O Direito Penal do autor
Em artigo anterior, escrevi brevemente sobre o Direito Penal do inimigo e como se trata de uma afronta aos direitos fundamentais (leia aqui).
Agora, aprofundo uma das críticas a essa proposta de Jakobs, que é a acusação de que se trata de um Direito Penal do autor, em detrimento do tradicional Direito Penal do fato.
A tese de Jakobs estabelece uma separação entre cidadão e inimigo, defendendo que este deve sofrer um Direito Penal muito mais rigoroso, com penas desproporcionais e com a flexibilização ou supressão de direitos e garantias fundamentais.
Considero que, combinando-se o viés do Direito Penal do autor com a característica da antecipação da criminalização (ou a punição de estágios prévios) – ambas presentes no Direito Penal do inimigo -, dever-se-ia argumentar, por questão de absoluta coerência, que o inimigo é assim reconhecido em um momento anterior à prática do próprio delito, o que tornaria irrelevante o fato criminoso, alçando-se ao zênite da análise as próprias características do sujeito, ou seja, sua personalidade e sua condição existencial, recorrendo-se, como já mencionado, ao criticado Direito Penal do autor.
Ora, se o Direito Penal do inimigo se constrói precisamente a partir do reconhecimento de seus destinatários como não pessoas, deveria, por coerência, partir também da existência dessa espécie de não pessoas já na realidade prévia a ela. Se assim não se sustentasse, seria o próprio Direito Penal do inimigo que construiria esse conceito de um modo completamente autorreferente e, por isso mesmo, circular.
De qualquer sorte, considero que o Direito Penal do inimigo, por considerar preponderantemente as características subjetivas do agente – e não o fato em si – adota um Direito Penal do autor que não se coaduna com o princípio da igualdade, tampouco com a dignidade da pessoa humana, por delinear “graus distintos” de seres humanos.
O Brasil tem resquícios do Direito Penal do autor, apresentando alguns fragmentos que consideram unicamente a condição subjetiva do agente, desconsiderando, parcial ou totalmente, o fato praticado.
Nesse prisma, a reincidência é um dos exemplos do Direito Penal do autor, tanto na sua descrição (art. 63 do Código Penal), quanto em sua consideração para o fim de impor maiores frações temporais (art. 83, II, do Código Penal) ou impedir alguns direitos (art. 77, I, do Código Penal).
Da mesma forma, os antecedentes e a personalidade, previstos como circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal, também são exemplos do Direito Penal do autor, haja vista que a pena pode ser elevada em razão do histórico pessoal do autor ou de seus comportamentos que não se relacionam com o fato praticado.
Concluo que o Direito Penal deve ter como foco exclusivo o fato praticado, não se admitindo perseguições preponderantemente existenciais, como pretende o Direito Penal do autor, uma das faces do Direito Penal do inimigo. O Direito Penal do autor viola princípios básicos do Estado Democrático de Direito, como a igualdade e dignidade da pessoa humana, motivo pelo qual é não apenas inconstitucional, mas também ilegítimo.
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