Decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), na Apelação Criminal nº 00045941820198070003, julgada em 14/05/2020.
Confira a ementa:
PENAL E PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. LESÃO CORPORAL E AMEAÇA. DOSIMETRIA DA PENA. VALORAÇÃO NEGATIVA DAS CIRCUNST NCIAS O CRIME. CRIME PRATICADO NA FRENTE DAS FILHAS DA VÍTIMA. UTILIZAÇÃO DE CONTRAVENÇÃO PENAL PARA REINCIDÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE. UTILIZAÇÃO PARA FINS DE MAUS ANTECEDENTES. REGIME INICIAL DE CUMPRIMENTO DE PENA. CIRCUNST NCIAS DESFAVORÁVEIS. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. 1. Tendo a violência doméstica ocorrido na presença das filhas da vítima, devem ser valoradas negativamente as circunstâncias do crime. 2. A contravenção penal, conquanto não caracterize reincidência, deve ser considerada para fins de maus antecedentes. 3. Existindo duas circunstâncias judiciais desfavoráveis ao réu, não pode ser fixado o regime inicial de cumprimento de pena mais benéfico, em atenção ao disposto no ar. 33, § 3º, do CP. 4. Apelações conhecidas. Recurso do Ministério Público provido. Recurso do réu desprovido. (TJ-DF 00045941820198070003 DF 0004594-18.2019.8.07.0003, Relator: SEBASTIÃO COELHO, Data de Julgamento: 14/05/2020, 3ª Turma Criminal, Data de Publicação: Publicado no PJe : 26/05/2020 . Pág.: Sem Página Cadastrada.)
Leia a íntegra do voto do Relator Des. Sebastião Coelho:
VOTOS
O Senhor Desembargador SEBASTIÃO COELHO – Relator
Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço dos apelos e passo a sua análise conjunta.
A sentença deve ser parcialmente reformada.
O MPDFT ofereceu denúncia contra ANDERSON FERREIRA PASSOS narrando os seguintes fatos:
Em 05/05/2019, por volta de 19h50, na QNP 34, Conjunto I, lote 44, Ceilândia/DF, o denunciado, de forma consciente e voluntária, prevalecendo-se de relações intimas de afeto, ofendeu a integridade corporal de sua companheira KARLA LORENA SANTOS VASCONCELOS LOUREIRO, causando-lhe as lesões corporais retratadas no laudo pericial, bem como a ameaçou de causar-lhe mal injusto ou grave.
Consta que o denunciado e a vítima convivem em união estável há seis anos, não tendo filhos em comum.
Nas circunstâncias de tempo e local acima descritas, o denunciado chegou a casa sob efeito de álcool e apresentando comportamento bastante agressivo, ocasião em que iniciou uma breve discussão com a vítima acerca de um embrulho de roupas que estava sobre o veículo. Ato contínuo, ANDERSON passou a agredir a vítima, empurrando e desferindo socos contra ela.
Ocorre que populares perceberam aquela situação e interviram, tentando auxiliar a vítima. Nesse momento uma vizinha abrigou a vítima em sua residência, mas o denunciado a perseguiu e logrou ingressar nas dependências desta casa, onde continuou agredindo KARLA e as pessoas que estavam no local.
Em determinado momento, ANDERSON foi retirado a força do local. Contudo, mesmo estando do lado de fora do imóvel, o denunciado agarrou os cabelos da vítima e a puxou contra o portão. Não satisfeito com as lesões corporais retratadas no laudo pericial, ANDERSON injuriou a vítima ao xinga-la de “vagabunda” e “piranha”, dentre outros, bem como a ameaçou de morte, dizendo “vem comigo, senão te matarei”.
A materialidade delitiva encontra-se inequivocamente comprovada através do Auto de Prisão em Flagrante (ID 13902002, p. 4/9), da Ocorrência Policial (ID 13902002, p. 14/17), do Termo de Requerimento de Medidas Protetivas (ID 13902002, p. 22), do Laudo de Exame de Corpo de Delito (lesões corporais) (ID 13902365), e pelas provas orais colhidas na fase inquisitorial e em audiência de instrução e julgamento. A autoria também está amplamente comprovada através desses documentos.
Tanto o Ministério Público quanto o réu recorreram apenas com relação à dosimetria da pena. O Ministério Público considera que devem ser valoradas negativamente as circunstâncias do crime, uma vez que foi praticado na frente das filhas da vítima, e pede o afastamento da agravante de reincidência, já que a contravenção penal não caracteriza reincidência, mas tão somente os maus antecedentes.
O réu, por sua vez, requer que a contravenção penal não seja utilizada nem para reincidência, nem para fins de maus antecedentes. Com o reconhecimento de sua primariedade, requer que seja fixado o regime inicial aberto para cumprimento da pena.
Na dosimetria da pena, tanto do crime de lesão corporal quanto de ameaça, o Juízo de origem não valorou negativamente nenhuma circunstância judicial. Na segunda fase, considerou a presença da agravante de reincidência, tendo em vista a condenação pela contravenção penal de vias de fato (ID 13902404, p. 5). Na terceira fase, considerou inexistir qualquer causa de aumento ou diminuição da pena.
De fato, deve ser valorada negativamente a circunstância do crime, uma vez que foi praticado diante das filhas da vítima de 10 e 12 anos.
Do relato judicial da testemunha Martha Esperança Silva dos Santos, extrai-se que o acusado agredia e ameaçava a vítima no interior da residência do casal, na presença das crianças, que inclusive tentavam apartar a briga; a testemunha disse que chegou a tirar as crianças do local, levando-as, junto com a vítima, para sua residência; o réu, contudo, foi ao encontro da vítima e a puxou pelo cabelo, tendo as crianças novamente intervindo em defesa da genitora (ID 13902430).
Nota-se que a exposição das menores à situação de violência contra genitora, que, inclusive intervieram na briga, demonstra a situação de risco a que foram expostas, o que demanda a valoração negativa da circunstância judicial.
Nesse sentido já decidiu este Tribunal:
Violência doméstica. Lesão. Provas. Circunstâncias judiciais. Fração de aumento da pena-base. (…)
3 – Se as agressões físicas foram praticadas na presença de adolescentes, filhos do casal, justifica-se a valoração desfavorável das circunstâncias do crime. (…)
(Acórdão 1230357, 00045069420178070020, Relator: JAIR SOARES, 2ª Turma Criminal, data de julgamento: 6/2/2020, publicado no PJe: 26/2/2020. Pág.: Sem Página Cadastrada.)
Com relação à utilização de contravenção penal para fins de agravante, esta deve ser afastada, ante a impossibilidade legal.
De acordo com o art. 63 do Código Penal, há reincidência “quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no país ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior”. Portanto, não é possível a utilização de contravenção penal para se caracterizar a agravante de reincidência de crime posterior.
Contudo, embora não caracterize reincidência, a condenação anterior por contravenção penal pode ser utilizada para a valoração negativa dos maus antecedentes. Assim tem decidido o STJ:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. CORRUPÇÃO ATIVA. FIXAÇÃO DA PENA-BASE ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. MAUS ANTECEDENTES. CONTRAVENÇÕES PENAIS JÁ ALCANÇADAS PELO PERÍODO DEPURADOR QUINQUENAL. POSSIBILIDADE. REGIME INICIAL SEMIABERTO. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DESFAVORÁVEIS. MAIOR REPROVABILIDADE DA CONDUTA. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS. NÃO PREENCHIMENTO DO REQUISITO DE ORDEM SUBJETIVA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. (…)
Não há ilegalidade na exasperação da pena-base no caso, pois não obstante não caracterize reincidência, a contravenção penal pode ser considerada como reveladora de maus antecedentes (AgRg no AREsp n. 896.312/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Quinta Turma, julgado em 21/6/2016, DJe 29/6/2016).
O Tribunal estadual negativou duas circunstâncias judiciais da paciente – maus antecedentes e consequências do delito -, razão pela qual exacerbou a pena-base na fração de 1/2, e fixou o regime inicial semiaberto. Dessa forma, há fundamentação justificável de maior reprovabilidade da conduta para a fixação do regime semiaberto e para a negativa de substituição da reprimenda, pelo não preenchimento do requisito subjetivo, nos termos dos arts. 33, § 3º, e 44, III, ambos do CP e na jurisprudência pacificada desta Corte Superior. (…)
(AgRg no HC 396.444/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 12/06/2018, DJe 20/06/2018)
Dessa forma, deve ser afastada a agravante de reincidência, mas valoradas negativamente as circunstâncias do crime e os maus antecedentes.
Com relação ao crime de lesão corporal, sendo valoradas negativamente duas circunstâncias judiciais, deve haver o incremento de 2/8 do intervalo entre a pena mínima e máxima previstas em abstrato.
Assim, fixo a pena-base em 11 meses de detenção.
Ausentes agravantes e atenuantes, mantenho a pena em 11 meses de detenção.
Não há causas de aumento ou diminuição da pena, razão pela qual fixo a pena definitiva para o delito do art. 129, §9°, do CP, em 11 meses de detenção.
Quanto ao crime de ameaça, também devem ser valoradas negativamente as circunstâncias do crime e os maus antecedentes. Assim, fixo a pena-base em 2 meses e 7 dias de detenção.
Não há agravantes ou atenuantes, sendo mantida a pena-base.
Por fim, inexistindo causas de aumento ou diminuição da pena, fixo a pena definitiva para o delito do art. 147 do CP, em 2 meses e 7 dias de detenção.
Considerando a regra do concurso material, as penas devem ser somadas, fixando a pena definitiva de privação de liberdade em 1 ano, 1 mês e 7 dias de detenção.
Com relação ao regime para início do cumprimento de pena, o §3° do art. 33 do Código Penal, prevê que “a determinação do regime inicial de cumprimento da pena far-se-á com observância dos critérios previstos no art. 59 deste Código”.
Assim, embora afastada a agravante de reincidência, o réu apresenta duas circunstâncias judiciais negativas – circunstâncias do crime e maus antecedentes – o que impossibilita a fixação do regime inicial de cumprimento de pena mais benéfico, devendo ser mantido o regime semiaberto.
Ante o exposto, DOU PROVIMENTO ao apelo do Ministério Público para valorar negativamente as circunstâncias do crime e afastar a reincidência, utilizando a condenação de contravenção penal anterior ao crime para fins da maus antecedentes, fixando a pena definitiva de privação de liberdade em 1 ano, 1 mês e 7 dias de detenção, no regime inicial semiaberto. NEGO PROVIMENTO ao apelo do réu.
Notifique-se a vítima acerca deste acórdão (art. 201, §2º, do CPP).
Comunique-se na forma da Resolução 172/2013 do Conselho Nacional de Justiça.
É como voto.
Leia também: