O tribunal do júri está previsto no art. 5º, XXXVIII, da Constituição Federal, como uma garantia para o julgamento dos denunciados por crimes dolosos contra a vida (e crimes conexos).
Nesse diapasão, um fundamento para a sua existência é o caráter democrático de tal julgamento, haja vista que o tribunal do júri confere a um indivíduo a possibilidade de ser julgado por seus pares, ou seja, atribui ao povo – e não a Juízes – a função de julgar determinados crimes, podendo absolver, inclusive, por critérios não permitidos por lei, como arrependimento do acusado, desnecessidade da pena ou por mero perdão (por isso se fala em plenitude de defesa, e não mera “ampla defesa”).
Nucci (2015) afirma que a participação popular no Judiciário, por meio do tribunal do júri, é enaltecida por muitos por ser uma forma de exercer a cidadania e a democracia, pois a decisão proferida seria respeitada em homenagem ao princípio da soberania dos veredictos.
No entanto, pergunta-se: o princípio constitucional da soberania dos veredictos é absoluto?
A resposta é negativa, haja vista que tal princípio, apesar de sua previsão constitucional, pode ser relativizado.
Cita-se, inicialmente, a possibilidade de que uma decisão condenatória proferida pelo tribunal do júri seja modificada por meio de revisão criminal, inclusive para gerar uma absolvição, independentemente de novo julgamento pelo tribunal do júri. Sobre o tema, recomendo a leitura de um texto anterior (leia aqui). Por oportuno, reitero que se trata de uma hipótese em que é possível um juízo absolutório, de modo definitivo, por órgão diverso do tribunal do júri, mesmo em caso de crime doloso contra a vida.
Para exemplificar, se o tribunal do júri profere uma condenação e, em seguida, ocorre o trânsito em julgado, é possível que o condenado ajuíze uma revisão criminal no Tribunal competente. No julgamento da revisão criminal, o Tribunal poderá absolver, desclassificar, desqualificar, reduzir a pena ou anular o julgamento. Portanto, segundo entendimento jurisprudencial – inclusive do STF –, o Tribunal poderia absolver, não havendo necessidade de submeter o condenado a um novo júri. Contudo, há quem entenda que o julgamento sempre deveria ser feito pelo tribunal do júri, razão pela qual a revisão criminal não poderia absolver o condenado, mas apenas determinar a realização de um novo júri.
Noutro prisma, já afirmou o Supremo Tribunal Federal que:
[…] A jurisprudência é pacífica no sentido de que não há falar em ofensa ao princípio constitucional da soberania dos veredictos pelo Tribunal de Justiça local que sujeita os réus a novo julgamento (art. 593, III, d, do CPP), quando se tratar de decisão manifestamente contrária à prova dos autos. […] (STF, Segunda Turma, HC 94730, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 01/10/2013).
Da mesma forma:
[…] A jurisprudência desta Corte é assente no sentido de que o princípio constitucional da soberania dos veredictos não é violado pela realização de novo julgamento do Júri, quando a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos. […] (STF, Segunda Turma, HC 112.472MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 19/11/2013)
Nos dois casos acima, observa-se que o STF entendeu pela possibilidade de sujeitar os réus a novo julgamento, diante de decisão dos jurados que era manifestamente contrária à prova dos autos. Em suma, entendeu que não é violado o princípio da soberania dos veredictos nessa situação. Não houve, como é perceptível, uma superação de tal princípio, mas apenas um entendimento de que ele não seria violado. Noutras palavras, não foi tecnicamente relativizado, porque o STF entendeu que tal entendimento não ofende o mencionado princípio.
Nucci (2015) afirma que o duplo grau de jurisdição e a soberania dos veredictos são princípios constitucionais que coexistem harmoniosamente. Por essa razão, afirmar que a soberania dos veredictos deve ser respeitada não significa afastar completamente a possibilidade de se submeter a decisão proferida pelo Tribunal do Júri ao duplo grau de jurisdição. O mesmo também vale para a revisão criminal, que, apesar de ausência de previsão constitucional, tem o desiderato de fiscalizar o respeito ao devido processo legal.
De qualquer forma, urge salientar que não é cabível a interposição de apelação contra decisão do tribunal do júri por qualquer motivo ou inconformismo, mas somente nos casos enumerados nas alíneas do inciso III do art. 593 do Código de Processo Penal.
Em suma, conclui-se que a soberania dos veredictos é um princípio que pode ser relativizado, sobretudo diante do duplo grau de jurisdição e do devido processo legal.
Tratando expressamente da relativização do princípio da soberania dos veredictos, uma decisão paradigmática do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, que possui enorme relevância para os casos em que a defesa sustenta a necessidade de formulação de determinado quesito, mas há negativa do Juiz (nesse caso, é impositivo que o Advogado requeira a consignação de sua inconformidade na ata):
[…] Quando ocorrer uma das hipóteses previstas no art. 593 do Código de Processo Penal, admite-se a relativização do princípio da soberania dos veredictos, para submeter o acusado a novo julgamento. In casu, a decisão do Júri, apesar de não ter sido manifestamente contrária às provas dos autos, é nula por ausência de submissão dos jurados sobre a quesitação obrigatória do excesso punível, diante da tese de legítima defesa e da negativa sobre o uso moderado dos meios empregados pelo acusado. Recurso conhecido e provido, à unanimidade. (TJ/PA, Terceira Turma, Apelação Penal nº 2008.02430515-09, Rel. Raimundo Holanda Reis, julgado em 14/02/2008)
NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do júri. 6. ed. Rio de Janeiro : Forense, 2015.
Leia também: