Decisão proferida pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça no CC 149.111/PR, julgado em 08/02/2017 (leia a íntegra do acórdão).
Confira a ementa:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA ESTADUAL X JUSTIÇA FEDERAL. INQUÉRITO POLICIAL. CONEXÃO ENTRE DELITOS AMBIENTAIS DE COMPETÊNCIA FEDERAL E POSSE ILEGAL DE ARMA DE FOGO E MUNIÇÕES (SÚMULA 122/STJ). SUPERVENIENTE ARQUIVAMENTO DOS DELITOS AMBIENTAIS ANTES DO OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. PERPETUATIO JURISDICTIONIS: NÃO OCORRÊNCIA. DESLOCAMENTO PARA A JUSTIÇA ESTADUAL. NECESSIDADE.
1. O art. 3º do Código de Processo Penal admite que se estenda à seara Processual Penal o disposto no art. 87 do Código de Processo Civil/1973, segundo o qual se determina a competência no momento em que a ação é proposta, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia (HC 246.383/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 18/06/2013, DJe 20/08/2013).
2. O princípio da perpetuatio jurisdictionis não incide no momento que antecede o ajuizamento da ação penal e pode ser flexibilizado, em algumas situações (como, p. ex., o processo do Tribunal do Júri [art. 81, parágrafo único, do CPP], a prevenção [art. 82 do CPP] e a alteração superveniente de competência fundada na conexão e na continência [art. 81, caput, do CPP]), até a data da prolação da sentença.
3. Não se pode, entretanto, falar em perpetuatio jurisdictionis na fase do Inquérito Policial, quando a jurisdição ainda não chegou a ser inaugurada, já que não houve sequer oferecimento de denúncia.
4. De consequência, não há como se negar que, arquivado o inquérito policial em relação ao delito de competência da Justiça Federal, não se justifica a manutenção da investigação na seara federal dos demais delitos conexos se os crimes remanescentes são de competência da Justiça Estadual.
5. Precedentes: CC 88.013/SC, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 27/02/2008, DJe 10/03/2008; CC 110.998/MS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 26/05/2010, DJe 04/06/2010 e HC 108.350/RJ, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 04/08/2009, DJe 24/08/2009.
6. Conflito conhecido, para declarar competente o Juízo de Direito da Vara Criminal de Matinhos/PR, o suscitante, para a condução do Inquérito Policial em relação ao delito de posse irregular de arma de fogo e de munições. (CC 149.111/PR, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 08/02/2017, DJe 13/02/2017)
Leia a íntegra do voto do Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca:
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO REYNALDO SOARES DA FONSECA (Relator):
O conflito merece ser conhecido, uma vez que os Juízos que suscitam a incompetência estão vinculados a Tribunais diversos, sujeitando-se, portanto, à jurisdição desta Corte, a teor do disposto no art. 105, inciso I, alínea “d”, da Constituição Federal
Questiona-se, nos autos, se, deixando de existir a causa que determinara a reunião de processos na Justiça Federal em atenção ao verbete número 122 da Súmula do STJ (Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, “a”, do Código de Processo Penal), é admissível novo deslocamento de competência para determinar a remessa ou o retorno do feito à Justiça Estadual.
O caso concreto corresponde a Inquérito Policial iniciado para investigar delitos ambientais de interesse federal (supostas extração de palmito Juçara e caça de espécime de fauna silvestre sem a devida autorização para tanto – arts. 40, § 2º, e 29, § 4º, da Lei 9.605/1998) conexos com posse irregular de arma de fogo e munições (art. 12 da Lei 10.826/2003).
A conduta, praticada no dia 30/04/2014 (cf. Auto de Infração n. 021013-A – e-STJ fl. 13 e Relatório de Fiscalização – e-STJ fls. 19/21), foi assim descrita na Portaria que deu início ao Inquérito:
Instaurar Inquérito Policial para apurar possível ocorrência de crimes ambientais e de posse irregular de arma de fogo e munições, inicialmente atribuída a CLODOALDO SANTANA VEIGA, CPF 088.871.069-08, uma vez que, conforme os Autos de Infração de números 021013-A e 021014-A, lavrados por fiscais do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio, teria (i) cortado 12 (doze) árvores de palmito juçara (Euterpo odulis), espécie especialmente protegida ameaçada de extinção, sem permissão da autoridade competente, no entorno próximo do Parque Nacional do Saint-Hilaire/Lange; (li) guardado objeto oriundo da fauna silvestre nativa, consistente em dois dentes caninos de cateto (Pocati tajacu), sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade ambiental competente, em imóvel situado no entorno imediato (lindeiro) do referido Parque; (iii) mantido sob sua guarda uma espingarda calibre 32 e munições do mesmo calibre, com indicativo de que possa ser instrumento utilizado para caça dentro da unidade de conservação já mencionada, condutas que, em tese, podem configurar os crimes previstos no art. 40, caput c/c § 2°, e 29, caput c/c § 4°, inciso V, da Lei n° 9.605/98, e no art. 12 da Lei n° 10.826/2003.
Diante de promoção do Ministério Público Federal em Paranaguá/PR (e-STJ fls. 73/80), datada de 20/01/2015, pugnando pelo arquivamento das investigações no que tange aos delitos ambientais, ante a ausência de provas de sua materialidade (não foram efetuados laudos nos locais em que, supostamente, teria ocorrido a extração de palmito e a caça de espécime em extinção), o Juízo Federal da 1ª Vara de Paranaguá – SJ/PR determinou o arquivamento do Inquérito quanto aos supostos delitos dos arts. 40, § 2º, e 29, § 4º, da Lei 9.605/1998, e a remessa do Inquérito à Justiça Estadual para a continuidade das investigações no tocante ao delito descrito no art. 12 da Lei 10.826/2003, posto que a posse irregular de arma de fogo de uso permitido não corresponde a infração penal praticada em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, de suas autarquias ou empresas públicas.
Com efeito, o art. 3º do Código de Processo Penal admite que se estenda à seara Processual Penal o disposto no art. 87 do Código de Processo Civil/1973, segundo o qual se determina a competência no momento em que a ação é proposta, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia (HC 246.383/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 18/06/2013, DJe 20/08/2013). A norma sofreu algumas alterações de redação no art. 43 do CPC/2015, mas manteve, em essência o mesmo espírito. Confira-se, a seguir, a exata letra da lei.
Art. 3 o do CPP: A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.
Art. 87 do CPC/1973. Determina-se a competência no momento em que a ação é proposta. São irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia.
Art. 43 do CPC/2015. Determina-se a competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta.
A regra, entretanto, encontra exceções no processo de competência do Tribunal do Júri (art. 81, parágrafo único, do CPP), na prevenção (art. 82 do CPP) e na possibilidade de alteração superveniente de competência fundada na conexão e na continência (art. 81, caput, do CPP).
A jurisprudência também tem salientado ser possível a modificação de competência apenas até a prolação da sentença. A propósito:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. FURTO DE BENS DA REDE FERROVIÁRIA FEDERAL S/A. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 353, CONVERTIDA NA LEI Nº 11.483/2007. INCORPORAÇÃO DOS BENS À UNIÃO. APLICAÇÃO DO ART. 87 DO CPC AO PROCESSO PENAL. ALTERAÇÃO DA COMPETÊNCIA. NÃO APLICAÇÃO DO PERPETUATIO JURISDICTIONIS. 1. A Medida Provisória nº 353, convertida na Lei nº 11.484/2007, determinou a incorporação dos bens da Rede Ferroviária Federal à União (Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes – DNIT), que passa a ter interesse nos feitos criminais praticados contra a RFFSA. 2. Aplicação do art. 87 do CPC ao Processo Penal. 3. Competência da Justiça Federal é absoluta em razão da matéria, não se aplicando, in casu, o princípio da perpetuatio jurisdictionis, em razão de inexistência de sentença de mérito. 4. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo Federal da 2ª Vara do Juizado Especial Criminal de Uruguaiana – RS, suscitante. (CC 62.601/RS, Rel. Ministro OG FERNANDES, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 08/10/2008, DJe 17/10/2008) – negritei.
PROCESSO PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. SENTENÇA DE MÉRITO. SUPERVENIENTE FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. MANUTENÇÃO DA COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL AO QUAL ESTÁ VINCULADO O JUÍZO SENTENCIANTE. 1. Proferida sentença de mérito, não se aplicam causas supervenientes de modificação da competência e da jurisdição. 2. O Tribunal Regional Federal não é competente para rever decisão proferida por Juiz de Direito investido de sua competência ordinária. 3. Conflito conhecido para declarar competente o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, suscitado. (CC 54.208/DF, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 12/12/2007, DJe 07/11/2008) – negritei.
A perpetuação da jurisdição tem como finalidade aproveitar a instrução criminal realizada, de modo a possibilitar um trilhar menos oneroso às partes e ao Estado – sem, obviamente, olvidar os direitos individuais do acusado – atendendo-se, assim, aos princípios da economia processual e da identidade física do juiz.
Isso posto, parece nítido que o princípio da perpetuatio jurisdictionis não incide no momento que antecede o ajuizamento da ação penal e pode ser flexibilizado, em algumas situações, até a prolação da sentença.
Ora, no caso concreto, está-se diante de Inquérito Policial, não se podendo falar em perpetuatio jurisdictionis quando a jurisdição ainda não chegou a ser inaugurada, já que não houve sequer oferecimento de denúncia. De consequência, não há como se negar que, arquivado o inquérito em relação ao delito de competência da Justiça Federal, não se justifica a manutenção da investigação na seara federal dos demais delitos conexos se os crimes remanescentes são de competência da Justiça Estadual.
Em situações semelhantes à posta nos autos, esta Corte já decidiu:
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL E JUSTIÇA ESTADUAL. INQUÉRITO POLICIAL. APURAÇÃO DE SUPOSTO CRIME AMBIENTAL OCORRIDO EM ÁREA QUE PASSOU A INTEGRAR PARQUE NACIONAL ADMINISTRADO PELO IBAMA. ALTERAÇÃO DA COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA. INAPLICABILIDADE DO INSTITUTO DA PERPETUATIO JURISDICTIONIS. LESÃO A BENS, SERVIÇOS OU INTERESSES DA UNIÃO CARACTERIZADA. CONFLITO CONHECIDO, PARA DECLARAR A COMPETÊNCIA DO JUÍZO FEDERAL SUSCITANTE. 1. A Terceira Seção desta Corte firmou o entendimento de que, em sendo a proteção do meio ambiente matéria de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e inexistindo dispositivo constitucional ou legal fixando expressamente qual a Justiça competente para o julgamento de Ações Penais por crimes ambientes, tem-se que, em regra, a competência é da Justiça Estadual. O processamento do Inquérito ou da Ação Penal perante a Justiça Federal impõe seja demonstrada a lesão a bens, serviços ou interesses da União (art. 109, IV da CF/88). 2. À época dos fatos, o local onde o crime teria sido cometido pertencia ao Município de Blumenau/SC; entretanto, posteriormente, passou a fazer parte do Parque Nacional da Serra de Itajaí, administrado pelo IBAMA, responsável por sua manutenção e preservação, nos termos do art. 4º do Decreto Presidencial de 04.06.04, que criou a referida área de proteção ambiental permanente; assim sendo, configurado o interesse público da União, desloca-se a competência para a Justiça Federal. 3. Havendo alteração da competência em razão da matéria, os autos não sentenciados devem ser remetidos ao juízo competente superveniente, não se aplicando, nesses casos, o instituto da perpetuatio jurisdictionis. Precedentes do STJ. 4. Ante o exposto, em consonância com o parecer ministerial, conhece-se do conflito para declarar a competência do Juízo Federal suscitante. (CC 88.013/SC, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 27/02/2008, DJe 10/03/2008) – negritei.
PENAL E PROCESSO PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIMES DE DESCAMINHO E DE RECEPTAÇÃO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE DO AGENTE QUE PRATICOU O DELITO DE DESCAMINHO. PERPETUATIO JURISDICTIONIS. NÃO OCORRÊNCIA. DESLOCAMENTO PARA A JUSTIÇA ESTADUAL. NECESSIDADE. 1. Na hipótese de conexão entre crime de descaminho e de receptação, em que existiu atração do processamento/julgamento para a Justiça Federal, sobrevindo a extinção da punibilidade do agente pela prática do delito de descaminho, desaparece o interesse da União, devendo haver o deslocamento da competência para a Justiça Estadual. 2. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de Dourados/MS, ora suscitante. (CC 110.998/MS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 26/05/2010, DJe 04/06/2010) – negritei.
PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. CRIMES AMBIENTAIS CONEXOS A CRIME DE DESOBEDIÊNCIA DE SERVIDOR DO IBAMA. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL. SUBSEQUENTE PRESCRIÇÃO. PERPETUATIO JURISDICTIONIS. NÃO OCORRÊNCIA. DESLOCAMENTO PARA A JUSTIÇA ESTADUAL. NECESSIDADE. 1. Na hipótese de conexão entre crime de desobediência de servidor federal e crimes ambientais, em que existiu atração do processamento/julgamento para a Justiça Federal, sobrevindo prescrição do crime contra a Administração Pública, desaparece o interesse da União, devendo haver o deslocamento da competência para a Justiça Estadual. 2. Ordem concedida para determinar o envio dos autos da ação penal para o Juízo estadual, que se tornou o competente para processar e julgar os crimes ambientais em questão. (HC 108.350/RJ, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 04/08/2009, DJe 24/08/2009) – negritei.
Ante o exposto, conheço do conflito, para declarar competente o Juízo de Direito da Vara Criminal de Matinhos/PR, o suscitante, para a condução do Inquérito Policial em relação ao delito de posse irregular de arma de fogo e de munições.
É como voto.
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