Júri: o Ministério Público e os pedidos estratégicos de absolvição
Em interessantíssimo trecho de sua obra, Lyra (2009, p. 95) analisa:
Teria abusado, sobretudo no Júri, nos pedidos de atenuações, desclassificações e até absolvições? Fui elogiado por isto. Antigo jornalista, sempre dispus de boa imprensa. Aprofundando sinceramente a reflexão de recuos táticos para capitalizar a confiança dos jurados e aproveitá-la nos julgamentos de maiores responsabilidades. Ou estava em causa, pessoalmente, prevenindo ‘derrotas’, provocando transações? Em regra, havia escrúpulo na benevolência. De qualquer modo, permiti-me excessiva liberdade nas adaptações dos libelos a juízes de consciência, no jogo das teses sobre causalidade, tentativa, responsabilidade, justificativa, apelação e na consideração dos problemas gerais. Contudo, jamais deixei de resolver pelo acusado dúvida real quanto à autoria.
Nessa passagem, Roberto Lyra questiona se o excesso de atenuações, desclassificações e absolvições postuladas por ele – então acusador – eram resultado de uma tentativa de conquistar a confiança dos jurados para julgamentos com penas mais altas ou se era somente uma forma de evitar derrotas nos júris, considerando que, havendo concordância entre acusação e defesa, o seu entendimento provavelmente seria adotado pelos jurados.
Em inúmeros casos do país, ocorre a primeira opção, utilizando-se pedidos benéficos para o acusado como estratégia para julgamentos futuros. Em outras palavras, alguns acusadores, principalmente os que possuem atribuição exclusiva para plenários do júri, optam por postular absolvição ou desclassificação em casos de menor repercussão, conquistando, dessa forma, a confiança dos jurados para os casos de maior clamor público ou que tenham a possibilidade de penas consideravelmente superiores.
Essa estratégia decorre, como o trecho escrito por Lyra afirma, de uma excessiva liberdade do acusador na avaliação de algumas teses. Assim, acusações por tentativa de homicídio transformam-se, por um juízo discricionário do Promotor, em desclassificação por tentativa. Alguns conceitos de qualificadoras são arbitrariamente invocados ou afastados, de acordo com o acusado e a repercussão do fato. Da mesma forma, a análise das provas referentes à autoria passa a ser mais ou menos criteriosa conforme a necessidade de conquistar a confiança dos jurados para julgamentos posteriores.
Após alguns pedidos de absolvição em plenários, é comum observar o acusador dizer aos jurados, durante um julgamento considerado mais importante, frases como: “quando é caso de absolvição, eu mesmo peço, como nos últimos julgamentos” ou “o Ministério Público não pede apenas a condenação, pois já pedi a absolvição em vários outros casos durante este mês”. Incrivelmente, essas frases são ditas durante julgamentos em que se pede a condenação, como tentativa de demonstrar a aura piedosa e justa do acusador.
Some-se a essa estratégia algumas ofensas à paridade de armas (leia aqui), como o posicionamento do plenário simbolicamente favorável ao Ministério Público, com a Defesa afastada do Juiz e dos jurados, enquanto o acusador permanece exatamente entre eles. Da mesma forma, a quantidade excessiva de autoridades públicas que ocupa, o polo acusador, constituído pela Polícia Civil, Polícia Militar, Ministério Público e Juízes que produzem prova de ofício, além da eventual presença da assistência à acusação. Todos esses fatores somados produzem uma supervalorização da opinião do “Parquet”.
Incumbe à defesa desmistificar esse argumento de autoridade da acusação.
Uma das formas de atingir a credibilidade da acusação se dá pela exaltação de eventual desconhecimento jurídico (leia aqui). Contudo, essa técnica não atinge especificamente a credibilidade conquistada por meio de pedidos de absolvição anteriores.
Para evitar que o acusador seja indevidamente visto como alguém que “pede absolvição quando é caso de absolvição” – quando na verdade apenas se vale dessa estratégia para casos futuros -, deve-se realizar uma comparação com manifestações anteriores do acusador. Os jurados devem ficar cientes de eventuais distorções quanto aos critérios adotados pelo Promotor. Assim, se ele postulou a absolvição em um processo cujo conjunto probatório é mais sólido, a defesa deve informar isso aos jurados quando o acusador requerer a condenação em um processo com menos provas e mais repercussão, apenas se valendo do clamor público ou da busca de uma “condenação exemplar”.
Se for o caso, a defesa deve juntar as atas dos plenários do júri em que o Promotor pediu absolvição como meio de obter a confiança dos jurados, apesar de ter mais provas do que o processo em que se pretende utilizar essa confiança conquistada.
Para não haver risco, deve-se seguir o procedimento do art. 422 do Código de Processo Penal, juntando aos autos do processo relativo ao júri que será realizado os documentos que comprovam a contradição do acusador ou a forma como agiu de forma estratégica nos julgamentos anteriores.
Com essas alegações, a defesa poderá demonstrar que, se o Promotor pediu a absolvição/desclassificação em um processo com provas mais robustas, então, por coerência, deveria estar postulando o mesmo no julgamento atual, cujas provas são menos relevantes. Da mesma forma, a defesa pode enfatizar que o Promotor não “pede absolvição quando é caso de absolvição”, mas sim recua em determinados casos para conquistar a confiança dos jurados em julgamentos posteriores, considerados de maior repercussão.
Posteriormente, abordarei outros meios de desconstituir essa indevida supervalorização das palavras do “Parquet”.
BIBLIOGRAFIA:
LYRA, Roberto. Como julgar, como defender, como acusar. Belo Horizonte: Editora Líder, 2009.
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