Breves comentários sobre o estado de necessidade
O estado de necessidade é uma das causas excludentes de ilicitude previstas no art. 23 do Código Penal.
Sobre os seus requisitos, dispõe o art. 24 do Código Penal:
Art. 24 – Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.
Portanto, o estado de necessidade exclui a ilicitude da conduta de quem, não tendo o dever legal de enfrentar o perigo, que não foi provocado por sua vontade, sacrifica um bem jurídico para salvar outro bem, próprio ou alheio.
Entre os requisitos para que haja o reconhecimento do estado de necessidade, está a exigência de que o perigo seja atual. Trata-se, portanto, da aferição do momento do perigo. A lei não menciona o “perigo iminente”, mas é possível interpretar de modo amplo, haja vista que se trata de uma causa excludente de ilicitude.
Por outro lado, se o perigo já ocorreu ou se há uma expectativa para o futuro (não é iminente), não há estado de necessidade.
No que concerne à titularidade do bem jurídico em perigo, a ameaça pode dizer respeito a direito próprio ou alheio. É possível interpretar no sentido de que qualquer bem jurídico pode ser protegido pelo estado de necessidade, como a vida, a integridade física, a liberdade, o patrimônio etc. O critério quanto ao bem jurídico é a análise da proporcionalidade entre o bem protegido e o bem que sofre a conduta de quem alega o estado de necessidade.
Ademais, a situação de perigo não pode ter sido causada pelo agente.
Também é necessário que o agente não tenha o dever legal de enfrentar o perigo (art. 24, §1º, do Código Penal). Se a lei impuser ao agente o dever de enfrentá-lo, ele deverá tentar resguardar ambos os bens jurídicos.
A jurisprudência também analisa a inevitabilidade do comportamento lesivo (que não deve ser confundida com a inexigibilidade de conduta diversa, excludente da culpabilidade), isto é, se o dano produzido pelo agente poderia/deveria ser evitado, não havendo outro meio de evitar a ofensa ao bem jurídico. Nesse ponto, cita-se, por exemplo, uma decisão que menciona: “possibilidade de agir de modo diverso, no caso dos autos, que afasta a hipótese de estado de necessidade” (TJ/RS, Quinta Câmara Criminal, Apelação Crime Nº 70075418483, Rel. João Batista Marques Tovo, julgado em 29/11/2017).
Por fim, prepondera o entendimento de que não há estado de necessidade quando o indivíduo não tem conhecimento de que age para salvar um bem jurídico, seja um interesse próprio, seja um bem de terceiro. Sobre a (in)exigibilidade do elemento subjetivo (ciência de que age amparado pela excludente de ilicitude), escrevi um texto anteriormente (leia aqui).
No que concerne à avaliação da proporcionalidade da conduta, que exige uma comparação entre o bem jurídico tutelado e o bem atingido pela conduta supostamente amparada pelo estado de necessidade, é importante destacar que há uma causa de diminuição de pena prevista no art. 24, §2º, do Código Penal: “Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços.”
Conforme essa minorante, mesmo que se reconheça que o agente deveria agir de forma diversa – o que afasta o reconhecimento do estado de necessidade –, a pena poderá ser reduzida. Trata-se de uma possibilidade intermediária, entre o reconhecimento do estado de necessidade e o afastamento dessa excludente. Nessa situação, o estado de necessidade não é acolhido, havendo, portanto, ilicitude, mas a pena será reduzida.
Também é oportuno destacar que é possível o excesso de estado de necessidade, que também está abrangido pela previsão do art. 23, parágrafo único, do CP: “O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.”
Nesse caso, para que exista excesso de estado de necessidade, considera-se que o agente, de início, agia amparado pela excludente de ilicitude, preenchendo todos os requisitos legais (inclusive a proporcionalidade), mas, após proteger o bem jurídico, continua agindo quando não há mais necessidade. Assim, o excesso, que pode ser doloso ou culposo, será punido, não respondendo o agente pela conduta anterior, ou seja, aquela que ainda estava amparada pelo estado de necessidade (quando ainda era necessária a ofensa a um bem jurídico para proteger outro bem jurídico).
Por fim, destaca-se que há alguns julgados que tratam do estado de necessidade por meio da análise das condições financeiras do agente. Normalmente, a jurisprudência é no sentido de que a insuficiência de recursos financeiros não é, por si só, fundamento para a prática de crimes. Aqui, não se está tratando do furto famélico (a subtração de alimentos em casos de forme extrema), mas sim a alegação de estado de necessidade quando, por exemplo, o agente afirma que não tinha condições financeiras e, por essa razão, ingressou na traficância de drogas.
Afastando o estado de necessidade no caso de tráfico de drogas praticado por agente que alegava pobreza, duas decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:
[…] ESTADO DE NECESSIDADE. INEXISTÊNCIA. Não há falar em estado de necessidade, pelo fato de o réu alegar que estava necessitando recursos financeiros, pois a insuficiência ou necessidade de tais recursos não constitui justificativa para a prática de ilícitos como o tráfico de drogas em questão. […] (TJ/RS, Segunda Câmara Criminal, Apelação Crime Nº 70076726033, Rel. Luiz Mello Guimarães, julgado em 22/03/2018)
[…] O alegado estado de necessidade pela defesa não afasta a prática delitiva, pois dificuldade financeira não justifica a prática da traficância. […] (TJ/RS, Primeira Câmara Criminal, Apelação Crime Nº 70075859355, Rel. Jayme Weingartner Neto, julgado em 07/03/2018)
Portanto, conforme esses julgados recentes, não há estado de necessidade e, por conseguinte, configura crime, quando o agente pratica tráfico de drogas, ainda que alegue ser pobre e que essa era a única possibilidade de adquirir recursos para sobreviver.
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