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Evinis Talon

STF: o magistrado pronunciante não poderá enunciar um juízo de certeza quanto à prática, pelo réu, do crime que lhe foi atribuído pelo Ministério Público

24/04/2020

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Decisão proferida pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal no RHC 92571, julgado em 30/06/2009 (leia a íntegra do acórdão).

Confira a ementa:

E M E N T A: RECURSO ORDINÁRIO EM “HABEAS CORPUS” – ALEGADA NULIDADE DA DECISÃO DE PRONÚNCIA – EXCESSO DE LINGUAGEM DO MAGISTRADO PRONUNCIANTE – INOCORRÊNCIA – PRETENDIDA EXCLUSÃO DA QUALIFICADORA DO MOTIVO TORPE (CP, ART. 121, § 2º, I) – SUPOSTA INCOMPATIBILIDADE COM O RECONHECIMENTO DE DOLO EVENTUAL (CP, ART. 18, I, “IN FINE”) – INEXISTÊNCIA – ADOÇÃO, NO PONTO, DA TÉCNICA DA MOTIVAÇÃO “PER RELATIONEM” – LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL – RECURSO ORDINÁRIO IMPROVIDO. (RHC 92571, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 30/06/2009, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-042 DIVULG 27-02-2014 PUBLIC 28-02-2014)

Leia a íntegra do voto do Relator Min. Celso de Mello:

V O T O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – (Relator):

O exame da pretensão recursal em causa – no ponto em que se alega nulidade decorrente do excesso de linguagem que teria caracterizado a decisão de pronúncia em questão – revela não assistir razão ao recorrente.

Ninguém desconhece que o magistrado, ao pronunciar o acusado, deverá indicar as razões pelas quais se convenceu da existência material do crime “(…) e de indícios de que o réu seja o seu autor (…)” (CPP, art. 408, “caput”, na redação anterior à Lei nº 11.689/2008 – grifei).

Vê-se, daí, que o magistrado pronunciante, para formular, validamente, o juízo positivo de admissibilidade da acusação penal, não poderá – tratando-se da autoria do fato delituoso – enunciar um juízo de certeza quanto à prática, pelo réu, do crime que lhe foi atribuído pelo Ministério Público, como tem decidido esta Suprema Corte (HC 88.970/BA, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).

Se fosse lícito ao magistrado assim proceder, estaria ele, ao manifestar esse (inadmissível) juízo de certeza, substituindo-se, indevidamente, ao Conselho de Sentença, que constitui, nos crimes dolosos contra a vida, o juiz natural daqueles que são submetidos a julgamento pelo Júri.

É por isso que se tem enfatizado a necessidade de o juiz, ao expor os motivos de seu convencimento, não valorar, subjetivamente, os fatos, ainda mais se resultar, de tal valoração subjetiva, o reconhecimento (prematuro) de autoria do evento delituoso.

Vale referir, no ponto, a correta observação feita por JULIO FABBRINI MIRABETE (“Código de Processo Penal Interpretado”, p. 917, 7ª ed., 2000, Atlas):

“(…) O juiz, porém, está obrigado a dar os motivos de seu convencimento, apreciando a prova existente nos autos, embora não deva valorá-los subjetivamente. Cumpre-lhe limitar-se, única e tão-somente, em termos sóbrios e comedidos, a apontar a prova do crime e os indícios da autoria, para não exercer influência no ânimo dos jurados, que serão os competentes para o exame aprofundado da matéria.” (grifei)

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, por sua vez, apoiada em expressivo magistério doutrinário (ADRIANO MARREY, ALBERTO SILVA FRANCO, RUI STOCCO e LUIZ ANTONIO GUIMARÃES MARREY, “Teoria e Prática do Júri”, p. 260/261, item n. 11.03, 7ª ed., 2000, RHC 92.571 / DF 20 RT, v.g.), tem advertido que o magistrado, ao proferir a decisão de pronúncia, não deve convertê-la de um mero juízo fundado de suspeita em um inadmissível juízo de certeza (RTJ 136/1215, Rel. Min. CELSO DE MELLO), pois, em casos tais, “A eloqüência acusatória de que se reveste o conteúdo do decreto de pronúncia (…) constitui claro exemplo de ofensa aos limites que, juridicamente, devem restringir a atuação processual do magistrado e dos Tribunais no momento da prolação desse ato decisório que encerra, no procedimento penal escalonado do júri, a fase do ‘judicium accusationis’” (RTJ 140/917, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Cumpre destacar que esse entendimento tem prevalecido no magistério jurisprudencial desta Suprema Corte (RTJ 156/919 – RTJ 160/967 – RTJ 178/719-720 – RTJ 186/282-283 – RTJ 190/313, v.g.):

“Pronúncia: nulidade por excesso de ‘eloqüência acusatória’.

1. É inadmissível, conforme a jurisprudência consolidada do STF, a pronúncia cuja fundamentação extrapola a demonstração da concorrência dos seus pressupostos legais (CPrPen, art. 408) e assume, com afirmações apodíticas e minudência no cotejo analítico da prova, a versão acusatória ou rejeita peremptoriamente a da defesa ( v . g., HC 68.606, 18/06/91, Celso, RTJ 136/1215; HC 69.133, 24/03/92, Celso, RTJ 140/917; HC 73.126, 27/02/96, Sanches, DJ 17/05/96; RHC 77.044, 26/05/98, Pertence, DJ 07/08/98).

2. O que reclama prova, no juízo da pronúncia, é a existência do crime; não, a autoria, para a qual basta a concorrência de indícios, que, portanto, o juiz deve cingir-se a indicar.

3. No caso, as expressões utilizadas pelo órgão prolator do acórdão confirmatório da sentença de pronúncia, no que concerne à autoria dos delitos, não se revelam compatíveis com a dupla exigência de sobriedade e de comedimento a que os magistrados e Tribunais, sob pena de ilegítima influência sobre o ânimo dos jurados, devem submeter-se quando praticam o ato culminante do ‘judicium accusationis’ (RT 522/361).” (RTJ 193/726, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – grifei)

No caso dos presentes autos, como se pode constatar, a ilustre magistrada pronunciante assim se manifestou (fls. 173 e 176):

 “A doutrina e jurisprudência dominante têm entendido que a pronúncia é fundada em suspeita e não em juízo de certeza, sendo suficiente, para que seja prolatada, apenas o convencimento do Juiz quanto à existência do crime e de indícios de que o réu seja seu autor, conforme disposto no art. 408 do CPP, uma vez que na fase da pronúncia é inaplicável o princípio ‘in dubio pro reo’ (RT 741/670). Dúvidas quanto à certeza do crime e de autoria deverão ser dirimidas durante o julgamento pelo Tribunal do Júri (RT 730/463). A linguagem e os fundamentos da pronúncia não podem ir além do razoável, sendo defeso ao Juiz adentrar em fundamentação tal que venha a influenciar o corpo de jurados, os juízes naturais da causa (RT 723/546 e RSTJ 98/437). A pronúncia, sentença processual que é, deve conter apenas sucinto juízo de probabilidade, pois, se for além, incidirá em excesso de fundamentação, o que pode prejudicar a defesa do paciente (STF, HC 76678/RJ, rel. Min. Maurício Corrêa – Ement. Vol. 2003-03 pp-434). ………………………………………….. Quanto à autoria, a prova produzida nesta fase do ‘juridicium acusationis’ apontou indícios de que o réu praticou o fato punível descrito na denúncia. Há juízo de probabilidade de acusação.” (grifei)

A análise dessa específica passagem da decisão em referência, entre outras, evidencia que a juíza sentenciante não se excedeu na prolação do juízo de admissibilidade da acusação penal deduzida contra o ora recorrente.

De outro lado, no que se refere à questão pertinente à “compatibilidade da qualificadora do motivo torpe com o dolo eventual nos crimes de homicídio” (fls. 345), acolho, como razão de decidir, os fundamentos em que se apóia a extensa e substanciosa manifestação da douta Procuradoria-Geral da República (fls. 379/393).

Registro, no ponto, que se reveste de plena legitimidade jurídico-constitucional a adoção, no caso, da técnica da motivação “per relationem” (HC 69.438/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 69.987/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).

Com efeito, o Supremo Tribunal Federal, pronunciando-se a propósito da técnica da motivação por referência ou por remissão, reconheceu-a compatível com o que dispõe o art. 93, inciso IX, da Constituição da República, como resulta de diversos precedentes firmados por esta Suprema Corte (HC 54.513/DF, Rel. Min. MOREIRA ALVES – RE 37.879/MG, Rel. Min. LUIZ GALLOTTI – RE 49.074/MA, Rel. Min. LUIZ GALLOTTI).

É que a remissão feita pelo magistrado – referindo-se, expressamente , aos fundamentos (de fato ou de direito) que deram suporte a anterior decisão (ou a pareceres do Ministério Público, ou, ainda, a informações prestadas por órgão apontado como coator) – constitui meio apto a promover a formal incorporação, ao seu ato decisório, da motivação a que este último se reportou como razão de decidir, tal como se verifica na espécie.

Vale rememorar, por relevante, fragmento do acórdão emanado do E. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios a propósito da plena compatibilidade do dolo eventual com o homicídio qualificado por motivo torpe (fls. 269/270):

“Em qualquer caso, no embate jurídico da tipicidade, tenho que procede a irresignação ministerial , na medida em que as ditas qualificadoras , ao contrário do que concluiu a nobre sentenciante, não são incompatíveis com o dolo eventual , cabendo ao Júri decidir se, no caso concreto, poderiam ser acolhidas. O motivo torpe é aquele baixo, vil, ignóbil, que repugna a consciência média, ou, segundo lição de Nélson Hungria, é aquele que ‘mais vivamente ofende a moralidade média ou o sentimento ético-social comum’. Verifica-se, assim, que o dolo eventual e o motivo torpe são figuras penais diversas , porém compatíveis e que não se excluem, eis que um é elemento subjetivo do tipo e o outro é circunstância que se relaciona com a ação nuclear de ‘matar alguém’, estabelecendo o tipo qualificador do homicídio.

É verdade que, se a figura qualificada se mostra de plano incompatível com as circunstâncias do caso concreto, é o caso de extirpá-las na pronúncia, não sendo certo mantê-las apenas porque foram arroladas pelo Ministério Público, evitando-se com isso o excesso de acusação, cuja finalidade, o mais das vezes, é aplicar ao réu, a todo o custo, os rigores da lei dos crimes hediondos, conforme já deixei assentado em outra ocasião (RSE 152095, 2ª Turma Criminal, DJ de 28/02/1996, p. 2.340). Não é o caso dos autos, em que pese a boa argumentação monocrática. O motivo torpe, segundo o Ministério Público, estaria no fim visado pelo réu ao praticar as cirurgias, isto é, a vantagem financeira. Com efeito, admitindo-se o dolo eventual, em tese, ou seja, admitindo-se que o réu assumiu conscientemente o risco de tirar a vida de suas pacientes, colocando acima desse bem (vida alheia) o proveito financeiro almejado a título de remuneração, tem-se que esse interesse se transforma em ignóbil, vil .” (grifei)

Cabe observar, ainda, em sentido oposto ao da pretensão recursal em exame, que a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal (RTJ 175/207-208, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA – RHC 85.160/SP, Rel. Min. AYRES BRITTO) e pelo Superior Tribunal de Justiça (AI 815.349-AgR/BA, Rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO – HC 62.345/DF, Rel. Min. GILSON DIPP), a propósito de questão assemelhada à que ora se examina nesta sede recursal, desautoriza o acolhimento, nesse específico ponto, da postulação deduzida na presente causa:

“PENAL. HOMICÍDIO. DOLO EVENTUAL E MOTIVO FÚTIL. COMPATIBILIDADE. Não há, no crime de homicídio, incompatibilidade entre dolo eventual e motivo fútil. É possível, por motivo fútil, alguém assumir o risco de produzir o resultado. Afastado, assim, o óbice de tal incompatibilidade, cabe ao Tribunal ‘a quo’ examinar, em conseqüência, a existência da qualificadora referente ao motivo fútil. Recurso especial conhecido e parcialmente provido .” (REsp 365/PR, Rel. Min. EDSON VIDIGAL – grifei)

Cumpre destacar, finalmente, em face da pertinência de que se reveste, fragmento do voto que o eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, ao apreciar caso análogo ao ora sob exame, proferiu no julgamento do HC 70.362/RJ (RTJ 159/132-133), de que foi Relator:

“(…) as circunstâncias atinentes ao motivo podem dizer com a valoração da própria conduta, que, também nos delitos culposos, é voluntária, independentemente da não voluntariedade do resultado .” (grifei)

Sendo assim, em face das razões expostas, e acolhendo, ainda, o parecer da douta Procuradoria-Geral da República, nego provimento ao presente recurso ordinário.

É o meu voto.

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Evinis Talon é Advogado Criminalista com atuação no Brasil inteiro, com 12 anos de experiência na defesa penal, professor de cursos de mestrado e doutorado com experiência de 11 anos na docência, Doutor em Direito Penal pelo Centro de Estudios de Posgrado (México), Doutorando pela Universidade do Minho (Portugal – aprovado em 1º lugar), Mestre em Direito (UNISC), Máster en Derecho Penal (Universidade de Sevilha), Máster en Derecho Penitenciario (Universidade de Barcelona), Máster en Derecho Probatorio (Universidade de Barcelona), Máster en Derechos Fundamentales (Universidade Carlos III de Madrid), Máster en Política Criminal (Universidade de Salamanca), especialista em Direito Penal, Processo Penal, Direito Constitucional, Filosofia e Sociologia, autor de 7 livros, ex-Defensor Público do Rio Grande do Sul (2012-2015, pedindo exoneração para advogar. Aprovado em todas as fases durante a graduação), palestrante que já participou de eventos em 3 continentes e investigador do Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov) de Portugal. Citado na jurisprudência de vários tribunais, como TRF1, TJSP, TJPR, TJSC, TJGO, TJMG, TJSE e outros.

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