Na nova edição da Pesquisa Pronta do Superior Tribunal de Justiça, a Terceira Seção do STJ decidiu que, se o investigado, em abordagem de rotina, afirma ao agente da Polícia Rodoviária Federal não possuir Carteira Nacional de Habilitação, identificando-se por meio de Carteira de Identidade, e, logo em seguida, o policial avista, em sua carteira aberta, documento similar à CNH que o investigado lhe entrega, admitindo tratar-se de documento falso, não há como se reconhecer na conduta, a priori, o elemento de vontade (de fazer uso de documento falso) necessário à caracterização do delito do artigo 304 do Código Penal, situação em que a apresentação do documento falso à autoridade policial federal não tem o condão de deslocar a competência para o julgamento da ação para a Justiça Federal (CC 148.592).
Confira a ementa:
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL. PORTE DE DOCUMENTO FALSO. CARTEIRA DE HABILITAÇÃO. APREENSÃO PELA POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL APÓS O INVESTIGADO TER AFIRMADO NÃO POSSUIR HABILITAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE OFENSA DIRETA A BENS, INTERESSES OU SERVIÇOS DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL.
1. A configuração do delito previsto no art. 304 do CP pressupõe tanto a efetiva utilização do documento, sponte própria, quanto que o documento falso seja apresentado como autêntico. Nessa linha de raciocínio, “o encontro casual do documento falso em poder de alguém (como ocorre por ocasião de uma revista policial) não é suficiente para configurar o tipo penal, pois o núcleo é claro: ‘fazer uso'” (in Nucci, Guilherme de Souza. Código Penal comentado – 15. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2015). Precedente: CC 128.923/SE, Rel. Ministro NEWTON TRISOTTO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SC), TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 25/02/2015, DJe 03/03/2015.
2. Se o investigado, em abordagem de rotina, afirma ao agente da Polícia Rodoviária Federal não possuir Carteira Nacional de Habilitação, identificando-se por meio de Carteira de Identidade, e, logo em seguida, o policial avista, em sua carteira aberta, documento similar à CNH que o investigado lhe entrega, admitindo tratar-se de documento falso, não há como se reconhecer na conduta, a priori, o elemento de vontade (de fazer uso de documento falso) necessário à caracterização do delito do art. 304 do CP, situação em que a apresentação do documento falso à autoridade policial federal não tem o condão de deslocar a competência para o julgamento da ação penal para a Justiça Federal.
3. Remanesce, assim, no caso concreto, apenas o interesse, em tese, no prosseguimento da investigação do delito previsto no art. 297 do Código Penal (falsificação de documento público) que não é de competência da Justiça Federal, por não ofender diretamente bens, serviços ou interesses da União, de suas autarquias ou empresas públicas, na medida em que a emissão da Carteira Nacional de Habilitação é incumbência de órgãos estaduais de trânsito.
4. Conflito conhecido, para declarar competente para o julgamento do feito o Juízo de Direito da 2ª Vara Cível de Campos dos Goytacazes/RJ, o Suscitado. (CC 148.592/RJ, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 08/02/2017, DJe 13/02/2017)
Leia a íntegra do voto da Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca (acesse a íntegra do acórdão):
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO REYNALDO SOARES DA FONSECA (Relator):
O conflito merece ser conhecido, uma vez que os Juízos que suscitam a incompetência estão vinculados a Tribunais diversos, sujeitando-se, portanto, à jurisdição desta Corte, a teor do disposto no art. 105, inciso I, alínea “d”, da Constituição Federal.
Quanto ao mérito, tenho que a definição da competência para a condução do Inquérito Policial em questão, assim como da Ação penal eventualmente dele derivada, exige que se perquira, inicialmente, se o encontro casual de documento falso em poder de indivíduo abordado pela Polícia Rodoviária Federal se enquadra no tipo penal de uso de documento falso, previsto no art. 304 do Código Penal.
Segundo a narrativa da denúncia (e-STJ fls. 9/10), no dia 13/08/2016, o investigado (Sr. ANTÔNIO CARLOS MEDEIROS BARCELOS) foi abordado pela Polícia Rodoviária Federal, por volta das 11h40min, na BR-101, Km 63, da cidade de Campos dos Goytacazes/RJ, ocasião em que lhe foi solicitada a apresentação da Carteira Nacional de Habilitação – CNH.
O investigado, entretanto, teria afirmado não possui-la, apresentando apenas a carteira de identidade. Isso não obstante, os policiais teriam reparado, no momento em que o denunciado abriu sua carteira, uma CNH, e questionado sobre o documento. Só então o denunciado o teria apresentado, afirmando que ele seria falso.
Como bem ponderou o Juízo suscitante (da Justiça Federal), ao fazer a análise do núcleo do tipo do art. 304 do Código Penal, a doutrina de Guilherme de Souza Nucci (in Código Penal comentado – 15. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2015) salienta a necessidade de que “a utilização seja feita como se o documento fosse autêntico”.
O tipo é sempre doloso e se qualifica como tipo “remetido”, já que demanda a utilização de conceitos definidos em outros tipos para ser integralmente compreendido, como é o caso do conceito de “papel falsificado ou alterado” descrito nos arts. 297 a 302 do Código Penal.
É copiosa a jurisprudência que entende que “O delito previsto no art. 304 do Código Penal consuma-se mesmo quando a carteira de habilitação falsificada é exibida ao policial por exigência deste, e não por iniciativa do agente. Precedentes” (HC 240.201/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 25/03/2014, DJe 31/03/2014). Tal orientação tem amparo em precedentes do Supremo Tribunal Federal (HC 70179, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 01/03/1994, DJ 24-06-1994 PP-16635 EMENT VOL-01750-01 PP-00142 e HC 70813, Relator(a): Min. PAULO BROSSARD, Segunda Turma, julgado em 08/02/1994, DJ 10-06-1994 PP-14766 EMENT VOL-01748-02 PP-00384) que entendem que a apresentação de documento em resposta à solicitação da autoridade policial rodoviária, no exercício de sua função fiscalizadora, nada mais é do que a forma normal de utilização de tais documentos.
Em tais situações, parece nítido o intuito do agente de, voluntariamente, enganar, por meio do uso de documento falso, já que, mesmo instado a apresentar documentação, tem ele a opção de escolher qual documento apresenta, ou mesmo de dizer que não possui o documento solicitado.
Diversa é a hipótese em que o documento falso é encontrado em sua posse, a despeito da sua vontade de exibi-lo. Em tais situações, o Prof. Nucci entende que “o encontro casual do documento falso em poder de alguém (como ocorre por ocasião de uma revista policial) não é suficiente para configurar o tipo penal, pois o núcleo é claro: ‘fazer uso’”.
A Terceira Seção desta Corte já decidiu que o porte de documento falso não se adequa ao tipo do art. 304 do CP, como se vê no seguinte julgado:
HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE REVISÃO CRIMINAL. USO DE DOCUMENTO FALSO 1. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO. POSSIBILIDADE. EXAME SEM PROFUNDO REVOLVIMENTO FÁTICO-PROBATÓRIO. 2. PORTE DE DOCUMENTO FALSO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. 3. ORDEM CONCEDIDA. 1. O habeas corpus, ação de natureza constitucional, é antídoto de prescrição restrita, que se presta a reparar constrangimento ilegal evidente, incontroverso, indisfarçável e que, portanto, mostra-se de plano comprovável e perceptível ao julgador. Não se destina à correção de equívocos, controvérsias ou situações que, ainda que existentes, demandam, para sua identificação e correção, um amplo e aprofundado reexame do conjunto fático-probatório, hipótese que não se configura no caso em exame, visto que o pleito de absolvição sustenta-se no argumento de que o documento não foi utilizado pelo paciente, tendo sido apreendido em revista pessoal promovida pelos policiais, circunstância que restou devidamente consignada nas decisões proferidas pelas instâncias ordinárias. 2. O delito de uso de documento falso pressupõe a efetiva utilização do documento, sponte propria, ou quando reclamado pela autoridade competente, não sendo, portanto, razoável, imputar ao paciente conduta delituosa consistente tão só na circunstância de tê-lo em sua posse. 3. Habeas corpus concedido. (HC 145.500/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 01/12/2011, DJe 19/12/2011) – negritei.
Ora, tenho que, no caso concreto, o investigado não tinha efetivamente a intenção de fazer uso do documento falso posto que, quando abordado e solicitada a apresentação da Carteira Nacional de Habilitação, ele afirmou que não a possuía e somente entregou o documento falso aos policiais após os mesmos terem-no avistado em sua carteira e solicitado a sua exibição, ocasião em que, inclusive, o denunciado afirmou tratar-se de documento falso, o que afasta peremptoriamente sua intenção de iludir.
Assim sendo, a apresentação do documento falso à autoridade policial federal, no caso concreto, não tem o condão de deslocar a competência para o julgamento da ação penal para a Justiça Federal.
Remanesce, assim, no caso dos autos, como bem observou o Juízo suscitante, apenas o interesse no prosseguimento da investigação do delito previsto no art. 297 do Código Penal (falsificação de documento público) que não é de competência da Justiça Federal, por não ofender diretamente bens, serviços ou interesses da União, de suas autarquias ou empresas públicas, na medida em que a emissão da Carteira Nacional de Habilitação é incumbência de órgãos estaduais de trânsito.
Nessa linha de entendimento:
PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO (CP, ART. 297). CARTEIRA DE HABILITAÇÃO. APREENSÃO PELA POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL EM RAZÃO DE BUSCA PESSOAL. NÃO APRESENTAÇÃO DO DOCUMENTO PELO DENUNCIADO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. 1. Constituem crimes o ato de “falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro” (CP, art. 297) e o ato de “fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302” (CP, art. 304). Se o condutor do veículo não fez uso da carteira nacional de habilitação falsificada, que veio a ser apreendida quando da revista realizada por integrante da Polícia Rodoviária Federal, a competência para processar e julgar a ação penal relativamente ao crime do art. 297 do Código Penal é da Justiça estadual. 2. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito de Propriá/SE, ora suscitado. (CC 128.923/SE, Rel. Ministro NEWTON TRISOTTO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SC), TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 25/02/2015, DJe 03/03/2015) – negritei.
Ante o exposto, conheço do conflito, para declarar competente para o julgamento do feito o Juízo suscitado, da 2ª Vara Cível de Campos dos Goytacazes/RJ.
É como voto.
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