No RHC 99.735-SC, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 27/11/2018, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que é impossível aplicar a analogia entre o instituto da interceptação telefônica e o espelhamento, por meio do Whatsapp Web, das conversas realizadas pelo aplicativo Whatsapp (clique aqui).
Informações do inteiro teor:
Inicialmente, cumpre salientar que, ao contrário da interceptação telefônica, no âmbito da qual o investigador de polícia atua como mero observador de conversas empreendidas por terceiros, no espelhamento via WhatsApp Web o investigador de polícia tem a concreta possibilidade de atuar como participante tanto das conversas que vêm a ser realizadas quanto das conversas que já estão registradas no aparelho celular, haja vista ter o poder, conferido pela própria plataforma online, de interagir diretamente com conversas que estão sendo travadas, de enviar novas mensagens a qualquer contato presente no celular, e de excluir, com total liberdade, e sem deixar vestígios, qualquer mensagem passada, presente ou futura. Insta registrar que, por mais que os atos praticados por servidores públicos gozem de presunção de legitimidade, doutrina e jurisprudência reconhecem que se trata de presunção relativa, que pode ser ilidida por contra-prova apresentada pelo particular.
Não é o caso, todavia, do espelhamento: o fato de eventual exclusão de mensagens enviadas (na modalidade “Apagar para mim”) ou recebidas (em qualquer caso) não deixar absolutamente nenhum vestígio nem para o usuário nem para o destinatário, e o fato de tais mensagens excluídas, em razão da criptografia end-to-end, não ficarem armazenadas em nenhum servidor, constituem fundamentos suficientes para a conclusão de que a admissão de tal meio de obtenção de prova implicaria indevida presunção absoluta da legitimidade dos atos dos investigadores, dado que exigir contraposição idônea por parte do investigado seria equivalente a demandar-lhe produção de prova diabólica (o que não ocorre em caso de interceptação telefônica, na qual se oportuniza a realização de perícia).
Em segundo lugar, ao contrário da interceptação telefônica, que tem como objeto a escuta de conversas realizadas apenas depois da autorização judicial (ex nunc), o espelhamento via QR Code viabiliza ao investigador de polícia acesso amplo e irrestrito a toda e qualquer comunicação realizada antes da mencionada autorização, operando efeitos retroativos (ex tunc). Em termos técnico-jurídicos, o espelhamento seria melhor qualificado como um tipo híbrido de obtenção de prova consistente, a um só tempo, em interceptação telefônica (quanto às conversas ex nunc) e em quebra de sigilo de e-mail (quanto às conversas ex tunc).
Não há, todavia, ao menos por agora, previsão legal de um tal meio de obtenção de prova híbrido. Por fim, ao contrário da interceptação telefônica, que é operacionalizada sem a necessidade simultânea de busca pessoal ou domiciliar para apreensão de aparelho telefônico, o espelhamento via QR Code depende da abordagem do indíviduo ou do vasculhamento de sua residência, com apreensão de seu aparelho telefônico por breve período de tempo e 16 posterior devolução desacompanhada de qualquer menção, por parte da autoridade policial, à realização da medida constritiva, ou mesmo, porventura acompanhada de afirmação falsa de que nada foi feito.
Confira a ementa do RHC 99.735/SC:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSO PENAL. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO AO TRÁFICO. AUTORIZAÇÃO JUDICIAL DE ESPELHAMENTO, VIA WHATSAPP WEB, DAS CONVERSAS REALIZADAS PELO INVESTIGADO COM TERCEIROS. ANALOGIA COM O INSTITUTO DA INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. IMPOSSIBILIDADE. PRESENÇA DE DISPARIDADES RELEVANTES. ILEGALIDADE DA MEDIDA. RECONHECIMENTO DA NULIDADE DA DECISÃO JUDICIAL E DOS ATOS E PROVAS DEPENDENTES. PRESENÇA DE OUTRAS ILEGALIDADES. LIMITAÇÃO AO DIREITO DE PRIVACIDADE DETERMINADA SEM INDÍCIOS RAZOÁVEIS DE AUTORIA E MATERIALIDADE. DETERMINAÇÃO ANTERIOR DE ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL. FIXAÇÃO DIRETA DE PRAZO DE 60 (SESSENTA) DIAS, COM PRORROGAÇÃO POR IGUAL PERÍODO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. RECURSO PROVIDO.
1. Hipótese em que, após coleta de dados do aplicativo WhatsApp, realizada pela Autoridade Policial mediante apreensão judicialmente autorizada de celular e subsequente espelhamento das mensagens recebidas e enviadas, os Recorrentes tiveram decretadas contra si prisão preventiva, em razão da suposta prática dos crimes previstos nos arts. 33 e 35 da Lei n.º 11.343/2006.
2. O espelhamento das mensagens do WhatsApp ocorre em sítio eletrônico disponibilizado pela própria empresa, denominado WhatsApp Web. Na referida plataforma, é gerado um tipo específico de código de barras, conhecido como Código QR (Quick Response), o qual só pode ser lido pelo celular do usuário que pretende usufruir do serviço. Daí a necessidade de apreensão, ainda que por breve período de tempo, do aparelho telefônico que se pretende monitorar.
3. Para além de permitir o acesso ilimitado a todas as conversas passadas, presentes e futuras, a ferramenta WhatsApp Web foi desenvolvida com o objetivo de possibilitar ao usuário a realização de todos os atos de comunicação a que teria acesso no próprio celular. O emparelhamento entre celular e computador autoriza o usuário, se por algum motivo assim desejar, a conversar dentro do aplicativo do celular e, simultaneamente, no navegador da internet, ocasião em que as conversas são automaticamente atualizadas na plataforma que não esteja sendo utilizada.
4. Tanto no aplicativo, quanto no navegador, é possível, com total liberdade, o envio de novas mensagens e a exclusão de mensagens antigas (registradas antes do emparelhamento) ou recentes (registradas após), tenham elas sido enviadas pelo usuário, tenham elas sido recebidas de algum contato. Eventual exclusão de mensagem enviada (na opção “Apagar somente para Mim”) ou de mensagem recebida (em qualquer caso) não deixa absolutamente nenhum vestígio, seja no aplicativo, seja no computador emparelhado, e, por conseguinte, não pode jamais ser recuperada para efeitos de prova em processo penal, tendo em vista que a própria empresa disponibilizadora do serviço, em razão da tecnologia de encriptação ponta-a-ponta, não armazena em nenhum servidor o conteúdo das conversas dos usuários.
5. Cumpre assinalar, portanto, que o caso dos autos difere da situação, com legalidade amplamente reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça, em que, a exemplo de conversas mantidas por e-mail, ocorre autorização judicial para a obtenção, sem espelhamento, de conversas já registradas no aplicativo WhatsApp, com o propósito de periciar seu conteúdo.
6. É impossível, tal como sugerido no acórdão impugnado, proceder a uma analogia entre o instituto da interceptação telefônica (art. 1.º, da Lei n.º 9.296/1996) e a medida que foi tomada no presente caso.
7. Primeiro: ao contrário da interceptação telefônica, no âmbito da qual o investigador de polícia atua como mero observador de conversas empreendidas por terceiros, no espelhamento via WhatsApp Web o investigador de polícia tem a concreta possibilidade de atuar como participante tanto das conversas que vêm a ser realizadas quanto das conversas que já estão registradas no aparelho celular, haja vista ter o poder, conferido pela própria plataforma online, de interagir nos diálogos mediante envio de novas mensagens a qualquer contato presente no celular e exclusão, com total liberdade, e sem deixar vestígios, de qualquer mensagem passada, presente ou, se for o caso, futura.
8. O fato de eventual exclusão de mensagens enviadas (na modalidade “Apagar para mim”) ou recebidas (em qualquer caso) não deixar absolutamente nenhum vestígio nem para o usuário nem para o destinatário, e o fato de tais mensagens excluídas, em razão da criptografia end-to-end, não ficarem armazenadas em nenhum servidor, constituem fundamentos suficientes para a conclusão de que a admissão de tal meio de obtenção de prova implicaria indevida presunção absoluta da legitimidade dos atos dos investigadores, dado que exigir contraposição idônea por parte do investigado seria equivalente a demandar-lhe produção de prova diabólica.
9. Segundo: ao contrário da interceptação telefônica, que tem como objeto a escuta de conversas realizadas apenas depois da autorização judicial (ex nunc), o espelhamento via Código QR viabiliza ao investigador de polícia acesso amplo e irrestrito a toda e qualquer comunicação realizada antes da mencionada autorização, operando efeitos retroativos (ex tunc).
10. Terceiro: ao contrário da interceptação telefônica, que é operacionalizada sem a necessidade simultânea de busca pessoal ou domiciliar para apreensão de aparelho telefônico, o espelhamento via Código QR depende da abordagem do indíviduo ou do vasculhamento de sua residência, com apreensão de seu aparelho telefônico por breve período de tempo e posterior devolução desacompanhada de qualquer menção, por parte da Autoridade Policial, à realização da medida constritiva, ou mesmo, porventura – embora não haja nos autos notícia de que isso tenha ocorrido no caso concreto -, acompanhada de afirmação falsa de que nada foi feito.
11. Hipótese concreta dos autos que revela, ainda, outras três ilegalidades: (a) sem que se apontasse nenhum fato novo na decisão, a medida foi autorizada quatro meses após ter sido determinado o arquivamento dos autos; (b) ausência de indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal a respaldar a limitação do direito de privacidade; e (c) ilegalidade na fixação direta do prazo de 60 (sessenta) dias, com prorrogação por igual período.
12. Recurso provido, a fim de declarar a nulidade da decisão judicial que autorizou o espelhamento do WhatsApp via Código QR, bem como das provas e dos atos que dela diretamente dependam ou sejam consequência, ressalvadas eventuais fontes independentes, revogando, por conseguinte, a prisão preventiva dos Recorrentes, se por outro motivo não estiverem presos.
(STJ, Sexta Turma, RHC 99.735/SC, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 27/11/2018)
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