando a ilegalidade apontada é flagrante, hipótese em que se concede a ordem de ofício.

Noticiam os autos que o paciente, mediante contrato prévio de locação com a vítima, alugou oito fitas de vídeo no dia 17/05/2006, com a condição de devolvê-las no prazo de 2 (dois) dias. Contrariando a obrigação assumida, o acusado/locatário não procedeu à devolução dos bens no prazo avençado, o que ensejou a busca e apreensão na sua residência, sendo os filmes, avaliados em R$ 155,00, restituídos à locadora.

Dito isso, cumpre registrar que o trancamento da ação penal, no âmbito do habeas corpus, somente é possível quando se constatar, primo ictu oculi, a atipicidade da conduta, a inexistência de indícios de autoria, a extinção da punibilidade ou quando for manifesta a inépcia da exordial acusatória.

No caso, o Juiz de primeiro grau absolveu o paciente, com base no art. 386, III, do Código de Processo Penal, entendendo que a conduta imputada ao acusado não se subsume ao tipo previsto no art. 168 do Código Penal, sob os seguintes fundamentos:

Segundo a denúncia o acusado locou oito filmes em VHS da vídeo-locadora da vítima, bens que foram restituídos. A locação encontra-se comprovada através das declarações da vítima que noticiou a realização do cadastro e a locação dos bens. A autoria não foi negada pelo réu, pois quando ouvido em sede policial admitiu ter alugado os filmes, argumentando, contudo que pretendia devolvê-los quando voltasse à cidade, eis que estava morando em Cristal. Alegou ainda que iria pedir para um amigo devolver os vídeos, mas como choveu este não foi visitá-lo na semana dos fatos. É bem verdade que seu relato restou fragilizado pela ausência de corroboração em juízo, pois o réu não compareceu, sendo decretado revel, e pela ausência de declarações por parte de Silvinho, pessoa citada pelo réu na Delegacia de Polícia. Contudo, a vítima confirmou a locação efetuada pelo réu, acrescentando que Robson possuía ficha cadastral na locadora havia bastante tempo e que sempre devolvia as fitas que locava. Portanto, entendo que no caso dos autos, não foi produzida a prova de que o réu efetivamente apropriou-se dolosamente dos bens pertencentes à vitima. Isso porque, sabidamente, nas relações negociais envolvendo locação de filmes a vítima assume contratualmente o risco pelo extravio ou desaparecimento dos bens locados.

Gize-se que embora não tenha sido acostada aos autos a ficha cadastral, ela foi preenchida e assinada, eis que a vítima relatou que o réu fez uma ficha na locadora e efetuou locações anteriores. É de se notar que é padrão das fichas das locadoras de vídeo que conste a observação que dispõe acerca da responsabilidade do locatário pelo material locado, prevendo que em caso de dano ou extravio dos bens locados o locatário se responsabilize pelo ressarcimento no valor correspondente aos mesmos, bem como assume o valor das diárias pendentes, o que se configura como um contrato prévio entre as partes. Tal contrato descaracteriza a conduta imputada, pois que a locação se encontra protegida contratualmente e a previsão do pagamento pela não devolução dos filmes locados pelo locatário retira a possibilidade da ocorrência do delito de apropriação indébita, contudo, responde pela perda ou extravio dos bens que deveria restituir no juízo cível. Dito isso, salvo melhor juízo, entendo que a vítima anuiu com futura e eventual (pois incerta) inversão do domínio sobre os bens locados, no caso de não serem devolvidos, em verdadeiro negócio jurídico celebrado com o réu. De conseguinte, a conduta imputada ao acusado – apropriação indébita de filmes em VHS locados em uma locadora – não se subsume no tipo penal do art. 168, do Código Penal, se trata, pois, de um ilícito civil, devendo ser promovida a indenização dos valores das fitas no juízo competente, pois o contrato prévio entre as partes descaracteriza a conduta imputada.

O Tribunal de origem, por sua vez, condenou o paciente nos termos da exordial acusatória, afirmando que o fato de ter deixado de devolver volutariamente as fitas de vídeos de propriedade da empresa vítima, mostra-se suficiente para caracterizar o crime de apropriação indébita, anotando, no que interessa:

Oportuno ressaltar, no caso em julgamento, o tranquilo entendimento jurisprudencial, no sentido de a prova testemunhal consistente na palavra da vítima ter suficiente valor probante para o amparo de um decreto condenatório. E na hipótese dos autos, ademais de os relatos da vítima merecerem ser considerados elementos de convicção de alta importância, por terem se mostrado sempre seguros e coerentes, importante notar que, em muitos pontos, foram corroborados pela prova inquisitorial colhida, no sentido da falta de intenção do acusado em restituir os bens, tanto que não mais residia no local informado à época da contratação da locação e deixou de declinar novo endereço à vítima. Em contrapartida, a negativa de prática delitiva pelo réu limitou-se a versão declinada na fase inquisitorial, o que reduz a verossimilhança da sua tese defensiva.

O lesado, em seu depoimento judicial, declarou que, além dele várias locadoras sofreram com a conduta criminosa do réu, que focava várias fitas de vídeo, vindo a desaparecer. Disse que foi à procura do acusado e teve a informação que este havia fugido e se estabelecido no Município de Cristal. Afirmou que o réu era cliente há bastante tempo e sempre devolvia as fitas (fis. 56/59).

A tese do ofendido no sentido de que o denunciado estava se apoderando de fitas de vídeo das locadoras da cidade de Camaquã encontra respaldo no auto de busca e apreensão, uma vez que encontrados em poder do acusado vários títulos de filme em seu poder, diversos daqueles declinados na denúncia.

No que toca á tipicidade da conduta, o dolo específico do tipo descrito no art. 168, caput, do Código Penal é depreendido com clareza do fato de o acusado, na condição de locatário, ter deixado de devolver voluntariamente as fitas de vídeos de propriedade da empresa vítima, vindo a ocorrer tal circunstância tão-somente depois de cumprido o mandado de busca e apreensão pela polícia, quando realizada a comunicação da ocorrência pelo lesado. Na hipótese dos autos, a apropriação indébita foi perpetrada por meio da retenção dos aludidos bens, sem intento de ser procedida à devolução. O dolo especifico do tipo, animus rem sibi habendi, qual seja, a intenção do agente de apoderar-se da res como se dono fosse, é extraído da recusa do réu em devolver os objetos sem qualquer medida coercitiva.

Cumpre ressaltar que a existência de contrato de locação, por si só, não tem o condão de descaracterizar o ilícito penal diante da independência das esferas cível e criminal. Aliás, destaco que aludido negócio jurídico entabulado entre as partes foi o que proporcionou, com facilidade, a posse dos bens do lesado pelo acusado.

Diante do quadro delineado, sem que haja necessidade de incursionar em matéria fática, forçoso reconhecer que a conduta apontada como criminosa não extrapola os limites do ilícito civil, visto que a simples mora na devolução dos bens pelo usufrutuário/locatário ou eventual desídia de sua parte em informar o novo endereço não passam de mera inadimplência contratual.

Ora, sabe-se que a locação de filmes (VHS ou DVD) pressupõe a existência de um contrato de locação entre as partes, sendo certo que eventual descumprimento da obrigação pactuada autoriza a empresa-locadora a tomar as medidas judiciais e extra-judiciais cabíveis, a fim de obter a restituição dos bens ou a cobrança dos prejuízos sofridos.

No caso, a própria vítima confirmou que o paciente possuía uma ficha cadastral na locadora havia bastante tempo e sempre devolvia as fitas que alugava. Assim, o descumprimento de cláusulas contratuais, por si só, mostra-se insuficiente para caracterizar crime de apropriação indébita.

De acordo com o princípio da intervenção mínima, o direito penal não deve interferir em demasia na vida em sociedade, devendo ser utilizado somente quando os demais ramos do direito não forem suficientes para proteger os bens de maior importância.

O descumprimento de contrato, como o caso, por si só, é insuficiente para caracterizar crime de apropriação indébita, devendo a questão ser resolvida na esfera civil, por atipicidade da conduta no âmbito criminal.

Sobre o tema, colho os seguintes precedentes desta Corte de Justiça:

HABEAS CORPUS. HIPÓTESES DE CABIMENTO. APROPRIAÇÃO INDÉBITA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. MERO INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. MATÉRIA CIRCUNSCRITA AO ÂMBITO CÍVEL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. POSSIBILIDADE. 1. A existência de recurso próprio inviabilizaria a utilização do habeas corpus substitutivo, conforme entendimento jurisprudencial. Entretanto, esse mesmo entendimento tem sido mitigado nos casos em que há ilegalidade ou constrangimento ilegal manifestos. 2. O entendimento deste Superior Tribunal firmou-se no sentido de que o descumprimento de contrato de prestação de serviços, sem elementos de ilícito penal, não pode ensejar a deflagração de persecução penal. 3. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para trancar a ação penal. (HC 174013/RJ, Relator Ministro OG FERNANDES, Órgão Julgador T6 – SEXTA TURMA, DJe 01/07/2013)

HABEAS CORPUS. APROPRIAÇÃO INDÉBITA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. POSSIBILIDADE. NÃO DEVOLUÇÃO DE 4 DVDs LOCADOS. ILÍCITO CIVIL. PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA. PACIENTE REINCIDENTE E PORTADOR DE MAUS ANTECEDENTES. CIRCUNSTÂNCIAS QUE NÃO TRANSFORMAM O DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL EM CRIME. CONSTRANGIMENTO ILEGAL DEMONSTRADO. ORDEM CONCEDIDA. 1. A lei penal não deve ser invocada para atuar em hipóteses desprovidas de significação social, razão pela qual os princípios da insignificância e da intervenção mínima surgem para evitar situações dessa natureza, atuando como instrumentos de interpretação restrita do tipo penal. 2. No caso, constata-se o reduzido grau de reprovabilidade e a mínima ofensividade da conduta, além da reduzidíssima periculosidade social, pois a não devolução de 4 DVDs, retirados mediante contrato de locação entre o associado e a locadora de vídeo, caracteriza um ilícito civil e está longe de configurar conduta que autorize a intervenção do direito penal, que deve ser reservado para as situações em que os outros ramos do direito não forem suficientes à tutela do bem jurídico protegido. 3. O fato de o paciente ser reincidente ou possuir anotações em sua folha de antecedentes criminais por crimes contra o patrimônio não transforma o descumprimento contratual em ilícito penal. 4. Habeas corpus concedido para restabelecer a sentença de primeiro grau que absolveu o paciente. (HC 189392/RS, Relator Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Órgão Julgador T5 – QUINTA TURMA, DJe 28/06/2012)

Registre-se que a existência de circunstâncias de caráter pessoal desfavoráveis ao paciente, tais como o registro de outros processos criminais, não tem o condão de elevar o descumprimento contratual à categoria de ilícito penal.

Diante do exposto, NÃO CONHEÇO do habeas corpus. CONCEDO a ordem, de oficio, para trancar a ação penal de que aqui se cuida, por atipicidade da conduta do paciente, ficando prejudicadas as demais alegações.

É como voto.

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Evinis Talon é Advogado Criminalista com atuação no Brasil inteiro, com 12 anos de experiência na defesa penal, professor de cursos de mestrado e doutorado com experiência de 11 anos na docência, Doutor em Direito Penal pelo Centro de Estudios de Posgrado (México), Doutorando pela Universidade do Minho (Portugal – aprovado em 1º lugar), Mestre em Direito (UNISC), Máster en Derecho Penal (Universidade de Sevilha), Máster en Derecho Penitenciario (Universidade de Barcelona), Máster en Derecho Probatorio (Universidade de Barcelona), Máster en Derechos Fundamentales (Universidade Carlos III de Madrid), Máster en Política Criminal (Universidade de Salamanca), especialista em Direito Penal, Processo Penal, Direito Constitucional, Filosofia e Sociologia, autor de 7 livros, ex-Defensor Público do Rio Grande do Sul (2012-2015, pedindo exoneração para advogar. Aprovado em todas as fases durante a graduação), palestrante que já participou de eventos em 3 continentes e investigador do Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov) de Portugal. Citado na jurisprudência de vários tribunais, como TRF1, TJSP, TJPR, TJSC, TJGO, TJMG, TJSE e outros.

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