No REsp 1.745.410-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 02/10/2018, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o crime de corrupção passiva consuma-se ainda que a solicitação ou recebimento de vantagem indevida, ou a aceitação da promessa de tal vantagem, esteja relacionada com atos que formalmente não se inserem nas atribuições do funcionário público, mas que, em razão da função pública, materialmente implicam alguma forma de facilitação da prática da conduta almejada (clique aqui).
Informações do inteiro teor:
De início, cumpre observar que recentes decisões do Supremo Tribunal Federal a respeito da interpretação do artigo 317 do Código Penal são no sentido de que “se exige, para a configuração do delito (de corrupção passiva), apenas o nexo causal entre a oferta (ou promessa) de vantagem indevida e a função pública exercida, sem que necessária a demonstração do mesmo nexo entre a oferta (ou promessa) e o ato de ofício esperado, seja ele lícito ou ilícito” (Voto da Ministra Rosa Weber no Inq 4.506/DF).
Com efeito, nem a literalidade do art. 317 do CP, nem sua interpretação sistemática, nem a política criminal adotada pelo legislador parecem legitimar a ideia de que a expressão “em razão dela”, presente no tipo de corrupção passiva, deve ser lida no restrito sentido de “ato que está dentro das competências formais do agente”. A expressão “ato de ofício” aparece apenas no caput do art. 333 do CP, como um elemento normativo do tipo de corrupção ativa, e não no caput do art. 317 do CP, como um elemento normativo do tipo de corrupção passiva.
Ao contrário, no que se refere a este último delito, a expressão “ato de ofício” figura apenas na majorante do art. 317, § 1º, do CP e na modalidade privilegiada do § 2º do mesmo dispositivo. Além disso, a desnecessidade de que o ato pretendido esteja no âmbito das atribuições formais do funcionário público fornece uma visão mais coerente e íntegra do sistema jurídico. A um só tempo, são potencializados os propósitos da incriminação – referentes à otimização da proteção da probidade administrativa, seja em aspectos econômicos, seja em aspectos morais – e os princípios da proporcionalidade e da isonomia.
Conclui-se, que o âmbito de aplicação da expressão “em razão dela”, contida no art. 317 do CP, não se esgota em atos ou omissões que detenham relação direta e imediata com a competência funcional do agente. Assim, o nexo causal a ser reconhecido é entre a mencionada oferta ou promessa e eventual facilidade ou suscetibilidade usufruível em razão da função pública exercida pelo agente.
Confira a ementa do REsp 1745410/SP:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. IMPUTAÇÃO DE CORRUPÇÃO ATIVA A UM DOS RECORRIDOS. IMPUTAÇÃO DE CORRUPÇÃO PASSIVA AOS OUTROS DOIS. ABSOLVIÇÃO DOS TRÊS RECORRIDOS NAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. PEDIDO MINISTERIAL DE CONDENAÇÃO. INVIABILIDADE QUANTO AO RECORRIDO ACUSADO DE CORRUPÇÃO ATIVA. EXIGÊNCIA EXPLÍCITA, NO TIPO PENAL, DE “ATO DE OFÍCIO”. VIABILIDADE QUANTO AOS RECORRIDOS ACUSADOS DO CRIME DE CORRUPÇÃO PASSIVA. EXPRESSÃO “EM RAZÃO DELA” QUE NÃO PODE SER EQUIPARADA A “ATO DE OFÍCIO”. POSSIBILIDADE DE CONDENAÇÃO AINDA QUE AS AÇÕES OU OMISSÕES INDEVIDAS NÃO ESTEJAM DENTRO DAS ATRIBUIÇÕES FORMAIS DO FUNCIONÁRIO PÚBLICO. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO, PARA CONDENAR OS RÉUS QUE FORAM DENUNCIADOS POR CORRUPÇÃO PASSIVA.
1. Hipótese em que um dos réus foi absolvido da prática do crime de corrupção ativa (art. 333 do Código Penal) e os outros dois foram absolvidos da prática do crime de corrupção passiva (art. 317 do CP).
2. Ao contrário do que ocorre no crime de corrupção ativa, o tipo penal de corrupção passiva não exige a comprovação de que a vantagem indevida solicitada, recebida ou aceita pelo funcionário público esteja causalmente vinculada à prática, omissão ou retardamento de “ato de ofício”.
3. A expressão “ato de ofício” aparece apenas no caput do art. 333 do CP, como um elemento normativo do tipo de corrupção ativa, e não no caput do art. 317 do CP, como um elemento normativo do tipo de corrupção passiva. Ao contrário, no que se refere a este último delito, a expressão “ato de ofício” figura apenas na majorante do art. 317, § 1.º, do CP e na modalidade privilegiada do § 2.º do mesmo dispositivo.
4. Nem a literalidade do art. 317 do CP, nem sua interpretação sistemática, nem a política criminal adotada pelo legislador parecem legitimar a ideia de que a expressão “em razão dela”, presente no tipo de corrupção passiva, deve ser lida no restrito sentido de “ato que está dentro das competências formais do agente”.
5. Não é lícito ao intérprete simplesmente pressupor que, no crime de corrupção passiva, o legislador praticou alguma sorte de atecnia, ou que falou menos do que desejava, ou que é possível “deduzir” do dispositivo a exigência de ato de ofício, como se ali estivesse uma limitação implícita ao poder-dever de punir. Ao contrário, a redação do dispositivo constitui nítida opção legislativa direcionada a ampliar a abrangência da incriminação por corrupção passiva, quando comparada ao tipo de corrupção ativa, a fim de potencializar a proteção ao aspecto moral do bem jurídico protegido, é dizer, a probidade da Administração Pública.
6. A desnecessidade de que o ato pretendido esteja no âmbito das atribuições formais do funcionário público fornece uma visão mais coerente e íntegra do sistema jurídico. A um só tempo, são potencializados os propósitos da incriminação – referentes à otimização da proteção da probidade administrativa, seja em aspectos econômicos, seja em aspectos morais – e os princípios da proporcionalidade e da isonomia. Exigir nexo de causalidade entre a vantagem e ato de ofício de funcionário público levaria à absurda consequência de admitir, por um lado, a punição de condutas menos gravosas ao bem jurídico, enquanto se nega, por outro, sanção criminal a manifestações muito mais graves da violação à probidade pública: “o guarda de trânsito que pede dinheiro para deixar de aplicar uma multa seria punível, mas o senador que vende favores no exercício do seu mandato passaria impune” (STF, Voto do Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO no Inq 4.506/DF, p. 2.052).
7. O âmbito de aplicação da expressão “em razão dela”, contida no art. 317 do CP, não se esgota em atos ou omissões que detenham relação direta e imediata com a competência funcional do agente. O crime de corrupção passiva não exige nexo causal entre a oferta ou promessa de vantagem indevida e eventual ato de ofício praticável pelo funcionário público. O nexo causal a ser reconhecido é entre a mencionada oferta ou promessa e eventual facilidade ou suscetibilidade usufruível em razão da função pública exercida pelo agente.
8. O crime de corrupção passiva consuma-se ainda que a solicitação ou recebimento de vantagem indevida, ou a aceitação da promessa de tal vantagem, esteja relacionada com atos que formalmente não se inserem nas atribuições do funcionário público, mas que, em razão da função pública, materialmente implicam alguma forma de facilitação da prática da conduta almejada.
9. No caso, irrelevante, para a consumação do crime de corrupção passiva, o fato de que aos Recorridos não competia, à época dos fatos, a prática de função inerente ao controle imigratório no Aeroporto Internacional de São Paulo/SP. Mostra-se suficiente à configuração do delito a constatação, presente no acórdão impugnado – e, por conseguinte, imune ao reexame de fatos e provas -, de que “exerciam a função de auxiliar de serviços gerais em empresa concessionária do uso de área destinada a carga e descarga de aeronaves no Aeroporto Internacional de São Paulo”, e de que, em razão dessa função, aceitaram “proposta de vantagem indevida para que auxiliassem o ingresso irregular de estrangeiro em território nacional” .
10. Recurso parcialmente provido para, por um lado, manter a absolvição do Réu acusado por corrupção ativa, e, por outro, condenar os Corréus acusados por corrupção passiva, com determinação de retorno dos autos ao Tribunal de origem para que proceda à dosimetria da pena.
(STJ, Sexta Turma, REsp 1745410/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 02/10/2018)
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