O tribunal do júri é competente para julgar os crimes dolosos contra a vida (leia aqui).
No rito desses crimes, há uma fase inicial de instrução, que tem o objetivo de examinar se a acusação é admissível, e uma fase de julgamento pelo tribunal do júri, com representantes do povo.
Nesse diapasão, a decisão de pronúncia é um mero juízo de admissibilidade, realizado pelo Magistrado ao final da primeira fase do rito. O acusado somente será julgado por um júri se for pronunciado.
A pronúncia está prevista no art. 413 do Código de Processo Penal nos seguintes termos: “o juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação.”
Muitos doutrinadores e grande parte da jurisprudência entendem que, havendo dúvida sobre a autoria do fato, o Juiz deve pronunciar o acusado, conforme o “princípio” do “in dubio pro societate”.
Dessa forma, quando há dúvida, os Magistrados utilizam, de forma exagerada, o “in dubio pro societate”, delegando a competência do julgamento ao conselho de sentença que, por sua vez, decidirá se o pronunciado é culpado ou inocente, em respeito ao princípio da soberania dos veredictos.
Cita-se, por exemplo, a seguinte decisão:
[…] A decisão de pronúncia é um mero juízo de admissibilidade, cujo único objetivo é submeter os acusados ao julgamento popular, não se exigindo prova incontroversa da autoria do delito. Por isso, nesta fase processual não vige o princípio segundo o qual a dúvida favorece o réu, vez que as eventuais incertezas se resolvem em favor da sociedade, tendo em conta que a decisão de pronúncia tem natureza meramente processual. (TJ/RS, Segunda Câmara Criminal, Recurso em Sentido Estrito Nº 70075915215, Rel. José Antônio Cidade Pitrez, julgado em 14/12/2017)
Quando digo que esses Magistrados atécnicos “delegam” a competência do julgamento aos jurados, não desconsidero que, de fato, são os jurados que devem julgar os crimes dolosos contra a vida. O que pretendo ressaltar é que deveria haver um filtro inicial pelo Juiz, e não uma mera transferência da incumbência aos jurados.
Ora, sabemos que, em relação ao júri, vigora o princípio da plenitude de defesa, o qual, combinado com a soberania dos vereditos, permitiria que os jurados absolvessem por qualquer motivo, ainda que não previsto em lei: perdão do acusado, desnecessidade da pena, “eu teria feito igual”, a sociedade criminalizou o réu, já houve muito sofrimento para o acusado etc.
Pois bem. Com o “in dubio pro societate”, adota-se uma lógica ainda mais punitivista. Se o júri deveria ter a função de analisar casos de absolvição não previstos em lei (convicção filosófica, religiosa ou qualquer motivo citado acima), com esse “princípio”, há uma transferência da análise jurídica que deveria ser feita pelo Magistrado. Noutras palavras, os Juízes, na decisão de pronúncia, estão deixando de cumprir uma competência para a qual são remunerados.
Argumenta-se que, no “in dubio pro societate”, a dúvida não beneficia o réu, mas sim a sociedade. Ora, como enviar alguém a um júri sem um correto juízo de admissibilidade pode beneficiar a sociedade? Na verdade, causa uma insegurança enorme, não apenas pela falta de Juízes que cumprem a Constituição (princípio da presunção de inocência), mas também pela supressão de uma fase do rito.
No processo penal, cada ato previsto em lei é uma garantia contra os excessos estatais. Se é assim, imagine o descumprimento de uma fase inteira (a de admissibilidade), por meio de uma decisão de pronúncia que transfere integralmente aos jurados o julgamento (que é função do júri) e o exame da admissibilidade (que deveria ser dos Juízes).
Salienta-se, por oportuno, que o “in dubio pro societate” não é previsto em nosso ordenamento jurídico, ao contrário do princípio da presunção de inocência.
Ademais, há uma incorreta leitura do art. 413 do CPP quanto tentam utilizá-lo como fundamento do “in dubio pro societate”.
A um, uma norma infraconstitucional não pode ser interpretada por si só, tampouco violando uma disposição constitucional.
A dois, o art. 413 do CPP não abre a possibilidade de que o Magistrado pronuncie em caso de dúvida. Verdadeiramente, esse dispositivo legal exige que o Juiz esteja convencido da materialidade do fato, o que não é sinônimo de ter dúvidas.
Quanto à autoria, o art. 413 do CPP menciona a “existência de indícios suficientes de autoria ou de participação”. Indício, segundo o art. 239 do CPP, é a “circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.”
O que seriam “indícios suficientes”? Seriam os suficientes para uma condenação? Ou suficientes para submeter alguém a julgamento perante o júri?
O art. 414 do CPP, que trata da impronúncia, ajuda na interpretação acerca da decisão de pronúncia. A questão é simples: esse dispositivo se inicia com as palavras “não se convencendo”, o que, por uma interpretação que tenha um mínimo de boa-fé, significaria “tendo dúvidas”. Assim, em caso de dúvida, não se deve adotar o “in dubio pro societate”, mas sim proferir uma decisão de impronúncia.
Conclui-se, portanto, que o “in dubio pro societate” não é compatível com o Estado democrático de direito, nem mesmo previsto em nossa legislação. Trata-se de uma inversão da lógica garantista do tribunal do júri, atribuindo aos jurados uma competência que seria dos Juízes.
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