STJ: a perda da propriedade rural por tráfico de drogas não deve prejudicar terceiros de boa-fé
No AgRg no REsp 2.188.777-PR, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), decidiu que “a perda da propriedade rural em favor da União pela prática do crime de tráfico ilícito de entorpecentes deve se compatibilizar com a boa-fé de terceiros, o princípio da intranscendência da pena e outros valores constitucionais relevantes”.
Informações do inteiro teor:
A expropriação de bens em favor da União pela prática do crime de tráfico ilícito de entorpecentes tem previsão em foro constitucional, nos termos do art. 243, parágrafo único, da Constituição da República, e decorre da sentença penal condenatória, conforme regulamentado, primeiramente e de forma geral, no art. 91, II, do Código Penal, e, posteriormente, de forma específica no art. 63 da Lei n. 11.343/2006. (AgRg nos EDcl no REsp 1.866.666/SC, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe de 21/9/2020).
Nesse contexto, revela-se imperativo compreender o entendimento do STF a respeito do art. 243 da CF, para que a aplicação das normas infraconstitucionais – arts. 60, caput, e 63, I, da Lei n. 11.343/2006 – reflita corretamente a perspectiva constitucional.
O art. 243 da CF se volta tanto para a punição rigorosa de ilícitos de gravidade acentuada, como é o caso do tráfico ilícito de drogas, quanto para a promoção da função social da propriedade. A norma trata de hipóteses diferentes. O caput disciplina a expropriação de imóveis quando utilizados para cultivo de plantas psicotrópicas ilegais ou exploração de trabalho escravo e o parágrafo único dispõe sobre o confisco de bens de valor econômico relacionados à prática dos crimes de tráfico de drogas ou de trabalho escravo, ou seja, que tenham nexo direto com o ilícito.
Segundo o STF, a expressão “todo e qualquer bem de valor econômico” é suficientemente ampla para abranger bens móveis e imóveis, urbanos ou rurais, utilizados em contexto de tráfico ilícito, não se restringindo a hipóteses de cultivo de plantas psicotrópicas (RE 1.483.186/MG, rel. Min. Dias Toffoli). Essa moldura afasta a premissa de que a inexistência de plantio, por si só, impediria a expropriação constitucionalmente prevista, deslocando o foco para o nexo entre o bem e a atividade criminosa.
No caso em análise, perquire-se não propriamente o nexo entre o bem e a atividade criminosa, uma vez que a propriedade foi efetivamente utilizada para o tráfico de drogas. Questiona-se, no entanto, se a perda pode incidir sobre a integralidade da propriedade rural, considerando que, além de não se ter comprovado sua utilização exclusiva para a prática criminosa, ela pertence a terceiros não envolvidos com a conduta ilícita.
As instâncias ordinárias, ao analisarem esse ponto específico, concluíram que seria possível aplicar a compreensão firmada no Tema 399 da Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a responsabilidade dos coproprietários nessas hipóteses se justificaria pela presunção de culpa in eligendo ou in vigilando. Ou seja, caberia aos coproprietários demonstrar que não sabiam ou não tinham como saber que a propriedade rural estava sendo utilizada para a prática de tráfico de drogas.
Nada obstante a relevância do referido entendimento, observa-se que foi aplicada solução construída para terras utilizadas para o plantio de drogas, com o manifesto desvirtuamento de sua função social, para a hipótese em que a terra permanece com sua função social, embora a propriedade seja também utilizada para finalidade ilícita. Situações que não são análogas, o que inviabiliza a mera transposição, sem maiores reflexões, da tese firmada no Tema 399 da Repercussão Geral.
É imperativo que se leve em consideração que o combate ao narcotráfico, por mais relevante que seja, inclusive, com mandado expresso de criminalização (art. 5º, XLIII, da CF), não pode se sobrepor a garantias fundamentais de terceiros não envolvidos com a prática criminosa. A perda da propriedade é uma das mais severas sanções civis, motivo pelo qual a interpretação das normas que a determinam deve ser realizada com parcimônia, sempre tendo em mente sua conexão com o direito à moradia e com a dignidade da pessoa humana.
Dessa forma, não há se falar em expropriação por presunção de culpa de terceiro, na hipótese do art. 243, parágrafo único, da Constituição Federal, em especial porque o objetivo da norma é punir o criminoso e não o terceiro de boa-fé.
Acaso se considere a possibilidade de mera transposição do Tema 399/STF para a situação em análise, deve ser feita uma leitura em consonância com os demais princípios constitucionais, em especial o da proporcionalidade. O STF, no julgamento do RE 544.205/PI, manteve o acórdão que decretou a perda apenas da área efetivamente plantada, e não da sua totalidade, considerando que “não se mostra proporcional determinar a expropriação da totalidade do imóvel, se apenas uma parte deste foi destinada ao plantio ilegal”.
O acórdão mantido registrou, ainda, que, “[e]m virtude do princípio constitucional da personalidade da pena (art. 5º, XLV, CF) e da razoabilidade, ninguém pode ser responsabilizado por fato cometido por outra pessoa ou sem dolo ou culpa, motivo pelo qual a expropriação não pode recair sobre a pessoa dos herdeiros inocentes, que não cultivaram a substância entorpecente, nem contribuíram com relação à plantação da droga”. O relator, por seu turno, concluiu que a compreensão firmada não divergiu da orientação do STF no Tema 399 da Repercussão Geral (RE 544.205/PI, Relator Min. Roberto Barroso, Publicação: 2/5/2018).
Por fim, mesmo que superadas todas essas peculiaridades, de ausência de aderência estrita ao precedente aplicado e de desproporcionalidade no perdimento da integralidade da propriedade, verifica-se, sem necessidade de reexame fático-probatório, que os familiares do réu não agiram com culpa. O Ministro Gilmar Mendes, no Tema 399/STF, destacou que “a função social da propriedade aponta para um dever do proprietário de zelar pelo uso lícito de seu terreno, ainda que não esteja na posse direta. Mas esse dever não é ilimitado. Só se pode exigir do proprietário que evite o ilícito, quando evitar o ilícito estava razoavelmente ao seu alcance”.
A situação em foco revela que a propriedade rural confiscada, na qual se explorava pecuária leiteira, pertencia aos pais do réu condenado por tráfico de drogas. Com a velhice e as doenças, precisaram se afastar tanto do trabalho quanto da supervisão da terra, da qual cuidavam há mais de 50 anos, que passou a ser administrada pelos filhos. Na data do ajuizamento dos embargos de terceiros, dois a três anos após os fatos, a mãe já era falecida e o pai contava com 81 anos de idade. Referido contexto não pode ser desprezado, sendo manifesta a impossibilidade de supervisão da propriedade pelos seus pais idosos, bem como a ausência de qualquer indicativo no sentido de que deveriam se preocupar com a utilização da terra pelos filhos. Até então, as terras eram utilizadas para o desempenho de atividades lícitas.
Já no que concerne à meação da ex-esposa, trata-se igualmente de bem imóvel de terceiro de boa-fé, de quem não se podia esperar comportamento impeditivo de prática delitiva. Com efeito, dentro da unidade familiar, “o Direito não impõe à mulher o dever de evitar a companhia de seu esposo, se, porventura, dedicado a atividades criminosas” (HC 168.442/SP e HC 183.361/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe 19/3/2020). Nesse diapasão, não se pode exigir igualmente que o impeça de praticar crimes ou que o denuncie às autoridades policiais, conforme se depreende do art. 348, § 2º, do Código Penal.
Nesse contexto, não é possível o perdimento integral da propriedade, quer por ausência de aderência ao precedente do Supremo Tribunal Federal indicado, quer por ausência de proporcionalidade. Rememore-se que se trata de propriedade rural produtiva, cujo perdimento integral atingirá meeira e herdeiros inocentes, violando, assim, a princípio da instranscendência da pena.
Ademais, não se verifica culpa na atuação dos terceiros, dos quais não era esperada nem se podia demandar conduta diversa – os pais, em razão da idade e da situação de saúde, e a ex-esposa, em razão da unidade familiar. O que revela que o debate abrange inúmeros outros valores constitucionais relevantes – proteção do idoso, da saúde, da família – que não podem ser desconsiderados pelo intérprete.
Dessa forma, a interpretação abrangente dada aos arts. 60, caput, e 63, I, da Lei n. 11.343/2006, não pode prevalecer, devendo a aplicação das perdas patrimoniais se harmonizar com os pilares do regime democrático de direito e com compreensões mais adequadas ao direito penal moderno.
Leia a ementa:
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CERCEAMENTO DE DEFESA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO ACOLHIDOS. 1. Consoante o disposto no art. 619 do Código de Processo Penal, a oposição de embargos de declaração enseja, em síntese, o aprimoramento da prestação jurisdicional, por meio da retificação do julgado que se apresenta omisso, ambíguo, contraditório ou com erro material. 2. Na espécie, a defesa requereu que o julgamento fosse feito na modalidade presencial/síncrona. Ocorre que embora o julgamento tenha ocorrido em sessão presencial, não foi observada a inclusão do recurso em mesa para o julgamento ocorrido em 17.6.2025, violando o princípio da não surpresa. 3. Embargos de declaração acolhidos, a fim de anular o julgamento do agravo regimental efetuado em 17.6.2025. (EDcl no AgRg no REsp n. 2.188.777/PR, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 2/9/2025, DJEN de 10/9/2025.)
INFORMAÇÕES ADICIONAIS:
Legislação
Constituição Federal (CF), art. 5º, XLIII, XLV, e art. 243, parágrafo único
Lei n. 11.343/2006, art. 60 e art. 63, I
Código Penal (CP), art. 348, § 2º
Precedentes Qualificados
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Fonte: Informativo de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – Edição nº 868, de 28 de outubro de 2025 (leia aqui).
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