“Todos se dizem inocentes”. Trata-se de uma das frases mais clichês da prática forense e que quase sempre revela uma predisposição para acusar ou condenar.
Em trecho escrito há oitenta anos, Azevedo (1936, p. 203) destaca:
O contacto diario com a fraude, com a mentira, com o embuste, com a falta de sinceridade de innumeros accusados, começa a produzir um grande scepticismo no espírito do juiz, em face dos protestos de innocencia, e acaba convencendo-o de que todos os indiciados são culpados. Desse modo, quando se apresenta um denunciado perante um velho magistrado, este não procura encaminhar o interrogatório das testemunhas e a colheita de provas, no sentido de demonstrar a innocencia, e sim no fazer ressaltar a culpabilidade. A presumpção comum de innocencia transforma-se no seu espírito em presumpção geral de culpabilidade.
Lembro-me de que, no exercício de um cargo público referente a um órgão da execução penal, realizei um atendimento no presídio enquanto um Juiz da Vara de Execuções Criminais fazia uma inspeção rotineira. Em dado momento, um apenado, chorando desesperadamente, disse-nos que já havia cumprido integralmente a sua pena e que em breve atingiria o dobro da sanção fixada na sentença condenatória. Na saída do estabelecimento prisional, o Juiz me disse que todos ali falavam a mesma coisa e que não era algo a ser levado a sério.
Receoso, optei por analisar o PEC. Para a minha surpresa, a versão do apenado era verdadeira. Ele havia permanecido preso preventivamente durante todo o processo e, posteriormente, ao iniciar o cumprimento da pena, ninguém postulou ou aplicou a detração penal. Naquele momento, ele já havia cumprido cerca de 150% da sua pena.
Esse fato revela não apenas o descaso de todos os órgãos da execução penal e profissionais da iniciativa privada que analisaram o PEC anteriormente e se esqueceram de aplicar a detração, mas principalmente a forma como uma narrativa coletiva prejudica a situação individual. Por considerar que o excesso quantitativo da pena era um argumento invocado por todos os apenados, aquele Juiz – possivelmente como outros que analisaram o PEC anteriormente – decidiu desconsiderar as afirmações daquele apenado.
Apesar de abordarem assuntos distintos, o trecho de Noé Azevedo e a minha pequena narrativa possuem como ponto nevrálgico a influência que as autoridades públicas recebem após contínuas repetições acerca de determinada afirmação. Enquanto os Juízes criminais ouvem “sou inocente” múltiplas vezes, os Juízes da execução penal ouvem afirmativas no sentido do implemento de algum direito ou do fim da pena.
No primeiro caso, a presunção de inocência passa a ser confundida com uma presunção de “sou inocente”. Os Juízes menos zelosos passam a presumir que o réu dirá que é inocente e, como resposta, indagam as testemunhas da acusação e da defesa no sentido de desconstituir essa futura afirmativa.
O que fazer? No Brasil, não é – e não deve ser – criminalizado o perjúrio, ou seja, a afirmação falsa por um acusado. Em outras palavras, o réu que nega a prática do crime sem imputá-lo falsamente a terceiro pratica conduta atípica. Apesar de haver projeto para criminalizar o perjúrio (veja matéria em que fui consultado pelo Migalhas aqui), entendo que se trata de projeto de lei que viola o direito ao silêncio, sendo, por conseguinte inconstitucional. Ademais, o equívoco dessa inversão no que concerne à presunção de inocência não está nos réus, cuja conduta individual não pode ser analisada por um viés coletivo, mas sim nos Juízes que se investem indevidamente de uma função acusatória, o que, felizmente, não é a maioria.
Acredito que a presunção de inocência merece ser analisada sob essa perspectiva das múltiplas afirmações de inocência perante o Juiz criminal. No sistema brasileiro, em que a presunção de inocência coexiste e fortalece o direito ao silêncio, desconsiderar as afirmações de inocência dos acusados em virtude de inúmeras declarações semelhantes por parte de outros acusados é tão grave quanto a própria proibição de que se afirme a inocência.
BIBLIOGRAFIA:
AZEVEDO, Noé. As garantias da liberdade individual em face das novas tendências penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1936, p. 203.