Decisão proferida pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça no HC 148.787/SP, julgado em julgado em 20/10/2016 (leia a íntegra do acórdão).
Confira a ementa:
HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. ESTELIONATO. JÚRI. DEPOIMENTOS COLHIDOS PELO PARQUET DE FORMA UNILATERAL. PEDIDO DE DESENTRANHAMENTO DOS TERMOS DE DECLARAÇÃO DOS AUTOS. PROVA TESTEMUNHAL. ORALIDADE E JUDICIALIDADE. MEIO ATÍPICO DE PROVA. VALIDADE RELATIVA. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. BUSCA DA VERDADE PROCESSUALMENTE POSSÍVEL. OITIVA EM JUÍZO. AUSÊNCIA DE REQUERIMENTO DAS PARTES. TESTEMUNHAS DO JUÍZO. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. 1. No Direito Penal brasileiro, a prova oral, por seu caráter judicial e oral, deve ser colhida no processo, perante o juiz competente e sob o crivo do contraditório das partes. 2. Depoimentos prestados fora do âmbito processual podem ingressar nos autos, mas não terão o valor de prova testemunhal em sentido estrito, cabendo ao magistrado aferir-lhes, motivadamente, o peso e a importância em face do conjunto da prova produzida. 3. No Processo Penal, o juiz deve zelar para que se alcance, nos limites legais, a verdade constitucional e processualmente válida, de modo a otimizar a prestação jurisdicional e a realização da justiça. 4. Por força do parágrafo único do art. 472 do CPP, com a nova redação dada pela Lei n. 11.689/2008, somente devem ser apresentadas ao corpo de jurados “cópias da pronúncia ou, se for o caso, das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação e do relatório do processo”. 5. Na espécie, mostra-se suficiente e consentânea ao procedimento do Júri a vedação a que os depoimentos colhidos pelo Parquet sejam utilizados como prova por ocasião do julgamento em plenário, bem assim a menção de seu conteúdo no relatório distribuído ao corpo de jurados, afastado, todavia, o pretendido expurgo de termos de declaração produzidos administrativamente e não confirmados em juízo. 6. Ordem concedida para determinar que: (a) os testemunhos prestados por Raike (ou Raquel) Yassine Charanak e Antônio Herculano de Oliveira ao Ministério Público e juntados, após a pronúncia, aos autos do Processo n. 050.96.002382-9, movido contra Hussain Ghaleb Fares perante a 1ª Vara do Júri da Comarca de São Paulo-SP, não sejam apresentados como prova ao Corpo de Jurados, sob nenhum aspecto; (b) não haja menção sobre tais testemunhos e seu conteúdo no relatório do processo a ser distribuído ao Conselho de Sentença, conforme especifica o parágrafo único do art. 472 do CPP, sem prejuízo a que o Presidente do Tribunal do Júri determine a oitiva das referidas pessoas como testemunhas do juízo. (HC 148.787/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 20/10/2016, DJe 14/11/2016)
Confira a íntegra do voto:
VOTO
O SENHOR MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ Relator:
Contextualização
Cinge-se a controvérsia a saber se depoimentos colhidos pelo Ministério Público, de forma unilateral, antes da realização do Plenário do Tribunal do Júri, podem ser levados ao conhecimento do corpo de jurados, considerando-se que foram produzidos fora do âmbito do processo judicial.
No que respeita ao depoimento da testemunha Rakie (ou Raquel) Yassine Charanak, pelo que se extrai dos autos, o Ministério Público paulista decidiu colhê-lo em razão da informação de que a testemunha iria viajar ao estrangeiro e não poderia estar presente na data do julgamento do paciente (fls. 81-84).
Em relação ao depoimento prestado pela testemunha Antônio Herculano de Oliveira, não consta dos autos o motivo pelo qual não poderia ser ouvido em Juízo. É fato, no entanto, que suas declarações – que não constaram dos autos do inquérito – levantam suspeitas quanto aos procedimentos investigativos conduzidos pela Polícia Judiciária do Estado de São Paulo, visto que a testemunha alegou, às fls. 85-87, haver sido ouvida por duas vezes pela Polícia Civil (DHPP).
O paciente, como se viu, alega que a juntada de tais depoimentos aos autos gera evidente prejuízo à sua defesa, uma vez que estariam viciados pela pecha de nulidade, em face de haverem sido produzidos de forma unilateral pela acusação, por meio não previsto em lei, ferindo, a seu ver, os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
Ao indeferir o pedido de desentranhamento dos termos de depoimento das testemunhas (fls. 24-35), o Juiz de primeiro grau afirmou apenas que “os termos de depoimento de Raquel Charanak e Antônio Herculano de Oliveira, tomados exclusivamente pelo Ministério Público”, deveriam “ser apreciados pelo Conselho de Sentença em conjunto com o restante das provas, esclarecendo-se que não tem a validade de depoimento tomados em juízo, por falta do contraditório e da ampla defesa” (fl. 103).
O Tribunal bandeirante, em dois momentos, se manifestou sobre o assunto em apreço. Na primeira decisão, que veio a ser anulada pelo ilustre Ministro Nilson Naves por questão técnica, entendeu aquela Corte, mais precisamente os Magistrados que compunham a 14a Câmara Criminal “B”, que os termos de depoimento deveriam ser considerados prova documental e, em virtude de tal entendimento, não ser desentranhados do processo.
Veja-se abaixo o respectivo trecho do acórdão (fl. 48):
A defesa sustenta que, ante a impossibilidade das partes ouvirem estas testemunhas em plenário, estaria havendo violação do princípio do contraditório e da ampla defesa.
Entretanto, em que pese o esforço e combatividade dos nobres Advogados, como já deixei consignado por ocasião da apreciação da medida liminar, entendo que as declarações juntadas pelo Ministério Público não podem ser tratadas como prova testemunhal, mas tão somente, como prova documental.
Por prova testemunhal deve-se entender a inquirição feita em contraditório com a presença das partes e do juiz. E obviamente, que o termo de declarações obtido de maneira unilateral por quaisquer das partes não se enquadra nesse conceito.
No entanto, não se pode desprezar o registro de um fato, ainda mais à luz do princípio da busca da verdade real que deve ser observado no processo penal.
Assim, as declarações ou informações colhidas unilateralmente pela parte podem ser tratadas como prova documental, por representarem o registro de qualquer fato.
Em um segundo momento, instado novamente a se manifestar, desta feita por meio da 11a Câmara Criminal (fls. 262-263), o órgão recursal limitou-se a afirmar que os depoimentos eram de interesse do corpo de jurados e, diante do decurso do prazo, não poderia a defesa alegar mais surpresa quanto ao seu teor, conforme se vê a seguir:
A questão central a ser debatida agora está relacionada com a possibilidade de manutenção ou não, nos autos e sua utilização em Plenário, de depoimentos colhidos pelo Ministério Público, unilateralmente, e juntados ao processo.
Os depoimentos referidos foram colhidos em 16⁄05⁄05 e são do conhecimento da Defesa, então, há pelo menos quatro anos.
Como o julgamento anterior não foi realizado, não há como argumentar que a peça teria sido entranhada aos autos fora do limite temporal permitido pela lei processual penal.
De outra parte, como relação aos depoimentos da irresignação dos impetrantes caberá às partes, principalmente à Defesa, durante os Debates, demonstrar aos juízes leigos o valor que devem merecer no contexto das demais provas amealhadas, em decorrência do fato de terem sido colhidos sem observância do princípio do contraditório e da ampla defesa.
E não se pode deixar de pensar na hipótese de interessar aos julgadores populares a oitiva daquelas pessoas em Plenário. Basta que façam requerimento nesse sentido, como, aliás, em julgamento anterior ocorreu, convencidos da argumentação do Ministério Público sobre a conveniência de realização de prova pericial (fls. 30⁄31).
Inexiste, então, constrangimento ilegal a ser sanado por esta via e, portanto, não há motivo para adiamento do julgamento, prejudicada, a petição de fls. 139⁄140.
Diante do exposto, denega-se a ordem.
A questão jurídica a ser dirimida consiste, pois, em saber se os termos de declarações prestados ao Parquet pelas testemunhas Raquel Charanak e Antônio Herculano de Oliveira podem ou não ser mantidos nos autos do processo movido contra o paciente e se podem ou não ser utilizados pelas partes durante o julgamento pelo Plenário do Júri.
A produção da prova oral
De início, é necessário ressaltar que, não obstante a divergência na doutrina sobre o tipo de sistema processual penal seguido pelo direito brasileiro, nossa legislação processual possui institutos que guardam relação tanto com o sistema inquisitivo quanto com o acusatório, com predominância, na estrutura e no funcionamento, deste último sistema.
Qualquer que seja, no entanto, a posição doutrinária a ser seguida sobre o assunto, não se pode deixar de considerar que a Constituição da República de 1988 fixou princípios importantes a serem observados pelos aplicadores do direito, de modo a balizar todos os feitos criminais, sob pena de mácula insanável: a ampla defesa, o contraditório, a publicidade dos atos processuais, o juiz natural, a imparcialidade do julgador, a presunção de não culpabilidade, inter alia.
Relativamente às provas que podem ser produzidas em um processo criminal, o direito brasileiro, à exceção daquelas consideradas urgentes e irrepetíveis, exige que se produza a prova, no processo, pelo juiz competente para a causa e sob o crivo do contraditório das partes.
É de salientar, outrossim, que a prova testemunhal, em seu sentido estrito, não se confunde com a prova documental – esta pode até mesmo referir-se a depoimentos prestados por testemunhas em âmbito extraprocessual. Nesse sentido, aliás, Malatesta assevera que:
Há testemunhos escritos que não podem reproduzir oralmente por impossibilidade relativa à personalidade física ou moral da testemunha.
Quando a testemunha, que deixou declaração escrita, morreu, desapareceu ou enlouqueceu, tal declaração escrita não poder ser oralmente reproduzida por uma impossibilidade material ou psíquica, e torna-se verdadeiro documento, cuja leitura é admissível, como a de qualquer outro escrito probatório não substituível pela oralidade. (DEL MALATESTA, Nicola Framarino. Lógica das Provas em Matéria Criminal. 2. ed. Campinas: Ed. Bookseller, 2001, p. 569).
Assim, não se pode tomar como prova testemunhal, stricto sensu, o termo de declaração prestado por alguém perante a Polícia ou o Ministério Público, dada a ausência de oralidade, judicialidade e observância do contraditório das partes no momento de sua produção.
No caso sob exame, uma das testemunhas prestou declarações diretamente ao Parquet porque estaria com viagem agendada ao exterior antes da data prevista para a colheita do seu depoimento perante o Júri. A outra testemunha, por sua vez, chegou a ser arrolada pelo Órgão Ministerial, contudo, sem justificativa plausível, consoante se verifica nos autos, foi substituída antes de prestar seu depoimento.
Decerto que declarações ou depoimentos pessoais prestados fora do processo criminal em curso podem, em tese, ser considerados como prova documental, mesmo sendo possível, em tese, a produção do testemunho em juízo. Isso ocorrerá, por exemplo, quando se constatar a morte posterior da testemunha ou a impossibilidade de localizá-la para depor em juízo, ou, ainda, quando os relatos objetivarem informar algo que foi revelado em outro processo, hipótese em que serão admitidos como “prova emprestada”, sendo sua validade dependente, todavia, da possibilidade de sobre ela exercerem as partes o contraditório.
Tirante essas hipóteses, não se pode dar valor de “prova” (documental ou, mais ainda, testemunhal) a termos de declarações de pessoas que comparecem à Polícia ou ao Ministério Público, no curso de uma ação penal, e depõem sobre fatos relativos ao caso sub judice, com vistas à formação do convencimento judicial. Para situações em que o depoimento é urgente e não se pode aguardar o futuro processo inaugurar-se, prevê a lei processual a possibilidade de produção antecipada da prova, ad perpetuam rei memoriam, tal qual disciplinado pelo art. 156, I, do CPP, caso em que o depoimento é prestado sob contraditório judicial, a conferir-lhe, portanto, validade e natureza de prova.
Observe-se que a colheita de testemunho em juízo não consiste em mera formalidade a ser observada no âmbito do processo. Trata-se de autêntico meio para a obtenção da verdade processualmente válida, com a preservação de direitos básicos do réu.
O magistrado tem função primordial em tal procedimento, voltada a assegurar as garantias constitucionais e legais às partes, mas também direcionada a permitir, a ele próprio, como terceiro imparcial, fazer questionamentos à testemunha que repute relevantes ao esclarecimento dos fatos.
Ademais, a presença das partes no depoimento da testemunha, além de garantir a possibilidade de formular perguntas e esclarecer contradições, assegura que possa ser arguído eventual defeito quanto à pessoa ouvida, ou mesmo sua contradita, o que poderia, inclusive, conduzir à vedação de seu testemunho.
Eis a importância de se observar o meio típico de produção da prova no processo penal, sendo arriscado, salvo justificativa plausível, admitir-se que as informações prestadas por uma pessoa sobre o fato objeto da ação penal ingressem nos autos por meio atípico, qual seja, um documento (termo de depoimento).
Sobre o tema, trago a lição e a precisa advertência de Antonio Laronga (Le prove atipiche nel processo penale. Milão: Cedam, 2002, p. 4) acerca dos riscos de assunção de prova fora da disciplina e do procedimento típico:
Se o objetivo do processo penal é a pesquisa da verdade, parece coerente ter em conta que todos os elementos de conhecimento dos fatos relevantes para a decisão, se introduzidos na cena do processo, podem ser utilizados pelo juiz para a formação do próprio convencimento, mesmo quando não se ajustem aos modelos probatórios expressamente regulados e admitidos no ordenamento processual. (Se l’obbiettivo del processo penale è la ricerca della verità, appare coerente ritenere como tutti gli elementi di conoscenza dei fatti rilevanti per la decisione, se introdotti sulla scena del processo, possano essere utilizzati dal giudice per la formazione del proprio convincimento, anche quando non rientrano nei modelli probatori espressamente regolati ed ammessi nell’ordinamento processuale.)
A essa constatação geral se contrapõe a constante preocupação de que o uso incontrolado de tal expediente possa tender a incidir negativamente sobre direitos e garantias do imputado, particularmente comprimindo ou elidindo frontalmente as regras relativas à disciplina da prova (postas como essenciais para o correto acertamento dos fatos), a configurar perigoso desvio do processo a um modelo de tipo autoritário, desonerado de qualquer controle efetivo em ordem à formação do convencimento do juiz sobre o fato. (A siffata generale constatazione si accompagna la altretanto costante preoccupazione che il dilagare incontrollato di tale tendenza finisca per incidere negativamente sui diritti e sulle garanzie dell’imputato, in particolare comprimendo o elidendo del tutto le regole relative alla disciplina della prova (poste como presidio essenziale, per un corretto accertamento dei fati), sì da configurare una periculosa deviazione del processo verso un modello di tipo autoritario, sottrato ad ogni effettivo controllo in ordine alla formazione del convincimento del giudice sul fatto.”
Os autos indicam que os termos de declarações das referidas testemunhas do processo foram colhidos, já iniciado o processo, de forma unilateral, de modo que, como prova oral, não podem ter o valor a esta usualmente atribuído. De fato, a ação penal já estava em curso, havendo sido o réu pronunciado no dia 24⁄8⁄2001 e o libelo crime acusatório oferecido em 22⁄3⁄2002 (fls. 216-217). Somente após três anos, o Ministério Público aditou o libelo (em 30⁄5⁄2005 – fl. 214) e, decorridos outros três anos, colheu os referidos depoimentos (maio de 2008).
Seria de se conferir alguma validade a tais declarações como indício de prova, a exemplo do que se faz em relação aos elementos informativos colhidos na fase do inquérito policial, como é o caso das declarações prestadas pela vítima e por testemunhas perante a autoridade policial.
Todavia, já iniciado o processo – espaço legal próprio para a produção da prova testemunhal – não se mostra consentâneo às regras probatórias que uma das partes pretenda introduzir no processo declarações colhidas inquisitorialmente.
Confira-se, a esse respeito, o escólio de Guilherme de Souza Nucci:
Produção de prova testemunhal no gabinete do representante do Ministério Público: Inadmissibilidade, sob pena de grave ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa. É certo que o órgão acusatório pode – e deve – buscar demonstrar a veracidade da imputação feita na denúncia, motivo pelo qual é sua atribuição arrolar testemunhas, bem como procurar outras provas, para tanto. Ocorre que, iniciado o processo-crime, cabe ao juiz a colheita da prova, uma vez que se está formatando o devido processo legal. Do mesmo modo que o advogado não pode tomar o depoimento de uma testemunha em seu escritório, juntando-o, depois, aos autos, como se prova testemunhal fosse, não há cabimento algum em admitir-se idêntico procedimento por parte do Ministério Público. Aliás, até mesmo o magistrado, quando entender cabível colher algum depoimento de oficio, como autoriza o caput deste artigo, deve fazê-lo em audiência previamente designada, com a ciência e participação da acusação e da defesa. Se, porventura, quiser o representante do Ministério Público demonstrar ao juiz a relevância da inquirição de uma pessoa que anteriormente não foi arrolada, pode ouvi-la em seu gabinete, juntando o termo de declaração nos autos, apenas para requerer ao juiz que ela seja ouvida em audiência. Nesse sentido, acerca de depoimento colhido pelo Promotor de Justiça em seu gabinete: TJSP: “É garantia constitucional o conhecimento prévio de todos os atos processuais por ambas as partes, sendo-lhes sempre possível deles participar ou, querendo, contestá-los. Inadmissível, portanto, legitimar a introdução no processo criminal de prova testemunhal não submetida previamente à parte adversa, isto é, obtida unilateralmente sem que tenha passado pelo crivo do contraditório. Além disso, a prova testemunhal possui estrutura complexa que encerra não só o comportamento da narração, mas o comportamento do depoente, circunstância somente constatável pelo Juiz se ele houver presidido o relato” (HC 454.113-3⁄3, São Paulo, 1a C., rel. Márcio Bártoli, 22.3.2004, v.u., JUBI 94⁄04). (Código de Processo Penal Comentado. 14. ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2015, p. 529)
Essa lição, vale enfatizar, é ainda mais pertinente na hipótese, reproduzida nestes autos, de processos da competência do Tribunal do Júri, nos quais a prova há de ser avaliada por pessoas do povo, leigas, sem formação científica e, portanto, menos preparadas para fazer distinções técnicas que permitem a um juiz togado, com sua experiência e seu tirocínio jurídico, compreender o alcance e as restrições referentes a declarações prestadas sem o contraditório judicial das partes.
Isso porque, também de acordo com a lição de Nucci, “Jurados decidem de acordo com a sua consciência e não segundo a lei. Aliás, esse é o juramento que fazem (art. 472, CPP), em que há a promessa de seguir a consciência e a justiça, mas não as normas escritas e muito menos os julgados do País” (NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. 6ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2015, p. 31).
É consabido que, no Processo Penal, o juiz não deve apenas se conformar com a mera especulação da verdade; deve sempre tentar reconstruir os fatos como ocorreram, sobretudo tendo em mente que em jogo está um direito fundamental indisponível, qual seja, o direito de ir e vir do acusado.
Todavia, é fato que no processo a “verdade” dependerá, quase sempre, de uma condição humana. É forçoso, então, concluir que o processo raramente retratará, com total e absoluta fidelidade, os fatos objeto da atividade processual. Nesse sentido, Ada Pellegrini Grinover ensina que “a verdade e (a) certeza são conceitos absolutos, dificilmente atingíveis, no processo ou fora dele” (A Iniciativa Instrutória do Juiz no Processo Penal Acusatório. Rio de Janeiro, Revista Forense, v. 347, julho-setembro, 1999, p. 6).
Em uma visão avessa ao modelo substancialista de direito penal – no qual, em nome de fundamentação metajurídica (predominantemente de cunho moral ou social), sobreleva o subjetivismo judicial na determinação em concreto do desvio punível –, busca-se uma verdade processual em que a reconstrução histórica dos fatos objeto do juízo se sujeita a regras precisas, que asseguram às partes maior controle sobre a atividade jurisdicional.
Sob tal premissa, cabe ao magistrado zelar para que, nos limites legais, se alcance a verdade constitucional e processualmente válida, de modo a otimizar a prestação jurisdicional e a realização da justiça.
Os poderes instrutórios do magistrado se mostram, pois, de fundamental importância para a reconstrução da realidade dos fatos. Obviamente podem, de modo supletivo e com o cuidado de preservar-se a imparcialidade judicial, ser exercidos em qualquer fase do processo penal, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, sendo uma providência que se mostra, muitas vezes, imprescindível para a formação do convencimento judicial.
Na espécie, afigura-se como possível e aconselhável, até em face da contundência do alegado perante o Ministério Público, que o Magistrado proceda à oitiva em juízo das testemunhas ouvidas unilateralmente, in casu, no âmbito do Plenário do Júri. Assim, mesmo que não haja requerimento das partes em tal sentido, pode a autoridade judicial, de ofício, com base no inciso XI do art. 497 do CPP, intimar tais pessoas para depor como testemunhas do juízo, a fim de que possam externar sua versão dos acontecimentos e ajudar a formação do convencimento do Conselho de Sentença.
Nesse sentido, aliás, já se manifestou esta Corte Superior:
Processo Penal. Júri. Inquirição em Plenário de testemunha não arrolada na contrariedade ao libelo. Se o juiz presidente reputa necessária a providência para o completo esclarecimento da verdade, deve determiná-la, na conformidade do disposto no art. 497, XI, do CPP. Trata-se de atribuição consentânea com a busca da verdade real, que norteia o Processo Penal. Inocorrência de nulidade, recurso conhecido e provido. (REsp n. 4.932⁄RN, Rel. Ministro Paulo da Costa Leite, 6ª T., DJ 20⁄5⁄1991, p. 6.542)
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. INDICAÇÃO EXTEMPORÂNEA DE TESTEMUNHAS PELO ÓRGÃO MINISTERIAL. PROVA RELEVANTE PARA O DESLINDE DA QUESTÃO. OITIVA NA QUALIDADE DE TESTEMUNHA DO JUÍZO. POSSIBILIDADE. BUSCA DA VERDADE REAL. NULIDADE. INOCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE EFETIVO PREJUÍZO. ORDEM DENEGADA.
Em observância ao princípio da busca da verdade real, não há nulidade na oitiva das testemunhas indicadas inoportunamente pelo Órgão Ministerial, na qualidade de testemunhas do juízo, nos termos do art. 209 do Código de Processo Penal (Precedentes STJ e STF).
Não obstante o Ministério Público não tenha arrolado como testemunha a genitora da vítima na exordial acusatória, mas tenha requerido a conversão do julgamento em diligências para a sua oitiva, certo é que o magistrado singular deliberou por ouvi-la na condição de testemunha do juízo, indicando a relevância dessa prova para solucionar a causa – já que ela teria oferecido a representação perante a autoridade policial -, providência esta que está em total consonância com o dispositivo legal retromencionado.
[…]
Recurso improvido. (RHC n. 27.739⁄SP, Rel. Ministro Jorge Mussi, 5ª T., DJe 25⁄8⁄2011).
PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. TENTATIVA. PRÉVIO MANDAMUS DENEGADO. PRESENTE WRIT SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. INVIABILIDADE. VIA INADEQUADA. REQUERIMENTO DO MP. REINQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHA E OITIVA DE UMA NOVEL. TESTEMUNHAS DO JUÍZO. POSSIBILIDADE. ARTIGO 209 DO CPP. NULIDADE. INOCORRÊNCIA. NÃO COMPROVAÇÃO DO PREJUÍZO DA DEFESA. PRINCÍPIO DO PAS DE NULLITÉ SANS GRIEF. FLAGRANTE ILEGALIDADE. INEXISTÊNCIA. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.
[…]
Não obstante o prévio requerimento ministerial para a reinquirição de uma testemunha e a oitiva de uma novel, ambas foram arroladas como testemunhas do juízo, nos termos do artigo 209 do Código de Processo Penal, visando dirimir suposta celeuma instaurada no feito, atuando legitimamente o magistrado de primeiro grau, em prol da busca da verdade real, não se sustentando a menção de pecha no procedimento.
Na hipótese, inexiste flagrante ilegalidade pois não foi demonstrado o eventual prejuízo concreto sofrido pela defesa ante a oitiva de testemunhas pelo juízo, sendo inviável, pois, o reconhecimento de qualquer nulidade processual, em atenção ao princípio do pas de nullité sans grief.
Habeas corpus não conhecido. (HC n. 257.200⁄SC, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, 6ª T., DJe 30⁄4⁄2014)
Note-se, no entanto, que, a teor das modificações introduzidas no CPP pela Lei n. 11.689⁄2008, não mais se faz necessária a providência solicitada pelo paciente para o desentranhamento dos supracitados depoimentos dos autos, uma vez que, por força do parágrafo único do art. 472, somente deve ser apresentadas ao corpo de jurados “cópias da pronúncia ou, se for o caso, das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação e do relatório do processo”.
Desse modo, mostra-se suficiente e consentâneo ao atual procedimento do julgamento pelo Tribunal do Júri tão somente determinar que tais depoimentos não sejam utilizados como prova por ocasião do julgamento em plenário, mormente quando se considera que a retirada de outros termos de declaração produzidos na fase inquisitorial e não confirmados em juízo não necessitam ser expurgados dos autos e, nem por isso, fala-se em nulidade do processo.
III. Dispositivo
Assim sendo, voto por conceder a ordem, para determinar que os testemunhos prestados por Raike (ou Raquel) Yassine Charanak e Antônio Herculano de Oliveira ao Ministério Público e juntados, após a decisão de pronúncia aos autos do Processo n. 050.96.002382-9, movido contra Hussain Ghaleb Fares perante a 1ª Vara do Júri da Comarca de São Paulo-SP, não sejam apresentados como prova ao corpo de jurados, sob nenhum aspecto. Da mesma forma, determino que não haja menção sobre tais testemunhos e seu conteúdo no relatório do processo a ser distribuído ao corpo de jurados, conforme especifica o parágrafo único do art. 472 do CPP.
Ressalto, no entanto, que tais declarações podem servir como justificativa para que as partes possam requerer a oitiva das referidas testemunhas no Plenário do Júri ou como razão de decidir quanto à necessidade de ouvir essas pessoas como testemunhas do juízo.
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